sexta-feira, 5 de agosto de 2011

APONTAMOS PARA UMA FILOSOFIA HOLÍSTICA DO DIREITO

Autor: Marcelo Othon Pereira, Mestre em Direito Político-Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
Título Geral: Apontamentos para uma Filosofia Holística do Direito






Sumário:

1. Crítica ao garantismo, pedra de toque do modelo liberal......................................15

1.1. Os direitos, sob garantia, foram insculpidos como se universais fossem...........................................................................................................16

1.2. Os direitos-tipos sempre geram dissensões, pois que não há unanimidade sobre o direito a garantir / garantir direitos a uns o é em detrimento de outros......................................................................................18

1.3. A inspiração poética nos liberta de nossa pequenez racional................20

1.4. A idéia de Contrato Social foi forjada a custa de incutir idêntica razão para cada um dos contratantes, bem como igual expectativa de adesão ao pacto..............................................................................................................20

1.5. a cautela de aderir ao pacto não é um por um apelo prudencial, mas devido ao medo.............................................................................................21

2. O modelo pragmático: ordem ou desordem? Da separação entre o direito e a moral e das conseqüências funestas daí advindas....................................................22

2.1. O modelo pragmático de Ordem tanto tutela o bem como o mal...........23

2.2. A crítica ao modelo pragmático-utilitarista tem aplicação corrente no campo do “desvio de finalidade”....................................................................24

2.3. Não é possível enquadrar condutas em um conceito-tipo, uma vez que não há como polarizar (ou isolar num tipo) somente a licitude ou ilicitude...........................................................................................................24

3. Do apelo pragmático ínsito à perspectiva de efetividade prática da Ordem preconizada pela Dogmática Jurídica. ......................................................................25

3.1. A efetividade prática preconizada pela Dogmática Jurídica não se mantém, pois que não se busca debelar o mal pela raiz, mas apenas lidar com efeitos e com isso dar azo a tantas outras seqüelas.............................25

3.2. A proposta de prática preconizado pela Dogmática Jurídica exacerba a ação repressora, deixando à reboque a promoção social / Em outras palavras, atém-se com a repressão (e, diga-se, se desincumbe deveras mal desta tarefa), e deixa o aspecto do “prêmio” entregue às baratas...........................................................................................................26

3.3. Há um grave equívoco em se considerar o monopólio da força como monopólio da violência pelo Estado. Somente um ente soberano pode deter a força. A soberania é do povo (é o povo o epicentro dos direitos e não o Estado) e só pode conquistar organização, mediante o exercício digno da cidadania, hipótese em que a força será a expressão amorosa desta organização. O amor é força (pertencente ao âmbito empírico – real), mas sem violência, sem degradação. A violência não é inerente ao âmbito empírico, mas apenas um acidente. Não se pode perquirir da violência na esfera material (por ex, a morte do corpo físico), mas no âmbito da intenção do agente. A força violenta nunca será ordem. O povo, em estado de violência, ainda é soberano (cf. Princípio da Efetividade Prática), mas sem poder usufruir de sua soberania, tal como uma criança que não pode responder pelos seus desacertos..................................................................27

3.4. Tríade principiológica: promoção; prevenção; punição..........................28

3.5. O direito não é delegação/garantia, mas conquista...............................28

3.6. O modelo pragmático é uma pantomima, onde e impossível separar bem e mau, ordem e desordem. O modelo pragmático reforça o preconceito do que “a ocasião faz o ladrão”. Acaba desembocando na indução de comportamentos, à maneira behaviorista (condicionamento social)............................................................................................................29

3.7. A exacerbação do modelo repressivo (condicionamento através da violência) paradoxalmente contribui para o aumento da criminalidade.........30

3.8. Interesses primários e secundários........................................................30

3.9. Releitura do princípio dogmático da “certeza da pena” através do paradigma holístico........................................................................................31

3.10. O temor da pena não serve aos propósitos da erradicação da criminalidade / os meios de adaptação de cada segmento social variam de molde a ser impossível firmar uma moral dominante com base nos costumes / aplicação do princípio da efetividade prática..............................32

3.11. A romântica perspectiva cognitivista do contrato social.......................33

3.12. O cálculo hedonístico não edifica, mas, ao contrário, deita reflexos perniciosos à sociedade................................................................................34

3.13. É impossível estabelecer o interesse só na base de um prurido orgânico, à maneira do dualismo dor-prazer / a superação do modelo pragmático requer o resgate do homem como humanidade.........................35

4. O mito do Estado-Juiz dizer o direito.........................................................................................................................35

4.1. a laicização tem o condão de querer reduzir tudo a reflexão e objeto de apreensão conceitual, bem como depurar o bem do mal, ao passo que sob a perspectiva da revelação a experiência da humanidade é real com todos os seus matizes, sejam eles interpretados como bons ou maus / é tolo querer negar a realidade sob o pretexto de que esta realidade seja hostil / a verdadeira ciência se constrói sobre o legado que temos (isto é, não sujeito à clivagens ou interditos), seja ele qual for / não é a teoria que informa a prática, mas a prática que deve informar a teoria.........................................36

4.2. A tola perspectiva preconizada pelo “Contrato Social” do abandono do estado de natureza........................................................................................36

4.3. Sobre a pretensão da dogmática jurídica de extremar zetética e prática / na dimensão da graça divina (pura revelação) não há lugar para o dualismo teoria-prática..................................................................................................37

4.4. Crítica ao direito como categoria universal.............................................38

4.5. O direito não se dá, mas se conquista. Seu gozo é personalíssimo, não no sentido de uma propriedade do sujeito, mas que o direito se confunde com a própria expressão do indivíduo. O direito nunca se porta como um objeto do indivíduo, mas tem uma relação dinâmica com a experiência do indivíduo. Não há direito sob inércia. Os direitos estão vivos nos indivíduos. Cada relação (por ex, um colchão velho jogado fora – res derelicta) tem multiplicas implicações, que podem, inclusive, exorbitar um contexto de indagações presentes. O direito pode mudar sua feição conforme ditado pela experiência....................................................................................................39

4.6. Sobre a proposta formalista kantiana e o Princípio Regulador. É possível existirem conceitos sem substância ou sujeitos a uma promessa futura de preenchimento? Por exemplo, quando falo em “dignidade da pessoa humana” me reporto a algo real? Se negativa a resposta, tal conceito seria inverídico, ou, ao contrário, o conceito pode subsistir independente da constatação da realidade?.............................................................................41

4.7. Sobre o monopólio da força pelo Ordenamento Jurídico.......................42

4.8. O amor não é Princípio Regulador (no sentido de “um algo” que, por representação, supre a ausência de um “outro algo”), mas efetividade, Princípio-que-vale; Princípio-valor.................................................................42

4.9. Ordem Repressora Versus Ordem Promotora.......................................43

4.10. O lugar-comum da pena encarada como objeto de temor prostitui o interesse dos indivíduos e muito menos serve aos propósitos da Ordem. A idéia de que a “boa pena” incita ao cometimento de crime deriva de um preconceito que é cria do modelo pragmático, referente à inculcação nos indivíduos dos interesses secundários (isto é, a apologia do se conduzir mediante a perseguição dos interesses egoísticos, em detrimento da disseminação de valores morais – interesses primários; dignidade da pessoa humana). A “boa pena” não é a ocasião de se locupletar do Estado, buscando uma forma parasitária de sustento, mas, sim, a “boa pena” no sentido da experiência que edifica o indivíduo, de molde a torná-lo multiplicador do bem, de molde o que o indivíduo incorpore valores morais, de molde a que o indivíduo tenha acesso à educação e se torne crítico, a ponto de compreender o malogro da perspectiva (diga-se, subalterna; de baixo auto-estima) de se locupletar ou se tornar um peso para o outro...............................................................................................................43

4.11. Crítica ao monopólio da função jurisdicional pelo Poder Judiciário......45

5. Crítica ao modelo liberal hedonista........................................................................46

5.1. Quem tem acesso ao Poder Judicário, via de regra, é o homos economicous (isto é, inserido no sistema de mercado). Direito suscetível de ser invocado perante o Estado não é aquele que possui evidência econômica de per-si (tal, a qualidade do ar que se respira; ou o nível de ruído nas grandes cidades), mas somente aquele que possa ser exprimido em pretensão pecuniária. O monopólio do valor pelo dinheiro é um acinte à natureza. Quem detém o valor é a natureza (relação econômica em-si) e não o dinheiro (fetiche sem vida)..........................................................................46

5.2. O lucro não é padrão de excelência, logo não pode funcionar como um valor de progresso social. De outra banda, o prazer hedonista não pode ser guindado à faticidade empírica. Seja porque o prazer não se confunde com a expressão singular do indivíduo (isto é, o prazer é um reducionismo da magnitude empírica do indivíduo – a expressão do individuo não comporta rótulo, seja ele o prazer ou qualquer outro adjetivo), seja porque se o prazer fosse faticidade empírica seria um determinismo sobre o indivíduo........................................................................................................47

5.3. A função normativa de mediar as relações econômicas, atribuída ao dinheiro pelos homens, não soe alcançar o desiderato almejado. Somente o homem pode vivenciar as relações econômicas, porque o homem é natureza e experimenta a economia de forma sui generis. O homem é o centro de imputação de direitos e deveres, não podendo delegar esta atribuição a um ente inanimado..............................................................................................49

5.4. A idéia da “mais valia” tem como ponto de partida a crença equivocada de que o dinheiro pode apropriar o valor. A “mais valia” sequer tem o condão de polarizar forças (por ex.: rico-pobre), uma vez que as relações econômicas ocorrem na natureza, e não por uma convenção linear (tipo: mais-menos) como soe acontecer com a “mais valia”. O exprimir da força se encontra na natureza.....................................................................................49

5.5. A perspectiva igualitarista não pode ser contraponto da mais-valia, porque a mais-valia não é parâmetro sobre o qual se possa deduzir um contrário. A mais-valia é apenas uma diferença medida por um padrão numérico, não exprimindo a priori nenhuma relação ponderável. O materialismo marxista não funda uma moral. O igualitarismo é uma idéia tão abstrata quanto à mais-valia. São ambas as pretensões utópicas, isto é, sem evidência empírica.........................................................................................50

5.6. Querer repartir a mais-valia a bem de um fim igualitarista é como querer matar a galinha dos ovos de ouro na tola pretensão de encontrar a fonte...............................................................................................................51

5.7. A natureza é uma magnitude insuscetível de ser medida por qualquer padrão abstrato, a exemplo do dinheiro, e mesmo que fosse um padrão concreto, não se prestaria a medir a natureza. A natureza é um valor-em-si, daí sua expressão econômica. A natureza já fala por sua medida, e daí não necessita de representação. Se expressa de per-si, sem cartão de visita. A razão não domestica a natureza. O homem, no seu afeto, é natureza viva (espírito da natureza) – natureza em movimento. O afeto é antítese de qualquer determinismo/estagnação. Não existe determinismo na natureza.........................................................................................................53


6. O engodo de ancorar o direito na verdade – o mito da neutralidade científica......55


6.1. O empirismo e a tentativa de substituir o paradigma da transcendência inatista pelo paradigma da imanência. Sobre o malogro da tentativa de incutir o empirismo no âmbito prático mediante à apologia dos princípio da dor e do prazer. O hedonismo, a par de não alcançar a dimensão empírica que se lhe quer impingir, funciona como forma sub-reptícia de imposição de uma rígida disciplina......................................................................................55

6.2. O mito da neutralidade científica atrelado à concepção do determinismo natural. Não é possível afirmar o determinismo em meio ao dinamismo natural. A ilusão que temos de um “dito” determinismo só é possível mediante a restrição e controle de variáveis, atrelada a outro dogma: o de que o observador não pode interferir na experiência....................................55

