O CARPINTEIRO DAS PALAVRAS
ENSAIO SOBRE A CRISE II
ENSAIO SOBRE A CRISE II
Rememorando o que dizia no texto
anterior “Ensaio sobre a Crise I”, que a crise é muito mais valorativa ou fruto
das nossas concepções, julgamentos e percepções, bem como que a sociedade
deusificou o dinheiro de forma a pretender que tudo nele se convole e o
dinheiro passe a ganhar vida própria e mediar as relações. Quando digo
sociedade, quero me referir ao próprio homem que concebe valores, o que gera
culturas, que soam ter vida própria e o homem sente-se tão confinado a elas, parecendo
até querer se livrar da aparente prisão ou, de outro modo, jurar de pés juntos
que¸ em sã consciência, nunca admitiria que impôs sobre si mesmo tais valores.
Porém, paradoxalmente, foi este mesmo homem que concebeu e quis para si de caso
pensado tais valores.
Esta questão da hermetização da
economia ou de pretender um certo automatismo ou a fórmula perfeita para
perpetuar as relação tal como uma engrenagem, parece sedutora, mas vejo que a
experiência tem demonstrato que este aparente atalho tem nos custado caro.
Há várias evidências que denotam
tal carestia. Se tudo precisa passar pela sociedade de consumo e ter uma
representação pecuniária, o reflexo disso é que o que há de dinâmico na vida
finda por não ser percebido nesta lógica ortodoxa de comparar o que há de vivo
com a metrificação quantitativa e abstrata do papel moeda, e daí à mumificação.
Se vendo um vinho excelente e raro por um preço que valoro bastante alto
proporcional à qualidade do produto no mercado e, de outro lado, o sistema é
impotente para valorar todas as demais relações periféricas à produção do
vinho, desde as relações de trabalho, a poluição, o impacto sobre a natureza,
sou erroneamente conduzido a concluir que o valor da produção do vinho é o
resultado do preço do produto e o que recolho pela venda respectiva, quando na
verdade a produção do vinho são todas as relações que gera em dinâmica
confluência com a natureza e as consequências respectivas.
O dinheiro não
sabe pensar com polaridades opostas ou transversas, pois o homem tende a
valorar somente a relação da produção para o consumo e todas as
n-demais-relações ficam ao ocaso. Exemplifico:
se os agrotóxicos custam o valor correspondente a utilidade que vá ter
para os agricultores que desejam a certeza na colheita do fruto e aparência
desejada, qual o valor pecuniário que se possa dar ao tanto que o agrotóxico
agride a natureza, a biodiversidade e a saúde humana? É lógico que tal impacto
do agrotóxico sobre a natureza possui um valor, que nem precisaria da mediação
do dinheiro para dizê-lo valor vez que possui valor-em-si, ou seja, a ação do
agrotóxico sobre a natureza pinta um retrato real ou desencadeia relações reais
na natureza.
Mas, seja como
for, a cultura do dinheiro, na feição que lhe dá seu protagonista-homem, teima
em se deter na aferição de valor da relação de consumo, ou seja, na lógica de
uma só direção, no fluxo da venda ou desova no mercado. Para as demais relações
adjacentes à relação de consumo, não há o interesse apriorístico em valora-las,
porque daí a ilusão do produtor/vendedor de produzir mais valia se
desvaneceria. Via de regra, o produtor
tende a omitir ou tentar esconder os efeitos econômicos indesejados da
produção, tais, por exemplo, o despejo dos dejetos de um matadouro no rio ou do
agrotóxico no lençol freático, porque não quer ter que arcar com custos que
diminuam seus lucros.
O interessante é
que estas relações são econômicas com vida própria, isto é, existem
independente da aferição quantitativa da pecúnia. Um agrotóxico ou dejeto
químico de uma industria que é jogado ao rio e causa mortandade de peixes,
fauna e flora e até de pessoas tem uma dimensão econômica-de-per-si, pois a
economia mora na natureza. Caso não restar uma gota de água sequer no mundo não
haveria dinheiro que pagasse pela gota, pois em sua materialidade existe uma
ínsita e insofismável economia que até zomba do dinheiro.
