terça-feira, 26 de abril de 2016

O CARPINTEIRO DAS PALAVRAS - ENSAIO SOBRE A CRISE III

O CARPINTEIRO DAS PALAVRAS

ENSAIO SOBRE A CRISE III




                Vamos caminhar um pouco mais e continuar refletindo sobre a crise de valores com a qual temos convivido na ambiência da era contemporânea e na feição do Estado liberal em nossa experiência ocidental.

                Nos textos anteriores, sustentei que, conquanto se projete sobre o âmbito econômico e implique condições de vida e meios de subsistência das pessoas, o cerne da crise é valorativo, pois diz com os valores que foram se sedimentando para a construção de uma moral social que dá sustentação ao estado liberal.
                Vivemos uma crise que entendo ingênuo conceber se tratar de uma crise dos negócios, de falta de perspectiva para o comércio. As empresas, os negócios, muitos estão vivenciando situação econômica grave ou fechando as portas neste nosso mundo ocidental, mas penso que querer apreender este fato como retrato da crise, significa tomar apenas um detalhe como se fosse o todo.
Aqui trago à lembrança a doutrina de base marxista, que fala com propriedade sobre as consequências perniciosas da acumulação do capital. A distribuição assimétrica do capital já é, por si, um fato gerador de crise, pois enquanto uns sofrem da falta de capital outros os têm em abundância. Tanto na falta como na abundância o capital tem gerado miséria, pois vivemos no mesmo mundo e é inconcebível se dar ao luxo de tomar um caríssimo vinho enquanto há crianças morrendo de inanição na África em outros tantos lugares.

Esta assimetria é a evidência, além de uma desumanidade e miséria moral que se encontram em sua gênese, também de uma miséria material, com reflexos profundos na natureza. Exemplifico: uma Favela deixada a esmo, sem saneamento básico, onde convivem adultos e crianças expostos a riscos e sem tratamento médico, traz malefícios a toda comunidade envolvida e a sociedade de uma maneira geral, ante o potencial de gerar epidemias de base viral e bacteriana, provenientes dos desarranjos naturais causados pela falta de higiene.

Esta assimetria econômica, na verdade, não tem fronteiras. É ingênuo considerar que sua riqueza, ou seu dinheiro possam comprar sua felicidade. Os EUA, nação rica, esta exposta às epidemias provenientes de qualquer país do mundo, assim como o Brasil ou qualquer outro país também estão expostos. O controle das fronteiras não é eficaz porque a doença, a epidemia, como emanações naturais se disseminam facilmente, através de hospedeiros, seja o mosquito, o homem, a água, ou qualquer outro meio ou hospedeiro. A natureza detém realidade prática. O mal ou bem que fazemos a ela tem o desvelo de se multiplicar, pois o signo da natureza é a “abundância”. A ideia do bem ou mal já é um julgamento de valor humano. O rio poluído, o vemos como um mal, mas a natureza vê tudo como abundância. O mosquito da dengue que se reproduz é uma abundância natural. Não devíamos achar isto bom ou mal, mas apenas trabalhar para propiciar condições naturais para que isso não ocorresse.

O doce consumismo, o prazer de se alimentar num fast food cujo consumo gera o lixo dos descartáveis, o capinho, o saquinho, a bandeijinha, a canudo, etc, é apropriado pela natureza de forma diferente do ato inicial de consumo. Pagamos pelo que consumimos, mas não pagamos pelo lixo e outras tantos consequências que o consumo gera. Pagamos pelo fruto que consumimos no super mercado, mas não pagamos pelo agrotóxico que lhe foi empregado, ou, até, pagamos, porém sem nenhum controle das consequências desencadeadas. O veneno do fruto sobre nós, sobre a natureza, sobre os rios e mares, sobre o solo, com certeza, tem um preço ou impacto sobre a natureza, com efeitos econômicos reais. A má qualidade da água que se bebe ou que se banha é um efeito real. Os lixões como meio de contaminação humana e ambiental é um efeito real.
Poder-se-ia pensar que o consumo, como ato com repercussão monetária econômica, gera o tributo para o Estado, e o Estado, por sua vez, deveria cuidar das consequências que o consumo gera na natureza. Deveria... Mas quem é o Estado senão o resultado de todos os quereres dos cidadãos. O povo é que, conforme seu grau de consciência, comprometimento e organização política, é que decide e constrói seu destino. Pensar num Estado provedor, que age independente da organização dos indivíduos, é querer ser por demais ingênuo.

Pois bem, trouxe alguns temas à reflexão, que denotam como nossa sociedade se organiza em torno do consumo, e, diga-se, “como se organiza de forma incipiente e temerária”, sempre elegendo o fato da produção e consumo como se fosse a geração de riquezas, quando, na verdade, as relações naturais várias, que defluem do fato do consumo, são entregues ao ocaso.

Querer considerar a crise como se fosse “a crise da falta do dinheiro”, significa comportar-se como o drogado, cujo corpo e a mente estão mutilados em decorrência da droga, é, paradoxalmente, acredita na droga como a única solução para seu martírio.

Na próxima semana continuaremos caminhando.

Saravá!

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