6.3. O homem é também natureza e efetivamente nela interfere. A justificação da verdade é necessária à volição? A exigência da verdade não passa de um capricho do ego........................................................................56

6.4. Não existe a busca da verdade como um mister racional. A crença na verdade não é uma exigência do ego, mas uma implicação natural do homem – a razão de ser................................................................................57

6.5. A exigência da verdade é uma forma de preconceito e tem como conseqüência o sectarismo: a divisão dos homens segundo suas opiniões.........................................................................................................58

6.6. A idade moderna pretendeu refutar a idade média advogando um discurso da verdade, instrumento que não é hábil a tal refutação. Não é a verdade que está em jogo, até porque é impossível isolá-la da vontade, esta sim efetiva. A verdade nunca se porta como exigência ou meio para qualquer fim que seja. A verdade é simplesmente o destino natural de confluência das forças. O porto seguro. O que tem luz própria....................59

7. Kelsen e a ilusão de refletir sobre o direito natural como objeto de cognição.......60

7.1. A “constatação” da existência do mal no mundo é um equívoco, bem como querer daí deduzir a inexistência/impotência da Justiça Divina. A teodicéia não pode ser colocada como questão, seja para os que refutam a Justiça Divina, seja para os que defendem a justiça divina. O ajuizar questões (exigência do ego) não é meio de fazer ciência. Ao problematizar, acreditamos que a polêmica que instauramos existe de fato na realidade. Quem garante que tal pressuposto exista de fato? A realidade deve ser vivida, percebida, sentida. Nomear a realidade, via de regra, nos afasta da realidade, uma vez que passamos a vivenciar a ilusão da realidade. É impossível reduzir a realidade à bagatela de uma hipótese racional. A realidade é sempre revelação – existência de fato e não petição de princípio.........................................................................................................60


8. A imposição da disciplina é a primeira das cogitações do modelo hedonista........62


8.1. A doutrina do individualismo tem como corolário a preocupação com o outro desde que represente potencial ou efetivamente uma ameaça. A idéia do Contrato Social foi forjada nestes moldes. A verdadeira prudência assenta na solidariedade, isto é, a preocupação incondicional com o outro.63

8.2. O movimento pela subjetivação dos direitos objetiva garantir posições de privilégio. Está conforme uma sociedade estratificada em castas...........64

8.3. O método da abstração, conquanto sirva ao apelo retórico, se afirma sempre na negação, isto é, na exclusão de parte da realidade. É impossível exprimir o princ. da causalidade através de uma sentença. Seja porque a sentença não pode dizer tudo, seja porque, ainda que pudesse, não é de se dizer apenas (isto é, confinar ao mundo da teoria) aquilo que deve ser ínsito à expressão de nossa humanidade. O direito não está nas sentenças, ou em qualquer interpretação por mais estilizada que seja, mas no espírito do povo. A voz do povo é a voz de Deus. Somente o amor (força inteligente – força + espírito) une...................................................................................................64

8.4. O conhecimento das coisas do mundo não almeja um significado unívoco, nem um fim teórico em-si, uma vez que as coisas do mundo estão atreladas a nossa experiência e volição. O significado das coisas muda conforme o contexto e o desiderato. O exemplo da “pedra” e da “descoberta da quebra do átomo”. Crítica a romântica perspectiva empirista do ato de conhecer. O homem não pode se despojar do seu afeto/sintoma, como se pudesse conhecer apenas pelo intermédio dos sentidos e razão. Não há ponto de descontinuidade entre homem e natureza. O homem se revela como natureza...............................................................................................65

8.5. A falsa concepção do “voluntarismo” forjado como “teoria que se faz passar por prática ou que informa a prática”. A expressão da vontade nunca nasce de uma imposição. A expressão da vontade não é uma concessão da teoria. O amor, como princípio-valor apodítico, nos insere no âmbito de graça. Isto é, um âmbito que nunca perde o sentido, isto é, no qual o “sentido” (fundamento de validade) já descansa em sua natureza (não é por convenção, mas de direito). O amor, mais que uma convenção, é querido, realizado e desfrutado...................................................................................66

8.6. A violência tende à inércia. A violência é fadada à morte. O moto-contínuo é o amor. O amor é força sem violência.........................................67

8.7. O momento da alienação da vontade, quando do pacto de aderência ao Contrato Social, é da ordem do impossível. Além de ser da ordem do impossível, ainda que possível, seria inoportuno, pois que é um contra-senso o homem alienar sua própria vontade, sob qualquer justificativa que seja. Alienar a vontade significa abdicar de si mesmo, de sua auto-estima, de sua vergonha, enfim, significa se anular a bem de um protótipo de um ser-robô (o protótipo impessoal do homem-razão aderente do pacto). A Ordem só é possível de ser alcançada no âmbito prático, mediante aceitação incondicional de eu-volitivo das pessoas, qualquer que seja sua condição no mundo. Não aceitar o acontecer-prático das pessoas significar fechar os olhos para o mundo, ou, em outras palavras, se fechar numa redoma de auto-justificação racional. O mundo acontece a todo o momento. Não há como freia-lo racionalmente. Se há uma razão possível, somente é aquela que se incorpora à prática e se torna, conforme o plantio, instrumento operante no mundo. O termômetro da razão é o afeto/amor......................................................................................................68

8.8. A pretensão à pura especulação é uma quimera. Todo conhecimento é politicamente referendado num contexto. O exemplo da quebra do átomo..69

8.9. O âmbito do valor não comporta interdito. Entre o certo e o errado existe um abismo. Entre o bem e o mal não há uma antítese ontológica, uma vez que tais instâncias se comunicam. Conforme a doutrina bíblica da redenção........................................................................................................70

8.10. A responsabilidade como paradigma de imputação dos sujeitos é uma criação dogmática. Um estereótipo necessário à imposição do Poder. No plano da realidade, os indivíduos são mais ou menos responsáveis, conforme o grau de maturidade. Não há como se exigir dos sujeitos um padrão unívoco de responsabilidade. Os mais responsáveis tem maiores ônus perante os menos responsáveis. Doutrina da caridade........................72

8.11. Porque o paradigma do certo/errado não se presta a instituir uma disciplina social?............................................................................................73

8.12. Não existe delimitação racional ou estado de defesa contra o mal......74

8.13. A idéia de autonomia/individualidade das pessoas, a par de sedutora, não significa propriamente liberdade, mas imposição de disciplina..............75

8.14. O estado contemporâneo e a crença na verdade como instância de superação de preconceitos. “Estado contemporâneo” quer dizer crença de que se chegou ao presente, na figura do gozo de um direito previamente garantido. A nova era é a era da conquista de direitos. A era do presente construindo o futuro ("o futuro se faz agora" - conquista de direitos) substitui a era contemporânea (isto é, da racionalidade; da garantia de direitos; da visão romântica da fruição hedonista do direito, tal como se pudéssemos ter propriedade sobre os direitos).......................................................................76

8.15. O endeusamento do objeto do conhecimento como signo de progresso. O saber escamoteia as intenções, que não constituem a priori propriedade do objeto, mas são simplesmente humanas. O sábio sabe para si. Não projeta o saber num objeto externo, tal um objeto mitificado, recheado de intenções e veleidades......................................................................................................77

8.16. Conhecer o mundo e agir sobre o mundo não podem ser processos distintos e estanques. O barro que Deus nos moldou desde já assumiu uma índole prática. A criança desde o ventre materno (ou até antes...) já navega no universo do acontecer prático. Traz esta semente (cuja vocação é germinar) em seu espírito..............................................................................78

8.17. A verdade encarada como produto/objeto tem como conseqüência o aviltamento do desejo. O desejo seria o cultor/adorador daquele totem externo, representado como “a verdade”. O “bem” encarado como objeto de posse significa mercadejar com o desejo. O “bem” é, mais que um atributo/adjetivo/propriedade, uma condição personalíssima do ser, só exprimível no próprio expoente do ser (isto é, não comporta representação)...............................................................................................79

8.18. Dos três paradigmas relacionados à saúde (promoção-prevenção-remediação), o mais caro é o da promoção. A promoção da saúde é um modo de ser, incorporado pelo sujeito/sociedade. É antitético à exigência, pois que o gozo o é pelo sujeito e na medida em que toma a decisão política de assim proceder. A pedagogia da promoção não é através da exigência, mas do exemplo. A promoção da saúde nada mais é que gozar a saúde, vivê-la qualitativamente, transcender à perspectiva funcional do corpo, sorrir com o corpo...................................................................................................80

9. Crítica à pretensão pragmática veiculada pelo movimento da “Querela dos Universais”..................................................................................................................81

9.1. O movimento da “Querela dos Universais” é um problematizar o universo do conceito, sem que daí possa realmente ter a pretensão da pôr o universo em questão. O esplendor do “direito natural” não habita no conceito, mas na expressão do ser. A expressão do ser logra alcançar a universalidade................................................................................................81

9.2. A perspectiva da imanência tem como pressuposto a idéia da natureza como determinismo. A idéia parece muito atraente, mas em tal habitat de determinismo não habita o homem. O homem é natureza e não é determinismo. Tem tino e vocação próprios, tem liberdade de ser. O domínio da natureza é um paradigma equivocado, ao contrário do harmonizar-se à natureza. Pensava-se que a natureza, sendo determinismo, poderia ser compreendida e controlada. A devastação da natureza pelo homem é um exemplo (ainda que cruel, ainda que pelo caminho das pedras) de que a natureza não pode ser controlada. O homem é natureza em movimento, é natureza viva. O homem-devastador é natureza doente, que não precisa propriamente de controle (ou, mesmo, é vã a tentativa de controlá-lo), mas de cura. Ainda que se tenha em mente que a natureza não pode ser controlada, os desregramentos da natureza (tal o sintoma da doença) são um clamor à harmonização da natureza (a doença aponta para a cura). Da natureza curada, colhe-se outros tantos frutos de bem aventurança, tal a água que se bebe no regato, ou o sorriso recebido......................................87

9.3. Considerações sobre o Princípio Regulador. Não é a idéia que dá fundamento de validade à realidade. Preeminência do “ser” sobre o “dever-ser”. A realidade empírica do amor é de direito (a justiça efetiva e não como dever-ser – o dever-ser sempre supõe a injusta para se firmar como tal, em meio à polarização) e de fato. O ideal na natureza, a natureza boa, dotada de vontade.....................................................................................................89


9.4. O impacto irrefletido do mal e sua generalização indevida. Somente o medo pode justificar tal ímpeto. O julgamento é uma ferramenta inapropriada para diagnosticar o mal.................................................................................91

10. O engodo do modelo liberal hedonista. O controle da natureza não é meio de edificação social.........................................................................................................92

10.1. A doutrina hedonista, ao contrário do semblante de prazer que suscita, significa imposição de controle e pretensão de disciplina. Diga-se, pretensão, pois que não atinge o fim colimado referente à harmonização da natureza. A harmonização da natureza se dá, não propriamente do duelo da dor com o prazer, mas mediante o prazer ratificado pela via do afeto. Em tal processo, a dor é importante, mas não aquela dor instituída, mas a natural/fatídica, vital para o processo de realização.......................................................................92

10.2. A sanção é natural e tem como fonte de validade o amor, que possui dimensão empírica efetiva. A sanção instituída é uma abstração sem vida. O dever-ser é uma petição de princípio, atinente à ilusão de implicar o âmbito prático/moral numa bitola cognitiva e de transformar o mundo na base de uma imposição/julgamento............................................................................95