Disse que o
homem tende a querer omitir o que não lhe convêm, como, por exemplo, quando
despeja poluição de forma inconsequente na natureza. Via de regra, faz isso
porque não lhe custa aparente nada, como é muito comum acontecer no campo ou
cidades do interior, onde não há controle ou fiscalização referente aos
impactos dos agrotóxicos das lavouras sobre a natureza, ou sobre a poluição dos
matadouros nos rios e lençóis freáticos. Somente sentirá o aspecto funesto deste
impacto poluidor causado quando for, por ventura, multado pela autoridade
ambiental, ou, incidentalmente, tiver algum prejuízo consigo ou seus
familiares, por exemplo, a conspurcação ou envenenamento da água que se bebe, a
qualidade da água de se tomar banho ou de se nadar no rio.
Comecei o
texto dizendo da burrice do dinheiro para querer tudo nomear, em meio a uma
natureza na qual a expressão do valor é dinâmica, pois o rio da natureza não
para. Sua capacidade de tudo comunicar é inerente. Disse também que o homem a
princípio tende apenas a querer atribuir versão econômica, no sentido de “pecuniária”,
ao que lhe interessa, isto é, à relação de consumo.
A questão que
daí se desvela é que, ainda que se quisesse dar uma conotação em padrão
monetário, de todas as relações naturais envolvidas num determinado processo de
produção, resultaria em alguma utilidade? Por exemplo, se todas as peças do boi
esquartejado no matadouro valem R$ 1.000,00, o tratamento adequado das sobras
ou dejetos da produção valeria, por exemplo R$ 250,00, a observância das leis
trabalhistas valeria mais R$ 250,00 e assim por diante. Mas, daí, o que eu
faria com este valor contabilizado senão no encarecimento da minha produção? É
claro que nestes três preços só um corresponde ao crédito, pois os outros dois
correspondem aos débitos.
Sem querer pôr
um ponto final na questão, vamos pensar sob outro ângulo. É possível aquilatar
os valores envolvidos numa relação produtiva sem ter que eleger o dinheiro como
mediador deste processo? Ou seja, valer-se de meios sustentáveis de produção
mediante o engenho da consecução de meios naturais? É uma questão instigante.
Em nossa sociedade, quando temos uma doença recorremos ao médico que nos
receita o produto-remédio que temos que comprar. Compramos as verduras que
consumimos, pois, via de regra, não temos o costume de cultivar hortas em casa
ou comunitariamente.
Pensando numa dita produção sustentável que necessite o
quanto menos da ideia da compra do produto ou antídoto, lembro que na minha
infância passava as férias na fazenda do tio Sebastião, que era um homem
avançado para sua época, e que produzia o gás utilizado para o cozimento do
alimento de casa com esterco das suas vacas armazenado em tanques e sob
pressão. Logicamente, ele gastou dinheiro para fazer a alvenaria dos tanques
com cimento e tijolo e também gastou com o encanamento para levar o gás até sua
residência, mas a economia que obteve foi considerável, pois dispensou para o
resto da vida a compra do gás e a demanda de armazenamento em bujões e todas as
relações derivadas da produção do gás.
Uma fazenda, encravada na natureza, é um
centro de imputação de relações naturais e a observação e pesquisa destas
relações pode trazer muitos alentos e resultar sustentabilidade, por exemplo,
tratamento adequado do lixo através de meios naturais.
Na próxima
semana continuaremos caminhando, aprendendo com a crise, procurando entender a
dor da natureza em face das agressões que lhe perpetramos e procurando entender
o que a natureza tem a nos ensinar. A natureza não cobra nada em pecúnia por
essas agressões, mas pode ter certeza que a natureza devolve pra gente com
juros e mais juros, vide, por exemplo, a desertificação e suas consequências
funestas, fruto do desmatamento.
Saravá meu
povo!
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