ENSAIO SOBRE A CRISE III
Vamos
caminhar um pouco mais e continuar refletindo sobre a crise de valores com a
qual temos convivido na ambiência da era contemporânea e na feição do Estado
liberal em nossa experiência ocidental.
Nos
textos anteriores, sustentei que, conquanto se projete sobre o âmbito econômico
e implique condições de vida e meios de subsistência das pessoas, o cerne da
crise é valorativo, pois diz com os valores que foram se sedimentando para a
construção de uma moral social que dá sustentação ao estado liberal.
Vivemos
uma crise que entendo ingênuo conceber se tratar de uma crise dos negócios, de
falta de perspectiva para o comércio. As empresas, os negócios, muitos estão
vivenciando situação econômica grave ou fechando as portas neste nosso mundo
ocidental, mas penso que querer apreender este fato como retrato da crise,
significa tomar apenas um detalhe como se fosse o todo.
Aqui trago à lembrança a doutrina
de base marxista, que fala com propriedade sobre as consequências perniciosas
da acumulação do capital. A distribuição assimétrica do capital já é, por si,
um fato gerador de crise, pois enquanto uns sofrem da falta de capital outros
os têm em abundância. Tanto na falta como na abundância o capital tem gerado
miséria, pois vivemos no mesmo mundo e é inconcebível se dar ao luxo de tomar
um caríssimo vinho enquanto há crianças morrendo de inanição na África em
outros tantos lugares.
Esta assimetria é a evidência,
além de uma desumanidade e miséria moral que se encontram em sua gênese, também
de uma miséria material, com reflexos profundos na natureza. Exemplifico: uma
Favela deixada a esmo, sem saneamento básico, onde convivem adultos e crianças
expostos a riscos e sem tratamento médico, traz malefícios a toda comunidade
envolvida e a sociedade de uma maneira geral, ante o potencial de gerar epidemias
de base viral e bacteriana, provenientes dos desarranjos naturais causados pela
falta de higiene.
Esta assimetria econômica, na
verdade, não tem fronteiras. É ingênuo considerar que sua riqueza, ou seu
dinheiro possam comprar sua felicidade. Os EUA, nação rica, esta exposta às
epidemias provenientes de qualquer país do mundo, assim como o Brasil ou
qualquer outro país também estão expostos. O controle das fronteiras não é
eficaz porque a doença, a epidemia, como emanações naturais se disseminam
facilmente, através de hospedeiros, seja o mosquito, o homem, a água, ou
qualquer outro meio ou hospedeiro. A natureza detém realidade prática. O mal ou
bem que fazemos a ela tem o desvelo de se multiplicar, pois o signo da natureza
é a “abundância”. A ideia do bem ou mal já é um julgamento de valor humano. O
rio poluído, o vemos como um mal, mas a natureza vê tudo como abundância. O
mosquito da dengue que se reproduz é uma abundância natural. Não devíamos achar
isto bom ou mal, mas apenas trabalhar para propiciar condições naturais para
que isso não ocorresse.
O doce consumismo, o prazer de se
alimentar num fast food cujo consumo
gera o lixo dos descartáveis, o capinho, o saquinho, a bandeijinha, a canudo,
etc, é apropriado pela natureza de forma diferente do ato inicial de consumo.
Pagamos pelo que consumimos, mas não pagamos pelo lixo e outras tantos
consequências que o consumo gera. Pagamos pelo fruto que consumimos no super
mercado, mas não pagamos pelo agrotóxico que lhe foi empregado, ou, até,
pagamos, porém sem nenhum controle das consequências desencadeadas. O veneno do
fruto sobre nós, sobre a natureza, sobre os rios e mares, sobre o solo, com
certeza, tem um preço ou impacto sobre a natureza, com efeitos econômicos
reais. A má qualidade da água que se bebe ou que se banha é um efeito real. Os
lixões como meio de contaminação humana e ambiental é um efeito real.
Poder-se-ia pensar que o consumo,
como ato com repercussão monetária econômica, gera o tributo para o Estado, e o
Estado, por sua vez, deveria cuidar das consequências que o consumo gera na
natureza. Deveria... Mas quem é o Estado senão o resultado de todos os quereres
dos cidadãos. O povo é que, conforme seu grau de consciência, comprometimento e
organização política, é que decide e constrói seu destino. Pensar num Estado
provedor, que age independente da organização dos indivíduos, é querer ser por
demais ingênuo.
Pois bem, trouxe alguns temas à
reflexão, que denotam como nossa sociedade se organiza em torno do consumo, e,
diga-se, “como se organiza de forma incipiente e temerária”, sempre elegendo o
fato da produção e consumo como se fosse a geração de riquezas, quando, na
verdade, as relações naturais várias, que defluem do fato do consumo, são entregues
ao ocaso.
Querer considerar a crise como se
fosse “a crise da falta do dinheiro”, significa comportar-se como o drogado,
cujo corpo e a mente estão mutilados em decorrência da droga, é,
paradoxalmente, acredita na droga como a única solução para seu martírio.
Na próxima semana continuaremos
caminhando.
Saravá!
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