10.3. O Sistema baseado na autoridade como ponto de amarração do Poder. A idéia de que o “melhor” fala pelos “piores”. A estratificação social chancelada pela teoria, como signo de distinção entre as pessoas. O culto ao ideal teórico, como se tivesse o dom de nos livrar dos males do mundo. O Poder instituído necessita do fetiche da autoridade porque não logra ser simplesmente “poder”....................................................................................96


11. O pensamento pragmático de Marx não logra alcançar o patamar prático.........98

11.1. A proposta pragmática marxista padece do mesmo mal que quer extirpar do idealismo: querer que uma versão abstrata faça as vezes do âmbito prático. O homem-interessado, concebido pelo marxismo, não passa de um protótipo sem vida..............................................................................98

11.2. Crítica à ideologia como instância de apropriação de sentido e dominação, em proveito do homem-interesse (objeto realmente querido - verdade verdadeira) travestido na figura do ideólogo (verdade declarada, simulada – verdade não verdadeira). Ao identificar o descompasso entre verdade real e verdade declarada, não logrou Marx pôr a descoberto o estratagema/artifício ideológico. Não é propriamente a ideologia que amofina, mas a insalubridade em si das relações. O Poder, ainda que se valha da mentira para se erigir, não se mantém, caso der ensejo à relações insalubres (produzir miséria material e moral). Não é propriamente a mentira que amofina o Poder, mas a sua própria insubsistência. O dito ideólogo não é o desalmado Mefisto, mas alguém que experimenta no seu corpo físico/emocional/espiritual a conseqüência dos seus atos. Atribuir ao dito ideólogo o mal significa fomentar lugares-comuns e alimentar uma visão maniqueísta do mundo..................................................................................99

11.3. A representação determinística da natureza é apenas um quadro na parede. A natureza está viva no homem. A natureza está em movimento e possui vontade. A “pedra” respira e compactua com os nossos anseios. Não existe “pedra” sem vida, porque a “pedra” está umbilicalmente jungida ao âmbito ético. A dicotomia entre meio natural (sujeito ao determinismo) e meio humano (sujeito ao livre-arbítrio) não se mantém. Não há solução de continuidade entre homem e natureza........................................................101

11.4. Cada ser humano é, por direito, um interferente na natureza, independente de sua condição. Princípio da Efetividade Prática................101

11.5. O engodo do fim pragmático, de garantia dos próprios interesses, colimado pelo Contrato Social.....................................................................102

11.6. A ordem sempre existe. É uma condição natural da sociedade. A ordem é, independente da interpretação que se lhe dê (isto é, se boa ou má, se isto o aquilo). Ainda que aparente desordem, sempre é ordem, pois que o prático detém soberania. A promoção das pessoas (o investimento nas pessoas) é o único caminho possível para a boa Ordem. Aquele de boa auto-estima toma para si a responsabilidade, não como um fardo, mas como uma honra....................................................................................................103

11.7. Da inspiração pragmática comum ao liberalismo e ao marxismo......105

11.8. O liberalismo e o materialismo não logram alcançar o patamar empírico da epopéia humana. Somente o amor detém magnitude empírica. Somente o amor detém realidade...............................................................................105

11.9. O ethos científico da idade moderna foi construído em meio a um cenário de relativismo valorativo. Não era propriamente a verdade que estava em disputa, mas os interesses das instituições referentes à perpetuação do Poder. Necessitou-se abraçar um paradigma de verdade, porque o “sagrado” não poderia ser substituído por um “talvez”. Em tal contexto, era necessário que a ciência se erigisse como uma moral.........107

11.10. Do relativismo moral e da constatação de que o saber está umbilicalmente ligado à motivação/interesse humano, não se vá querer coroar o ponto de vista da ideologia abraçado pelo materialismo...............108

11.11. A pretensão materialista de divisão matemática da natureza (coletivismo necessitarista) entre as pessoais não passa de uma utopia. O denominador comum entre o “eu” e “outro” não é propriamente ter o mesmo quinhão de matéria (egoísmo velado; solução pelos efeitos), mas poder cada qual expressar-se como pessoa e ser reconhecido pelos demais por suas obras. A humanidade é o elo que nos une e se espraia no amor dignificante...................................................................................................110

11.12. O interesse não pode permanecer somente na esfera da razão, pois seu lócus é a natureza. Não a natureza legada ao reino do determinismo, mas a natureza dotada de vontade.............................................................112

12. O discurso moral do empirismo. ........................................................................114

12.1. A tentativa de dar foro empírico à ética, mediante o discurso do dualismo prazer/dor. A pretensão de atingir o patamar prático naufraga em um “determinismo”. A apologia do prazer, paradoxalmente, possui a natureza de imposição de disciplina, isto é, de indução de comportamentos, mediante os estímulos de recompensa e punição. O modelo pragmático do “agir por interesses” é uma prática behaviorista..........................................114

12.2. A tentativa de Kant de firmar a precedência do espírito sobre a natureza.......................................................................................................115

12.3. Imputar significa impor (dever-ser) disciplina. A disciplina não pode ser imposta, mas deve ser querida para que possa dar bons frutos. A sanção que se restringe ao “dever-ser” não restaura a Ordem, logo não é sanção. A sanção que se crê atuante pela violência sempre necessitará de um terceiro (e este terceiro deverá ter um outro terceiro que lhe policie, e assim indefinidamente) para pôr cobro a eventual abuso de poder cometido em nome do Estado. A sanção opera na natureza e tem efetividade empírica.......................................................................................................117

12.4. A idéia de que as pessoas tem livre-arbítrio é um artifício para a imposição da disciplina e responsabilização pessoal. O livre-arbítrio é um mito necessário a imposição de uma dogmática.........................................119

12.5. O ser de afeto consegue transcender ao determinismo do prazer. O prazer, como pura excitação orgânica, é uma mera hipótese, isto é, não detém efetividade empírica..........................................................................121

13. Crítica à critica kelseniana referente à falta de consenso sobre o direito natural.......................................................................................................................122

13.1. Kelsen e a tolerância considerada como diplomacia necessária à convivência em meio ao relativismo de valores..........................................128

14. Sobre a tipificação dogmática das condutas.....................................................128

14.1. A ilusão da tipificação das condutas no simulacro do “dever-ser”. Não existe o puro dever-ser, uma vez que é o “ser” o paradigma que informa a conduta desejável. Todo o bem emana do ser. Aquele que “deve-ser” não é propriamente o “ser”, mas uma simples hipótese abstrata..........................128

14.2. O logro da tentativa fenomenológica/racional de apreender a verdade como um objeto. O mito do observador neutro versus o ser motivado e agente..........................................................................................................130

14.3. Qualquer condição/limite racional que se queira impor ao homem significa preconceito e discriminação. Não há rótulo que defina o homem, ainda que se queira defini-lo como humanidade. O homem simplesmente se expressa como ser de desejo e ação. A inerência tem precedência sobre a reflexão. A reflexão se alimenta da inerência..............................................131

14.4. O ser de desejo e ação é uma realidade. O denominado “Princípio da Efetividade Prática” significa que as pessoas interferem efetivamente na natureza. Os seres não estão à espera do esclarecimento teórico necessário (suspensão do juízo) para agir. Podem até se abeberar nos livros/sabenças, mas a escola é a Natureza. O patrimônio indelével é a humanidade que em nós habita. Está acima do saber instituído porque tem inerência. A natureza vive e respira ciência...................................................................................132

14.5. A Ordem não é uma imposição racional, mas resulta do somatório dos quereres de todos os indivíduos. A dignidade é uma conquista de cada qual. Não se trata de direito que se delega. Quanto muito, podemos contribuir para a dignidade alheia, mas, em hipótese alguma, fazer as vezes...........................................................................................................133


15. A prática é uma condição inerente ao mundo e não o resultado de um constructo racional.....................................................................................................................134

15.1. O ato de conhecer tem uma gênese eminente prática. Não há a pura zetética, a pura especulação. O ser humano é em meio às suas motivações. Não existe o receptáculo racional da verdade. O homem é natureza viva..............................................................................................................134

15.2. O homem não conhece através da razão. O processo do homem é sobretudo dramático existencial. O homem vive suas contingências. O uso da razão é apenas quanto à reflexão das experiências já vividas, e não propriamente o descortinar do conhecimento em si. O descortinar do mundo é inerência, revelação, é o sempre novo, vivido na realidade natural..........................................................................................................135

15.3. Todo saber existe num ambiente político, e não meramente especulativo.................................................................................................138


15.4. O direito não pode se valer de uma dogmática para firmar seu primado prático..........................................................................................................139

15.5. A limitação zetética operada pela dogmática só alcança termo numa perspectiva de justiça retributiva e informada pelo princípio repressivo. A dogmática é impotente para fomentar o princípio da promoção dos indivíduos. A ordem dogmática propõe um poder impessoal, isto é, não reconhece os indivíduos como célula de poder...........................................140

15.6. Uma vez compreendido que não é o Estado como construção racional que detém poder, mas os indivíduos, resta claro que o valor mais caro a perseguir é o da promoção dos indivíduos, único meio possível de edificação social............................................................................................................142

15.7. A pena a priori não quer dizer efetividade prática. Somente os indivíduos podem dar testemunho se um determinado processo social lhe foi ou não proveitoso. O verdadeiro testemunho do aprendizado se tem quando o indivíduo contribui para a edificação social, isto é, passa a ser um agente de mudança. São os indivíduos que detém soberania e constroem a sociedade. Se o Estado tem algum papel neste processo, deve atuar proativamente, informado pelo princípio da promoção dos indivíduos. Considerar que todos, indistintamente, são seres que necessitam de afeto e cuidados materiais e efetivamente traduzir tal máxima em atitudes práticas........................................................................................................143

15.8. A explicação sobre um fenômeno não quer dizer deter autoridade. A razão, quanto muito, pode ser um recorte/versão/reflexão do fenômeno. O fenômeno, como acontecer, está sempre irradiando vida. O direito não é concessão dos Doutos. A virtude não é atributo da razão. A virtude é uma vontade em realização (da ordem da revelação). A razão sempre polariza senões no seu discurso (deixa sombras). A razão se vale da contrariedade para se afirmar.............................................................................................144

15.9. A prática não é a imposição racional do que se acredita “bom” (o bem imposto). A prática é de direito, isto é, pelo simples fato da pessoa existir. A prática é uma condição inerente ao indivíduo, de desfrutar da Ordem da Revelação. O contraponto prático da imposição racional é a realização do indivíduo em sua humanidade, confirmando o primado da prática (isto é, o monopólio empírico da realidade pelo amor)..............................................146

15.10. A violência não deflui da índole má das pessoas. A violência é fruto da miséria....................................................................................................147

15.11. O dinheiro não disciplina as relações sociais. Tal tarefa cabe ao homem. Valorar a natureza, além de ser o direito do homem, é um mister familiar, pois que o homem desfruta das relações naturais. O gozo da natureza pelo homem é experiência. O homem é senhor do seu destino: pode deliberar entre viver ou não num ambiente poluído. O exemplo do cortador de lenha.........................................................................................148

16. Crítica ao dogma liberal de que “todo direito tem uma ação que o assegura”...149

16.1. A expressão pecuniária do direito não logra valorar as relações naturais. O “dizer o direito” não é um monopólio do Poder Judiciário, seja porque o direito não pode ser dito topicamente, seja porque a premência dos direitos reclama atitude proativa de todos os quadrantes sociais (a contrario sensu do Princípio da Inércia do Poder Judiciário), seja porque o direito é aquele efetivamente exercido pelo povo. O povo, não somente diz o direito, mas faz/acontece o direito. A interpretação do direito pelo Poder Judiciário não se confunde com este mister. O povo detém a soberania.....................................................................................................149

17. O estado de natureza não é a antítese da vida em sociedade. O direito o é por natureza e não por instituição. A natureza é a relação econômica por excelência. ..................................................................................................................................153

17.1. O direito reduzido a uma relação de consumo individual é somente aparência de direito. O direito deve ter magnitude gregária, para que, mediante a contribuição de todos, possa se aquilatar todos os seus matizes........................................................................................................153

17.2. É impossível a instituição da Ordem, pois que a Ordem já é ínsita à natureza.......................................................................................................155


18. O direito não existe no produto. A natureza detém direito................................157

18.1. A questão sobre o direito é ou não autopoiético não tem relevância. Direito e economia são apenas categorias racionais. A realidade não gravita em torno das categorias racionais. A relação econômica se encontra na natureza. O valor é ínsito à natureza...........................................................157

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APONTAMENTOS PARA UMA FILOSOFIA HOLÍSTICA DO DIREITO


1) Crítica ao Garantismo, pedra de toque do modelo liberal

O garantismo é sinônimo de Ordem Constitucional, posto ter sido um dos atributos mais exaltados desde a maratona de reivindicações ao Estado-Rei até o advento da ordem laica instaurada pela Revolução Francesa. Em outros termos, pode-se falar em movimento por direitos subjetivos (hipostasiamento da esfera particular ou construção doutrinária do dogma da liberdade individual) em contraposição à Ordem estamental e de castas vigente na idade média, baseada na origem pelo berço (nobreza) e no direito da terra (sedentarismo).
O garantismo, assim denominado por representar com fidelidade a idéia sintetizada na máxima de que “todo direito tem uma ação que lhe assegura”, pedra de arrimo da perspectiva laica de Estado ou Estado de Direito. O garantismo se confunde, pois, com a idéia de Ordem Constitucional e daí ao Estado-Juiz, o qual, na função de dizer o direito, exerce a tutela dos direitos.
Ainda sobre o garantismo, é oportuno considerar que por ironia do destino nasceu como um terceiro gênero ao sabor da luta de paradigmas entre a ciência emergente e o Direito Religioso de feição inatista. Tal característica pode ser verificada na “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, isto é, de um lado, uma carta ou apologia dos direitos (ordem cidadã em oposição à relação rei-súdito) e, de outro, a absolutização do direito herdada da última safra do jusnaturalismo, na pena de Locke, Rousseau e Kant. O jusnaturalismo da era moderna se diferencia daquele da idade média devido à emergência do paradigma da imanência em detrimento daquele preconizado pela escola, da transcendência (da lex divina, acima dos homens). A razão passa ser o locus onde o homem pode comungar com a divindade, isto é, não mais os homens como átomos ou coletividade abaixo do Deus ontológico e transcendente, mas os homens iluminados pela razão ou porto seguro de acesso à verdade. Some-se a isto o valor que se difundiu a partir das grandes descobertas científicas, na esteira de Galileu e Newton, de supremacia do homem perante a natureza. A dizer, o homem tornou-se mais cheio de si, uma vez que vislumbrou-se a perspectiva de controle da natureza. Natureza, esta, não mais toda poderosa e transcendente.

1.1. Os direitos, sob garantia, foram insculpidos como se universais fossem.

Acima, dissemos terceiro gênero, à guisa de enfatizar que o garantismo, a par de ter sido forjado no calor dos movimentos de oposição ao dogmatismo religioso e aos privilégios da nobreza/realeza, sob a batuta de moral científica emergente, paradoxalmente, guarda um viés inatista, haja visto sua feição universalista, ao gosto do direito natural.
Retomando a idéia de garantismo como um terceiro gênero, por ora, reproduzimos o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, seja no intuito de trazer a cotejo excerto do documento marco da Era Contemporânea e da secularização do poder, seja no afã de trazer ao primeiro plano o atributo do “garantismo” ao sabor da retórica do próprio texto:

“Declaração Universal dos Direitos Humanos

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum,

Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

agora portanto,


A Assembléia Geral

proclama

a presente Declaração Universal Dos Direitos Humanos

como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.”

O apelo jusnaturalista de feição racional pode ser aferido, dentre outros, no conteúdo idealístico dos atributos humanos, tal a “dignidade”, “direitos iguais e inalienáveis”, “liberdade”, “justiça” e, sobretudo, a pretensão universalista., isto é, de que tal ideário seja verdade para qualquer tempo e lugar (imposição racional, esta, criticada por Foucault).

1.2. Os direitos-tipos sempre geram dissensões, pois que não há unanimidade sobre o direito a garantir / garantir direitos a uns o é em detrimento de outros.

A nosso ver, o garantismo é um discurso muito eficiente à proteção dos direitos de quem já os tem, porém não dá conta da demanda de dignificação cidadã dos povos. Simplesmente, porque garantir direitos a uns significa alijar outros, uma vez que a consecução dos direitos no plano empírico sempre gera dissenções. A dizer, não há unanimidade sobre o direito. O mais paradigmático de todos, isto é, o direito de propriedade (estereotipo de direito), por mais eloqüente a tentativa de sua justificação racional, trata-se de um direito acéfalo, natimorto, a espera da estrela de que nos fala Manuel Bandeira:
A ESTRELA
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
mais triste ao fim do meu dia.

Qual seria a justificativa do direito de propriedade...? Seria um direito natural, uma fatídica e inexorável condição do homem (necessidade causal), uma prerrogativa daquele que primeiro se apossou, uma conquista do labor...? Lembramos a extensa bibliografia marxista sobre o assunto, onde a tônica é a Revolução Francesa como movimento de garantia da propriedade burguesa em detrimento do proletariado. Sem querer adentrar em maiores divagações sobre o direito de propriedade, nem, tampouco abraçar uma perspectiva coletivista de propriedade conforme o marxismo, por ora, apenas apontamos para o sintoma. Isto é, para a perplexidade que se nos apresenta ante o claudicante direito.

1.3. A inspiração poética nos liberta de nossa pequenez racional.

Inspirados no memorável Manuel Bandeira, façamos um reparo à guisa de restaurar a dignidade da estética e da poesia. Enquanto a razão, na sua grandiloqüência, esmera-se na busca do fundamento dos direitos, a inspiração poética, muito lucidamente, contenta-se com a perplexidade. Mas seu grande mérito é que tal perplexidade é sobretudo sentida. Fato tal que nos liberta de nossa pequenez racional, com vistas a alcançar uma dimensão mais humana e solidária.
O movimento de garantismo recorre aos entes ou bens ideais, tal a dignidade e igualdade, a fim inculcar os direitos. Funcionam como autênticos dogmas ou pontos de amarração do sistema, sem os quais o ordenamento rui. Rememorando os primeiros dias da academia, o princípio da igualdade de todos perante a lei é nos passado com foros de apodicticidade.

1.4. A idéia de Contrato Social foi forjada a custa de incutir idêntica razão para cada um dos contratantes, bem como igual expectativa de adesão ao pacto.

Tal apodicticidade remonta ao apelo jusnaturalístico do Contrato Social de Rousseau, onde cada dito cidadão adere ao contrato em condições de igualdade com os demais, bem como tem os mesmos motivos para fazê-lo. Qual seja, a proteção dos seus bens por uma ordem coercitiva comum a todos, momento em que a liberdade, anteriormente alienada, lhe é devolvida.
A um observador desatento, a idéia de respeito recíproco das propriedades parece ser a pedra de toque a embasar o Contrato Social e, como tal, delineando-se com foros de humanidade.

1.5. A cautela de aderir ao pacto não é um por um apelo prudencial, mas devido ao medo.

Porém, é mais sensato acreditar que o Contrato Social seja erigido com base no medo recíproco. Se a luta de todos contra todos leva ao caos social , parece que a perquirição de uma ordem coercitiva comum a que todos estejam sujeitos não possui propriamente uma índole racional, mas, antes, deriva de um cuidado pragmático, isto é, do cuidado ante a ameaça potencial do outro.
A esta altura, trazemos novamente à tona a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde se lê no seu primeiro artigo:
“Artigo I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Note-se o apelo do legislador à razão humana à guisa de inculcar nas mentes a pretensa universalidade dos dizeres da lei, bem como a idéia de fraternidade como elo de ligação.
Constata-se a falência do Estado Liberal, e os fatos assim atestam, volva-se a multiplicação da miséria material e sobretudo moral no mundo pós iluminismo e pós positivismo comteano, o recrudescimento dos preconceitos, a polarização dos sectarismos religiosos, fatos tais que nos tem infundido a constante paranóia de retorno da Idade das Trevas, malgrado o considerável avanço da civilização na seara do conhecimento e das ciências.
Se tal como consideramos linhas atrás, o Contrato Social deriva de uma regra pragmática e não propriamente racional (no sentido universalista do jusnaturalismo), daí se pode deduzir que aquele que não tem direitos a garantir (tal a propriedade) não interessa aderir ao Contrato, ou, em outras palavras, adentrar à cidadania, preferindo, portanto, a condição dita periférica ou marginal.
No escopo de superar tal impasse, cabe-nos procurar outro paradigma para o Contrato Social, uma vez que o paradigma pragmático não nos serve. Como salientado no parágrafo anterior, o paradigma pragmático não nos serve simplesmente porque implica em cisma, dissensão. Da regra do interesse (“proteção ao direito” e “prevenção em face da ameaça vinda do outro”) não se pode deduzir a conjunção dos quereres. Simplesmente, porque os interesses são diversos, as condições de cada qual são contingentes. Cada um observa o todo conforme sua lente.
A regra de garantia ou proteção de direitos não serve para instaurar a ordem cidadã, uma vez que implica em estabelecer lugares-comuns e daí à ótica de manutenção do status quo própria mesmo da perspectiva ordenadora e garantista do modelo liberal. Tal perspectiva de manutenção sempre colidirá com a polêmica instaurada sobre qual direito a garantir em virtude da diversidade das condições dos homens. Daí se pode concluir que para se imunizar da perspectiva imobilista do garantismo, a qual opera por meio de uma lógica de igualdade absoluta (Justiça Retributiva ), insta buscarmos guarida na seara da Justiça Distributiva.
A idéia de garantir direitos a quem já os tem se opõe a idéia de dar direitos a quem não os tem. Com certeza, tal antítese reclama uma síntese que opere no plano da realidade, isto é, que não permaneça somente no âmbito da retórica, que aponte para uma efetividade prática ou perseguição do direito no sentido de humanidade ou solidariedade.

2) O modelo pragmático: ordem ou desordem? Da separação entre o direito e a moral e das conseqüências funestas daí advindas

Pela regra pragmática, ninguém é obrigado a observar a lei conforme o puro dever (conforme Kant). Basta que observe a lei, ainda que a motivação seja por vias indiretas, por exemplo, não desejo cometer crimes porque não quero ser preso, ou tenho vergonha de ser encarado como criminoso perante a sociedade, ou porque tenho pavor da violência nas Prisões. Não quero ultrapassar o limite permitido ao trânsito dos veículos porque a multa pecuniária é assaz onerosa às minhas economias. A própria legislação se vale dos meios indiretos de pressão a fim de que seu império seja observado, tal como acontece no caso das multas por infração às leis de trânsito, ou às multas aplicadas em razão do cometimento de crimes ambientais. Volva-se ao Direito Tributário, no qual as Certidões Negativas de Débito (ou Certidão Positiva com Efeito de Negativa) são exigidas para que a empresa firme empréstimo junto às Instituições Financeiras, ou participe de licitações.
Digo “indireta” porque, tal como ocorre com o receio de levar uma multa no trânsito, a ordem se vale de ingredientes suasórios para desestimular o cometimento da infração, deixando a reboque o apelo moral da conduta reta, como um bem-em-si. Via de regra, a ordem se vale de sua própria impotência como fator inibidor à criminalidade, tal como soe acontecer com a introjeção social do medo ao antro das prisões, consabido que as más condições das prisões dizem respeito a uma deficiência do Estado. É ingênuo considerar que o ambiente de animosidade e terror das prisões concorre para a diminuição da criminalidade. Simplesmente, é o contrário. A violência nas prisões é a expressão instituída da criminalidade (a banalização e promiscuização da violência), no bojo do impotente modelo pragmático, que prega a observância da legalidade através do interesse egoístico/individualista.

2.1. O modelo pragmático de Ordem tanto tutela o bem como o mal.

A Ordem Jurídica contemporânea não permite que seja traçado um divisor que separe o bem do mal. Da forma como esta concebida, há uma confusão de valores tal que a observância da lei não equivale à conduta reta, bem como a transgressão torna-se desculpável em face das circunstâncias. Ora, se observo a lei não por um fim moral, mas mediante um cálculo de interesses, resta claro que a observância da lei não equivale à conduta reta. Podemos entabular a questão na base da principiologia diversa dos sistemas éticos consequencialistas e de intenção. Figure o seguinte exemplo: - um jovem atravessa a rua acompanhando a velhinha. Pergunta-se: trata-se de uma boa ação? Poderíamos arriscar dizer que sim pelo prisma da ética consequencialista e talvez pelo prisma da ética das intenções. Diríamos, importa perquirir qual foi a intenção do Jovem ao atravessar a velhinha: se era um escoteiro praticando uma boa ação; se era alguém tentando se aproximar da velhinha, porque ela tinha uma boa herança a deixar; se era alguém tentando roubar a velhinha; se era alguém tentando ter intimidade com a velhinha para se aproximar de sua bela neta; se era alguém pago para cuidar da velhinha...
Ainda que seja difícil imaginar alguém cuja boa intenção não almeje nenhum outro resultado reflexo (Por exemplo, uma beata obstinada na reza pode com tal expediente, almejar um lugar no céu, ou pode recriminar as pessoas ditas de má vida, por não agirem tal como ela; o escoteiro pode se comprazer na vaidade ou cobrar dos outros algum reconhecimento ou mesmo se sentir poderoso comparado ao estado de penúria do outro), é oportuno considerar que a ética consequencialista, por si só, não é capaz de solucionar o problema da justiça.

2.2. A crítica ao modelo pragmático-utilitarista tem aplicação corrente no campo do “desvio de finalidade”.

Volva-se a uma aplicação corrente do que aqui se diz, no campo do “desvio de finalidade” (Por ex., a instauração de uma CPI, tendo como “pano de frente” a apuração de corrupção e como “pano de fundo” um ato de perseguição política ou acerto de contas). Um projeto social, a par dos benefícios que traz, pode ser fruto de “lavagem de dinheiro”. Enfim, a Sociedade está repleta de exemplos de condutas, aparentemente bem intencionadas, cuja intenção é perversa, por exemplo, a criação de uma instituição filantrópica para fins eleitoreiros (curral eleitoral), lavagem de dinheiro; a abertura de uma rádio para divulgação política de alguém, etc.

2.3. Não é possível enquadrar condutas em um conceito-tipo, uma vez que não há como polarizar (ou isolar num tipo) somente a licitude ou ilicitude.

O crime organizado é um câncer social, mas traz benefícios, tal como possibilitar o sustento de subempregados, por exemplo, na venda de cd´s piratas, ou, mesmo, tornando os produtos pirateados mais acessíveis à população, que, do contrário, não teria acesso aos mesmos. Tal paradoxo, sugere uma ponderação entre as éticas da intenção e consequencialista, só operável no caso concreto, tendo em vista encontrar um meio termo entre a realização das justiças retributiva (punir o crime organizado) e distributiva (sancionar o lucro abusivo e a concentração de renda, visando uma distribuição de renda mais justa e o maior acesso da população aos bens de consumo), isto é, entre o viés jurídico e o político.

3) Do apelo pragmático ínsito à perspectiva de efetividade prática da Ordem preconizada pela Dogmática Jurídica

O fato é que o problema do direito não se coloca no plano da disputa de sistemas éticos, mas sim no plano da sobrevivência da dogmática como crença na efetividade prática da Ordem Jurídica, através de uma separação entre o plano zetético e o plano dogmático. Dá-se a custa de uma ressuscitação tardia da Ordem mediante a inserção do elemento pragmático, como ultima ratio para salvar a tal efetividade prática da Ordem Dogmática. A efetividade dogmática da Ordem passa ao largo da questão sobre a justiça de tal Ordem. A justiça é sacrificada, pois o apelo prático é persuasivo. Na queda de braço entre justiça ideal e segurança, dizem os dogmáticos, é necessário que se preserve ao menos a segurança, sob pena de não sobrar Ordem alguma. A racionalidade de tal sistema pragmático é só aparente, pois se refletirmos mais amiúde, constatamos que tal discurso não se mantém. Para que, segundo o conhecido vaticínio liberal, a ordem se mantenha, não é possível que a cognição sobre os comportamentos mantenha-se sempre indefinida. Por exemplo, o estuprador. Poderíamos tecer mil conjecturas sobre o porquê de sua atitude, inferir conexões várias entre o comportamento transgressor e as condições pregressas de vida...

3.1. A efetividade prática preconizada pela Dogmática Jurídica não se mantém, pois que não se busca debelar o mal pela raiz, mas apenas lidar com efeitos e com isso dar azo a tantas outras seqüelas.

Dizem os dogmáticos, se a cognição sobre o comportamento do estuprador tendesse a um plano de indefinição, não haveria Ordem possível, uma vez que as condutas ficariam a margem de qualquer disciplina legal.

Dizemos que tal raciocínio, conquanto atraente, é enganador, pelos seguintes motivos:
a) O apelo prático da Ordem é via de regra para debelar efeitos. No exemplo dado, a repressão/imputação à conduta do estuprador é apenas uma satisfação social ou um isolamento do elemento transgressor, ficando a causa do comportamento fora do alcance da lei. Mesmo a satisfação social condizente à pena, no mais das vezes, não surte efeito prático, ou surte efeito prático indesejado, vide, por exemplo, a constatação de que a prisão tem servido de escola do crime e palco do seu cometimento (daí a mencionada seqüela...);
b) do ponto de vista valorativo, o grande equivoco do apelo prático e dogmático da Ordem é que tal apelo prático se dá através da exacerbação do elemento repressivo, segundo a seguinte máxima: não transgrida, pois conseqüências funestas advirão. Infelizmente, o alto preço que pagamos por acreditar no modelo liberal diz respeito a uma espécie de venda da alma ao Diabo, isto é, para preservar nossa segurança, consentimos em dar crédito a uma Ordem que só se compromete com um lado da moeda.

3.2. A proposta de prática preconizado pela Dogmática Jurídica exacerba a ação repressora, deixando à reboque a promoção social / Em outras palavras, atém-se com a repressão (e, diga-se, se desincumbe deveras mal desta tarefa), e deixa o aspecto do “prêmio” entregue às baratas.

Explico: a Ordem é muito eficaz em reprimir condutas previamente definidas (convencionadas) como transgressoras, mas tal Ordem, por paradoxal, não garante às pessoas que, uma vez se comportando de forma reta, terão sucesso. Isto é, a ordem garante a repressão (não desobedeça aos ditames da lei, sob pena de punição), mas não garante a promoção do bem (caso obedecer aos ditames da lei, não lhe garantimos que terá sucesso). O modelo liberal desincumbiu-se muito bem do aspecto da “punição”, mas é totalmente inoperante quanto à aplicação do “prêmio”.

3.3. Há um grave equívoco em se considerar o monopólio da força como monopólio da violência pelo Estado. Somente um ente soberano pode deter a força. A soberania é do povo (é o povo o epicentro dos direitos e não o Estado) e só pode conquistar organização, mediante o exercício digno da cidadania, hipótese em que a força será a expressão amorosa desta organização. O amor é força (pertencente ao âmbito empírico – real), mas sem violência, sem degradação. A violência não é inerente ao âmbito empírico, mas apenas um acidente. Não se pode perquirir da violência na esfera material (por ex, a morte do corpo físico), mas no âmbito da intenção do agente. A força violenta nunca será ordem. O povo, em estado de violência, ainda é soberano (cf. Princípio da Efetividade Prática), mas sem poder usufruir de sua soberania, tal como uma criança que não pode responder pelos seus desacertos.

Segundo o modelo liberal, tal um valor impregnado em nossas mentes, o monopólio da força pelo Estado equivale a dizer monopólio da violência. Tal associação entre força e violência é inverídica, pois que força não é necessariamente violência. Mais que isto, o ideal de monopólio de força que toda perspectiva de civilização deveria almejar é o da força não violenta. O que é a sanção? Uma violência? Existe sanção na paz? No amor? Em verdade, na esteira dos ensinamentos de Cristo, a única sanção real é o amor.

O argumento dos liberais para justificar tal necessidade do monopólio da violência pelo Estado é o de que a violência submete e, sendo de aplicação cogente, possui efetividade prática. Trata-se de um grave equívoco assim considerar, pois a força não violenta é a única que pode alcançar o patamar prático, pelo simples motivo de que a promoção das pessoas é a única via possível à edificação social. Somente a promoção e a solidariedade social podem guindar os indivíduos à condição cidadã.
Ainda que o Estado pudesse querê-lo, não há como monopolizar a força violenta (isto é, o Estado usar de violência para conter a violência). A idéia de que o Estado interdita nossas ações transgressoras é falsa (volva-se ao recrudescimento da criminalidade – o homem é natureza - a volição opera no campo prático/dinâmico). Qualquer pretensão de interditar a natureza é fadada ao malogro. É necessário, sim, que a natureza produza bons frutos, mas tal deve acontecer no seu volver dinâmico.

3.4. Tríade principiológica: promoção; prevenção; punição.

Analogamente, à tríade principiológica da saúde, na seguinte ordem hierárquica, “1) promoção; 2) prevenção; 3) remediação”, o direito opera da mesma maneira “1) promoção; 2) prevenção; 3) punição”. O princípio mais caro é o da promoção, pois atua sobre a causa. Por exemplo, os menores de rua são potenciais transgressores, pois vivem em condições adversas, via de regra, vítimas de condições insalubres e sem ambiente familiar adequado, quiçá sem nenhuma referência familiar. Atuar preventivamente, por exemplo, é o policiamento ostensivo nas ruas. Atuar repressivamente, por ex., é o confinamento destes jovens fora do convívio social. Atuar promotora ou proativamente é fazer trabalho de base, de educação, de amparo à família, de assistência social, de implantação de ambientes comunitários, de valorização da pessoa humana, mediante a consideração de sua dignidade orgânica (direito a condições materiais satisfatórias) e afetiva (carinho, convívio social, inserção na sociedade) e perspectiva de realização (a atuação promotora faz com que aqueles, antes perigosos, tornem-se multiplicadores de bem aventurança). A força só se realiza como prática, quando se expressa como amor. O direito só se exprime em sua magnitude quando plenamente vivido em cada pessoa, como sujeito realizador do direito (isto é, que contribui para Ordem ).

3.5. O direito não é delegação/garantia, mas conquista.

O direito não é uma delegação/dação aos indivíduos, mas uma conquista social, resultante do somatório dos quereres dos concidadãos.

3.6. O modelo pragmático é uma pantomima, onde e impossível separar bem e mau, ordem e desordem. O modelo pragmático reforça o preconceito do que “a ocasião faz o ladrão”. Acaba desembocando na indução de comportamentos, à maneira behaviorista (condicionamento social).

Acima dissemos que o modelo pragmático (isto é, da observância da lei não pelo puro dever, mas conforme o dever) não permite separar-se o joio do trigo, isto é, o bem do mau, a ordem da desordem. Se uma jovem pretende sair a pé pelo bairro à noite, sua avó diz: - cuidado com aquela rua, que é perigosa, é muito escura e isolada, e você pode ser vitimada. A princípio, parece que a boa avó está dando um conselho, que é fruto da experiência própria das pessoas maduras, isto é, está agindo preventiva ou prudencialmente.
Com um pouco mais de acuidade, percebe-se que tal comportamento da vovó não passa de um condicionamento cultural forjado por este mesmo modo de ser pragmático de que se vale a lei e quiçá se valeu a Igreja ao longo de sua história (isto é, o pecado não é visto simplesmente como um mal investimento, ou como um plantio do qual não resultou bons frutos, mas deve ser evitado em virtude de ter como conseqüência a punição – o desejo da carne é tentador, o que lhe acena um semblante de vantagem, comprazimento, mas é punido com o mau). O comportamento da vovó é o de reforçar mais ainda um lugar-comum, já muito arraigado na cultura social. Qual é este lugar-comum? O de que a ocasião faz o ladrão. A rua não é perigosa, a rua não é culpada de nada. Os homens podem ser ou não violentos e ameaçadores, mas a rua nada tem a ver com isto. Acreditar, por sua vez, que a ocasião faz o ladrão ou que o hábito faz o monge, nada mais é que dar crédito a este modelo liberal pragmático, de considerar que as pessoas agem circunstancialmente (isto é, não tem desígnio próprio).
Quando disse, no início deste parágrafo, que o modelo pragmático vigente não permite separar o bem do mal (não se pode concluir que aquele que observa a lei tem uma conduta reta), tal afirmação se explica muito bem neste exemplo da Vovó. O comportamento da Vovó é o de reforçar o lugar-comum do criminoso (de um perfil de homem que se aproveita de um lugar escuro e isolado para cometer o crime sem ser descoberto – de um perfil de homem que terá uma vantagem ou um excedente da satisfação da libido mediante o cometimento do estupro). A sociedade vê os criminosos não como pessoas passíveis de ter desígnio próprio e decidir com autonomia seu destino, mas como pessoas influenciáveis, sugestionáveis, sem afeto (isto é, cujo único prazer a contar é o da satisfação animal). Fica muito evidente que a Vovó contribui para a disseminação do crime, para a disseminação dos lugares-comuns, assim como toda a sociedade, ao se iludir pensando estar agindo com prudência, quando, em verdade, está compactuando com um perverso modelo pragmático de perpetuação do mal.
O ideal que, o nosso condicionamento cultural nos impede de ver, é que tivéssemos a liberdade de andar pelas ruas, sem culpa e considerando os outros como pessoas íntegras, isto é, não influenciadas por circunstâncias (senhoras do seu querer). Hodiernamente, chegamos ao paradoxo de nos trancafiarmos em nossas casas a bem da tão incutida segurança, que em verdade é uma prisão. Como dito, é o paradoxo de perder a liberdade sob a justificativa de uma tal segurança hipócrita.

3.7. A exacerbação do modelo repressivo (condicionamento através da violência) paradoxalmente contribui para o aumento da criminalidade.

Outro evidente paradoxo é o da exacerbação da máquina repressiva do Estado concomitante ao vertiginoso aumento da criminalidade. Muitos ainda crêem que o Estado precisa continuar se armando e aumentando o efetivo da polícia, como receita para conter a criminalidade. Parcela significativa da Sociedade, na esteira da propaganda de políticos mal intencionados, que usam a questão da segurança para infundir terror na população, acreditam que os crimes, ditos hediondos, tem que ser tratados com penas severas. Políticos mal intencionados à parte, o fato é que tal expediente de acreditar que os crimes serão debelados mediante a cominação de penas severas aos criminosos, não passa daquele modelo liberal pragmático já bastante destrinchado ao longo do presente livro. Investe-se no medo como forma de dissuadir da prática de determinadas condutas, expediente tal que não passa de um condicionamento social, a induzir o comportamento das pessoas mediante a manipulação de seus interesses secundários (no caso, o pavor da pena).

3.8. Interesses primários e secundários.

O certo seria tentar influir sobre os interesses primários dos indivíduos. O Estado deveria estar moral e pedagogicamente preparado para influir nos interesses primários dos indivíduos, desestimulando a prática de crimes por tratar-se de um mal-em-si, e não por conta dos efeitos que advirão de sua prática. Quando digo que o Estado deveria estar moral e pedagogicamente preparado, digo que o Estado deveria dar o exemplo da reta conduta, mediante a eliminação da corrupção no seu bojo, mediante implemento de condições satisfatórias de vida para a sociedade, mediante parceria com projetos nascidos no seio da sociedade, por seus quadrantes, mediante a incorporação pelo polícia, através de atitudes, de princípios éticos, de molde à sociedade ter no policial um amigo e concidadão e não alguém de quem se deve ter receio. Repito, não há como dissuadir alguém do crime, ameaçando-lhe das conseqüências respectivas. Tal prática é análoga àquela religiosa de queimar o pecador na fogueira do Inferno. O medo não é forma de dissuadir ninguém. Se acaso há um meio de se dissuadir da prática do crime, não é infundindo medo/ameaça, mas simplesmente demonstrando mediante exemplos que o crime é em-si uma conduta desvantajosa, prejudicial a todos e principalmente ao criminoso. Sobretudo, não é a prática do crime que deve ser dissuadida, mas a reta conduta é que deve ser fomentada.

3.9. Releitura do princípio dogmático da “certeza da pena” através do paradigma holístico.

Mesmo se, falando a linguagem dos dogmáticos, se quiser invocar a necessidade da “certeza da pena” para que a Ordem possua credibilidade, tal “certeza da pena” deve ser entendida como a pena que regenera, que possui efetividade prática, que se traduz em exemplo de uma atuação proativa e conseqüente do Estado, cujos meios de repressão, a par de eficientes e humanizados, estão em harmonia com as ações de promoção social. Neste contexto, a “certeza da pena” estaria conforme a efetividade prática, isto é, a ordem sancionada na força-não-violenta, o amor. Aliás, como dissemos atrás, a única sanção real, uma vez que restaura o sistema. A sociedade tem o ônus em dobro para com os criminosos, tal como de crianças que necessitassem de cuidados especiais se tratassem. E, no mais das vezes, o ambiente fértil à criminalidade/doença mental nasce em meio às contradições sociais (condições insalubres). A criminalidade pode seguramente ser apontada como um sintoma da deseducação e condição inapropriada de existência.

3.10. O temor da pena não serve aos propósitos da erradicação da criminalidade / os meios de adaptação de cada segmento social variam de molde a ser impossível firmar uma moral dominante com base nos costumes / aplicação do princípio da efetividade prática.

A leitura equivocada do fenômeno da criminalidade segundo a ótica pragmática liberal, aliada a tantos outros desserviços da cultura de massa, mormente a cultura maniqueísta da paranóia de guerra americana, deita reflexos profundos na realidade de nossos tempos. O aparato bélico e repressivo do Estado aumenta concomitante ao aumento em igual proporção da criminalidade. É evidente que a ameaça da pena não infunde medo aos criminosos resolutos. E digo mais, o lugar da pena – a prisão – não é um lugar tão temido, quanto se imagine. Tal idéia da Prisão como um antro repugnante e temido, como um lugar pavoroso a se evitar, é comungado apenas naquela parcela da sociedade que vive uma rotina previsível (casa-trabalho-laser-casa). Pelo cálculo pragmático, os criminosos tendem a ver na Prisão um lugar de aprendizado do crime e, sobretudo, de mobilização/associação/organização. Se o modelo é o liberal/pragmático, não há como censurar tal conduta dos criminosos. Cada qual age conforme os meios que tem a seu dispor. Toda sociedade assim se comporta, porque foi condicionada a tal. Se os criminosos se comportassem de forma diversa, isto sim seria de se espantar.
Veja-se como exemplo do que se afirmou (“cada qual age com os meios que tem a seu dispor” ), o caso dos pais que utilizam os filhos como pedintes, na rua. A despeito do preconceito social (sobretudo entre os meios pretensamente intelectuais, que acreditam que tal atitude é passível de condenação), tal comportamento é o esperado, seja por viger na sociedade o modelo pragmático, seja porque a diversidade de condições das pessoas (de posses, saberes, temperamento) importa em cada qual encare o desafio da vida de determinada maneira. Tal fatalidade diz respeito ao único princípio realmente vigente na Sociedade, que é o princípio da efetividade prática das vontades. A realidade prática das pessoas não reside no conhecimento e sim na simples e humana vontade. Exemplo do que digo é o referente à questão da explosão da natalidade, mormente entre as classes menos aquinhoadas de pecúnia. Se a prática decorresse do discurso no seio dos meios “pretensamente intelectuais”, que acreditam ser consenso que os filhos devem ser planejados ou que a população do mundo deve ser contida, tudo seria muito simples. Mas não é assim que ocorre. Por mais que se queira impingir uma teoria dominante, a guisa de ser inculcada como o modo correto de ver as coisas (no caso do exemplo, o de que a natalidade deve ser controlada e planejada) e, mesmo não se possa relegá-la ao descrédito, por veicular um nexo de razoabilidade, o fato é que tal discurso de base cognitiva se revela impotente para dar cabo da questão da natalidade.

3.11. A romântica perspectiva cognitivista do contrato social.

Tal modo de proceder considera a realidade como se todos os seres fossem átomos forjados na mesma forma, tal como os subscritores do Contrato Social de Rousseau. Como se todos os cidadãos tivessem uma mesma razão como paradigma. Acreditam que há uma forma correta de ler o mundo e deixam a mercê de sua sorte àqueles que não tiverem nem voz nem vez para sequer cogitar de alguma forma de ler o mundo, pois que vivem uma realidade muito diversa, informada pela lei da sobrevivência e totalmente influenciada pela prótese dos meios de comunicação em massa (altamente sensualista ). O simples fato de haver maior natalidade no bojo das classes menos aquinhoadas refuta a tese de que a teoria deve moldar a prática, ou, ao menos, exige que a teoria se reformule no afã de ganhar foros de efetividade prática.

3.12. O cálculo hedonístico não edifica, mas, ao contrário, deita reflexos perniciosos à sociedade.

À guisa de figurar mais exemplos dando conta do engodo do modelo pragmático, volva-se à hipótese de um concursando à Magistratura. Certamente, não lhe será conveniente deixar de votar para a eleição do Corpo Legislativo, uma vez que, se assim o fizer, porá em risco a perspectiva de assumir o cargo em virtude das exigências burocráticas e documentais. O próprio legislador, valendo-se da dogmática (inegabilidade dos pontos de partida) e da idéia de Estado de Direito (império da lei), vale-se da regra pragmática, a fim de que as obrigações sejam observadas. As obrigações não são observadas por um bem-em-si na sua realização, mas porque do contrário sobrevirão conseqüências funestas . O malogro de tal perspectiva é que tal indução pragmática não surte efeito para aquele que nada tem a perder. Partindo de tal raciocínio, a um indigente não haverá interesse algum em exercer o sufrágio através do voto. Aquele não inserido na cidadania não necessita jogar o jogo do cálculo pragmático ou até pode jogar o jogo na contramaré do querer legal, como soe acontecer com a hipótese da “venda do voto”.
Como dissemos, a par do Aparato repressivo do Estado e da legislação penal punitiva severa, a criminalidade só tem aumentado. Tal é assim por causa da orientação pragmática da lei, na qual se privilegia os meios em detrimento dos fins e se baseia no interesse (cálculo pragmático) que, tal como enfatizamos, não tende ao consenso, ante a diversidade das condições dos homens. Os cálculos pragmáticos dos indivíduos sociais são informados pela conveniência de cada qual, resultando daí interesse conflitantes, ensejadores do caos social.

3.13. É impossível estabelecer o interesse só na base de um prurido orgânico, à maneira do dualismo dor-prazer / a superação do modelo pragmático requer o resgate do homem como humanidade.

Ainda que seja de se reconhecer certa parcela de veracidade à afirmação utilitarista de que os homens são demovidos pelo interesse , não há perspectiva de civilização possível se tal interesse for apreendido somente na ordem de um instinto orgânico, isto, sem que seja sufragado por uma perspectiva de realização, entendida como humanidade. A única prudência possível é aquela que se realiza na humanidade do ser, quando se harmonizam as instâncias afetivas, emotivas, orgânicas e racionais do indivíduo. O cálculo pragmático que o cidadão realiza de evitar cometer o crime em virtude da probabilidade de ser apenado não é prudência, mas simplesmente medo.

4) O mito do Estado-Juiz dizer o direito

O fetiche do estado-juiz dizer o direito reporta à vexatória questão de teorizar sobre a prática . A idéia da função jurisdicional de restaurar a igualdade (cf. Aristóteles, em “Ética a Nicômaco”, Livro V, p. 144) funciona a contento numa perspectiva de Justiça Retributiva, na qual os direitos são lugares-comuns (topos), isto é, previamente determinados.
Ainda, o ius dicere está atrelado a outro dogma, isto é, o de que o Estado-Juiz substitui as partes na solução do conflito, princípio, este, cuja matriz é o monopólio da força pelo Estado ou Estado de Direito.
A iurisdictio funciona muito bem no tocante ao mister de garantir direitos e quem já os tem, mas lança uma interrogação quanto a dar direitos a quem não os tem, verdadeiro desafio da humanidade no Século XXI, referente à demanda da inserção na cidadania e da união dos povos.
A própria idéia de ordem remete ao passado, isto é, àquilo que de certa forma já se cristalizou. A Ordem Laica já nasceu velha, pois, nesta perspectiva dizer o direito significará manutenção do status quo. Como disse linhas atrás, o homem da idade contemporânea, ao preconizar o Estado secularizado, tem a pretensão de positivar as relações, acabando por desembocar num modelo reflexivo, sem se dar conta do fato de haver uma tensão entre revelação e racionalização.

4.1. A laicização tem o condão de querer reduzir tudo a reflexão e objeto de apreensão conceitual, bem como depurar o bem do mal, ao passo que sob a perspectiva da revelação a experiência da humanidade é real com todos os seus matizes, sejam eles interpretados como bons ou maus / é tolo querer negar a realidade sob o pretexto de que esta realidade seja hostil / a verdadeira ciência se constrói sobre o legado que temos (isto é, não sujeito à clivagens ou interditos), seja ele qual for / não é a teoria que informa a prática, mas a prática que deve informar a teoria.

Na primeira perspectiva, a revelação, o direito seria pura manifestação (res, non verba). Na secunda, “racionalização ou secularização”, o direito deveria ser reconstruído, tal o Leviatã de Hobbes ou a metáfora introjetada na idéia de progresso a partir do Iluminismo, herdada da imagem da expulsão do paraíso no Gênesis.

4.2. A tola perspectiva preconizada pelo “Contrato Social” do abandono do estado de natureza.

Qualquer doutrina de contrato social está calcada no lugar-comum do abandono do natural rumo ao social. A expulsão bíblica do paraíso, para um observador atento, aponta para o contrário, isto é, a dimensão social significa a degradação em relação ao inicial estado de natureza. O social é o espaço da introjeção da repressão e de estranhamento no mundo. O mundo edênico era aquele mundo onde a natureza nos era familiar. Com a entrada na dimensão social, passamos a ser subalternos de nós mesmos, por necessitar de botar freios ao nosso desejo, duvidar de nossa própria natureza.
A ordem secularizada é sempre uma ordem impotente em firmar o direito, uma vez que a perspectiva de reconstruir o direito é antitética ao gozo do direito (o gozo é sempre um ab ovo, de fruição personalíssima, atinente à condição singular e inexorável do homem, homem, este, que não é inventado, mas simplesmente existe). Além disso, a perspectiva de reconstruir o direito sempre incidirá no malogro de transformar a demanda da prática em objeto de teoria, resultando, tal, em congelamento da realidade.

4.3. Sobre a pretensão da dogmática jurídica de extremar zetética e prática / na dimensão da graça divina (pura revelação) não há lugar para o dualismo teoria-prática.

Malgrado a pretensão da dogmática jurídica, de extremar zetética e prática, tal como se a prática pudesse se justificar como um fim-em-si. Ora, o intento de solucionar praticamente um impasse já envolve, de um lado, avaliação (critérios para extremar o lícito do ilícito - cognição) sobre o fato e, de outro, esbarra num limite, isto é, solucionar praticamente, segundo o discurso dogmático, significa remediar ou cuidar dos efeitos e não propriamente fazer valer o primado do direito. Em vista de tal, o discurso da prática preconizado pela Dogmática Jurídica acaba por privilegiar os meios em detrimento dos fins, além de criptografar sua verdadeira índole teórica (isto é, não uma prática efetiva, no sentido de realização da justiça, mas uma teoria sobre a prática, mediante a qual o pensamento ou ideologia dominante inculca seus valores). Melhor razão se encontra em Stammler (em que pese o acento formalista) na busca de solucionar a antítese entre o direito como categoria conceitual platônica (o imutável inato) e o direito relativo e positivo, mediante a idéia de Direito Natural com conteúdo variável. Isto é, a lei eterna, tal como proposta por São Tomás de Aquino, existe em essência, como pura efetividade (apodíctica - fruto da perfeição divina – perfeita conjunção entre conhecimento e prática, ser e dever-ser – o Deus virtuoso, conhecendo e obedecendo a lei, não necessita do fetiche da lei. Por exemplo, a regra “não matar” não é observada de forma estereotipada, mas decorre da sua bondade, de sua essência amorosa, onde a força não convive com a violência, não se aliena ou degenera). O que varia é a nossa capacidade de absorvê-la, descartada a hipótese de fixá-la como conceito apriorístico, posto que a bitola racional não se afina com sua dimensão incólume (revelação). Condição sine qua non para o conhecimento teórico de Deus é vivenciá-lo praticamente. Não existe a possibilidade de uma razão apriorística divina que informe a prática. Deus só se manifesta em nós como graça e nunca como um compartimento racional alojado em nós mesmos. Querer hermetizar a Deus numa justificativa racional significa a ilusão de sua posse. Dizer o primado divino significa graça, bem incólume, amor, bens, estes, que não são passíveis de se tornar objeto, mas somente fruíveis como revelação. O discurso dogmático de separação teoria-prática é infundado. É falsa a idéia de um âmbito dogmático como se fosse um indefinido, isto é, um espaço aleatório de pura especulação, um sem-fim de perguntas, tendente ao nada. Por aleatório se entenda um arranjo racional fatorial, onde a razão seria mera função da lógica formal, isto é, sem nenhuma interferência da vontade. Esta possibilidade de racionar no vácuo, sem nenhuma interferência da vontade, não existe. É um mero fetiche da razão estereotipada no seu produto lógico-fatorial.

4.4. Crítica ao direito como categoria universal.

A máxima civilística de que “todo direito possui uma ação que o assegura”, tal como engendrada no discurso dogmático científico do direito, incorre, pois, no pecado de, ao lado dos direitos, admitir os não-direitos, bem como incorre na corruptela de incidir no mal que David Hume quis imunizar com seu ceticismo, à guisa de opor às essências reais as nominais (Querela dos Universais – também Locke, cf. Ensaio acerca do entendimento, cap. VI, Os nomes da substâncias, tóp. 3, As essências real e nominal diferem), de afirmar o direito como uma categoria universal, quando pode muito bem se destituir de todo seu conteúdo semântico .
Não que queiramos abraçar o ponto de vista cético de Hume, pois a remissão às categorias universais é inerente ao raciocínio (mesmo a idéia do cético de admitir não existir verdades universais, impõem-se como pretensão de universalidade), porém a idéia do direito como bem abstrato que é, pode muito bem servir a um apelo puramente retórico ou, mesmo, dar foros de legitimidade aos claudicantes direitos, tal como soe acontecer com o direito de propriedade.
O questionamento do topos ocupado pelo Estado-Juiz de dizer o direito guarda conexão com a crítica da ordem atrelada ao garantismo. A dizer, não basta pois que a jurisdição proteja os direitos de quem já os ostenta, mas faz-se necessária a busca por uma evolução qualitativa da prática da justiça no sentido de justiça distributiva (dar direitos a quem não os tem – inserção na cidadania – dignidade humana e efetividade).

4.5. O direito não se dá, mas se conquista. Seu gozo é personalíssimo, não no sentido de uma propriedade do sujeito, mas que o direito se confunde com a própria expressão do indivíduo. O direito nunca se porta como um objeto do indivíduo, mas tem uma relação dinâmica com a experiência do indivíduo. Não há direito sob inércia. Os direitos estão vivos nos indivíduos. Cada relação (por ex, um colchão velho jogado fora – res derelicta) tem multiplicas implicações, que podem, inclusive, exorbitar um contexto de indagações presentes. O direito pode mudar sua feição conforme ditado pela experiência.

Num segundo momento, exsurge a problemática de indagar se o Juiz, ao dizer o direito, efetivamente dá direitos. Tal questão é relevante, uma vez que diz respeito à relação do Estado com a Sociedade. Entendemos que o gozo do direito é uma fruição personalíssima da cada indivíduo. O direito, por assim dizer, não pode figurar como um arquétipo adormecido nos códigos, mas só alcança sua plenitude se efetivamente exercido. Ante tal fato, o dogma do Estado de Direito (o Juiz substitui as partes ao prestar a jurisdição; o Estado monopoliza a força) é uma antítese do próprio direito ou um cerceamento do tecido social. A maior expressão do direito é os cidadãos contribuírem à ordem, no sentido de tornar a ordem mais justa pela realização do bem, entendido este como humanidade. O bem se realiza na medida em que me realizo como valor-em-si. Não há direitos fora da esfera do indivíduo. A idéia de direitos adquiridos é, pois, uma quimera, uma vez que somente se pode falar em gozo de direitos. Tal gozo sempre pode se otimizar na medida em que a sociedade se torne mais humana e solidária, em decorrência da realização do homem em sua dignidade (valor-em-si).
O ser humano se realiza na medida em que dá vazão a sua capacidade e otimiza suas condições emocionais no sentido de uma humanidade, da não violência, da consideração e respeito ao próximo. O direito se realiza na medida em que o homem acontece como valor-em-si. Tal perspectiva difere em muito daquela da garantia de direitos por fórmulas abstratas e vazias, tal, por exemplo, o decantado direito à vida ou à incolumidade física e psíquica, adormecido nos códigos.
Ninguém recebe passivamente direitos, mas antes deve conquista-los, fato tal que já constitui em si um direito, isto é, participar da formação da feição social ou para ela contribuir concomitantemente com a realização do ser como valor-em-si. Cada ser humano já possui em si, na sua dimensão singular de humanidade, o germe da realização do direito. O sentido de conquista não ó propriamente de obrigação, mas de realização da vocação natural da sua humanidade. Não há um estereotipo do que seja direito de expressão ou participação, simplesmente porque tal direito só se realiza quando efetivamente exercido. Há incontáveis formas de se exprimir. Cada ser humano encontra na sua singularidade a forma de se exprimir.
Não há direito possível sem que efetivamente exercido pelos homens. O direito se realiza na esfera de atribuição dos indivíduos. É diretamente imputado ao indivíduo, pois não existe a despeito dele. O indivíduo não exibe o direito como uma posse, tal como possui um cão de estimação, mas contribui para o direito concomitante à sua realização. Não é dono do direito, porque tal direito não pode se erigir como coisa à parte do homem. O direito só pode existir como expoente no homem, isto é, na medida em que se realiza e se encontra na sua humanidade. Não se adquire direitos, mas tão somente frui, sempre com a possibilidade de otimizar tal fruição, na medida em que o valor da humanidade e da solidariedade é alcançado com mais afinco.
A maior expressão do direito é ter vez e voz. O direito na figura da autoridade de um Estado agigantado é a antítese do direito. Confunde-se com a figura do Rei esmolador. “Dar a cada um o que é seu” não tem como sujeito o Estado , seja por incorrer na antítese do direito, isto é, na perspectiva do mãe que quer manter o filho em eterno gestação e em condição fetal, seja porque o Estado não tem como viabilizar e repartir o que seja de cada um, tarefa que somente os indivíduos podem fazê-lo, por ser de ordem personalíssima (vide a censura que acima se teceu sobre a idéia de posse de direitos ou direitos adquiridos).
Insta considerar a perspectiva da atuação do poder judiciário no tocante à tutela dos direitos difusos e coletivos, bem como da efetivação de normas programáticas. A idéia de ordenamento e disciplina evoca, em face de sua própria exigência conceitual, uma efetividade prática. No entanto, o discurso jurídico já introjetou a distinção entre vigência e eficácia. Ante tal dilema, perquire-se o que no ordenamento possui efetividade prática.

4.6. Sobre a proposta formalista kantiana e o Princípio Regulador. É possível existirem conceitos sem substância ou sujeitos a uma promessa futura de preenchimento? Por exemplo, quando falo em “dignidade da pessoa humana” me reporto a algo real? Se negativa a resposta, tal conceito seria inverídico, ou, ao contrário, o conceito pode subsistir independente da constatação da realidade?

Antes de enfrentar tal questão, anota-se a existência de um tertium genus, referente à proposta formalista kantiana, isto é de conceitos sem recheio teórico (isto é, não passíveis de conhecimento), mas de pura índole prática. A perspectiva kantiana foi abraçada por Hans Kelsen ao insculpir a idéia de norma fundamental. A perplexidade que se nos antolha diz com a dificuldade de vislumbrar a efetividade prática da grundnorm, se nos afigurando mais como imposição lógica, do que propriamente no sentido de convencimento a atuar sobre a vontade. Tenha-se em conta na discussão da presente problemática a distinção kantiana entre princípios constitutivos e reguladores. Seja como for, a questão central da obra kantiana é se o conceito de razão prática possui realmente tal efetividade prática ou se, ao contrário, cinge-se a uma tentativa malograda (isto é, uma especulação sobre a prática).


4.7. Sobre o monopólio da força pelo Ordenamento Jurídico.

Retornando a questão da efetividade prática do ordenamento, trazemos a lume a idéia de monopólio da força pelo direito. A intencionalidade prática aí imbricada é notória. Observa-se ser a força uma potência empírica, muito embora o conceito que se queira inculcar diga respeito a uma força lícita ou inteligente. Tal idéia de força inteligente, a par do seu apelo ideal, é por si problemática, uma vez que se a tomarmos em sentido absoluto, desembocamos no mundo das idéias de Platão, isto é, de puro “dever-ser”, no qual parece não haver lugar para a força na sua dimensão empírica.
Ante tal paradoxo, afigura-se premente uma síntese a solucionar a aparente tensão entre natureza e ideal. Como compreender a força como ideal sem que não seja tolhida de sua natureza empírica? A solução é manter a força como tal, isto é, como força (vontade atuante), sem que assuma uma conotação de violência. Em outras palavras, trata-se de desatrelar a força de seu predicado de violência. A violência não é atributo sine qua non da força. Só assim a força pode almejar a efetividade prática, posto manter sua condição natural, sem que sujeita a degradação. A violência não pode aspirar à efetividade prática, pois não se mantém e tampouco é desde sempre. Está sujeita a geração e corrupção.

4.8. O amor não é Princípio Regulador (no sentido de “um algo” que, por representação, supre a ausência de um “outro algo”), mas efetividade, Princípio-que-vale; Princípio-valor.

Conclui-se que a única força capaz de fundamentar a ordem é o amor. Princípio-Valor. Ou, mais apropriadamente, tendo em vista sua condição natural (da ordem da constituição e não da ordem da deliberação), “Princípio que Vale”. O amor detém efetividade prática, não porque possamos inferir sua qualidade de perfeição, isto é, como se pudéssemos pinçar um atributo (já perderia a condição de “essência”, por ter se transformado num objeto da especulação). O amor, diz-se “direito natural”, não porque seja dogmaticamente inatacável, mas por se exprimir na natureza, como fonte que não seca, por ser força completamente destituída de violência. É, portanto, o moto-contínuo, dito “direito natural”, por ser de direito na natureza . Qualquer atributo que se queira impingir ao amor, ainda fica muito distante de exprimir sua real magnitude, pois que o maior trunfo do amor se opera por suas obras.

4.9. Ordem Repressora Versus Ordem Promotora.

O monopólio da força pelo direito não goza, portanto, de efetividade prática, se tomarmos a força no sentido de força repressiva. Há que se lançar os olhos para a força promotora do bem e da dignidade humana (força proativa). O caráter pragmático do ordenamento nos induz a acreditar como racional o condicionamento de atrelar um mal (força repressiva) como conseqüência a não observância da norma (por exemplo, dirija no limite de velocidade, pois do contrário será multado; pague seus impostos em dia, pois em não o fazendo terá restrições quanto a expedição de certidões...).
O condicionamento baseado na repressão está longe do ideal. O ordenamento deveria possuir uma orientação categórica no sentido de incentivar as condutas por consistir num bem-em-si e não na base da inculcação de interesses secundários.

4.10. O lugar-comum da pena encarada como objeto de temor prostitui o interesse dos indivíduos e muito menos serve aos propósitos da Ordem. A idéia de que a “boa pena” incita ao cometimento de crime deriva de um preconceito que é cria do modelo pragmático, referente à inculcação nos indivíduos dos interesses secundários (isto é, a apologia do se conduzir mediante a perseguição dos interesses egoísticos, em detrimento da disseminação de valores morais – interesses primários; dignidade da pessoa humana). A “boa pena” não é a ocasião de se locupletar do Estado, buscando uma forma parasitária de sustento, mas, sim, a “boa pena” no sentido da experiência que edifica o indivíduo, de molde a torná-lo multiplicador do bem, de molde o que o indivíduo incorpore valores morais, de molde a que o indivíduo tenha acesso à educação e se torne crítico, a ponto de compreender o malogro da perspectiva (diga-se, subalterna; de baixo auto-estima) de se locupletar ou se tornar um peso para o outro.

A idéia de que o ordenamento hipostasiado na sua orientação repressiva prostitui o interesse dos indivíduos pode ser claramente observada no estímulo ao não cometimento de crimes ante a ameaça da pena, isto é, a inculcação nos indivíduos do temor da pena. Tal princípio é tanto mais enfatizado quanto se visa coibir os crimes hediondos, prática, esta, que tem se revelado impotente, volva-se ao recrudescimento da criminalidade. Lembre-se, outrossim, que é preconceituoso encarar o conduta dita criminosa como comportamento desviante, uma vez que os crimes, via de regra, apontam para uma sociedade doente (por ex, há uma correlação entre criminalidade e falta de acesso à educação/condições insalubres de subsistência/doença) O crime não é um acidente (no sentido de “um algo” que não estava previsto), mas, ao contrário, acontece em meio à trama social, ou, dito de outra maneira, ao sabor das relações sociais que se travam. As prisões e hospícios ocupam o lugar-comum do receptáculo do anátema social, quando, em verdade, localizam-se nas vísceras da sociedade, isto é, no bojo de suas mais íntimas contradições. O antro da prisão (isto é, insalubre) é antes signo da falência social em lidar com a violência (ou melhor, o Estado contribui para a disseminação da violência). Sociedade de cara limpa deve ter na prisão um lugar humano, dignificante, ressocializador e de inclusão social. Não se deve confundir a necessidade da prisão corporal com a atribuição ao preso do estigma de segregado da sociedade. Outrossim, não é conveniente que a prisão se mantenha somente no âmbito do Estado burocrático, devendo ter a participação dos setores da sociedade civil, para alcançar, tanto mais, seu mister de socialização. Note-se que a prisão dita boa, satisfatória, dignificante, desmonta a lógica de que o temor da pena deve servir de estímulo ao não cometimento do crime. Devemos separar o joio do trigo. A prisão que é um antro, um lugar infamante, um submundo é apenas signo de falência ou incompetência do Estado e em alguma medida da sociedade, mas nunca deve ser confundida com um estímulo pedagógico positivo. Os que assim pensam são vítimas de confusão, preconceito e ignorância. Em suma, estão sob a ação do terror, são vitimas da propaganda política eleitoreira mal intencionada. De outra banda, incidirá novamente em equívoco quem achar que a boa pena (isto é, em condições dignificantes) será estímulo ao cometimento de crimes. Assumir tal postura significa continuar porfiando na débil idéia de debelação das causas pelos efeitos, conduta, esta, que constitui verdadeiro câncer social, ante a desvinculação do direito de qualquer embasamento moral. Vide à crítica que se teceu à orientação pragmática do Estado.
Há necessidade de acreditarmos no Estado como promotor do bem comum, Tal como explicitamos ao pontuar que “dizer o direito” é uma quimera , uma vez que o direito só pode ser entendido numa perspectiva de exercício e gozo pelos cidadãos, entendido o Estado como resultante da participação efetiva dos indivíduos. Cabe ao Estado dar meios aos indivíduos para se exprimir e contribuir na edificação da sociedade e não propriamente se agigantar sob pretexto de garantir direitos. Como sublinhamos, o Estado tem assumido uma orientação repressiva, deixando a reboque a missão de promover o bem e a inserção na cidadania. Não há pois a figura do Estado como ente autônomo, mas tão somente em sua interação com a sociedade. O Estado efetivamente não organiza a sociedade, pois se assim fosse seria o Estado totalitário, provedor, paternalista. A demanda política do Estado deve ser implementada com a participação da sociedade, mediante canais de participação e co-gestão estado-sociedade.

4.11. Crítica ao monopólio da função jurisdicional pelo Poder Judiciário.

Ante tais considerações, é de se questionar a posição ocupada pelo Poder Judiciário de arauto do Estado de Direito, face às razões ora condensadas: 1) a função de garantia e tutela de direitos acentua-se na perspectiva da Justiça Retributiva, tendo como paradigma a idéia de igualdade lógico-matemática peculiar à relação jurídica e aos direitos adquiridos (garantismo); 2) o “dizer o direito”, ainda que se erija como tutela satisfativa, não pode ser confundido com o exercício e gozo dos direitos pelos cidadãos (o direito-instituição não pode se apropriar da soberania); 3) a maior demanda do direito concentra-se na promoção da Justiça Distributiva (propiciar/fomentar acesso ao direito), fato tal a infirmar os dogmas que dão sustentáculo a idéia de ordenamento, uma vez diagnosticada a tensão entre vigência e eficácia, que atesta o engodo da ordem caduca, seja por não possuir efetividade prática, seja por privilegiar a segurança em detrimento da efetiva realização da justiça.

5) Crítica ao modelo liberal hedonista

5.1. Quem tem acesso ao Poder Judicário, via de regra, é o homos economicous (isto é, inserido no sistema de mercado). Direito suscetível de ser invocado perante o Estado não é aquele que possui evidência econômica de per-si (tal, a qualidade do ar que se respira; ou o nível de ruído nas grandes cidades), mas somente aquele que possa ser exprimido em pretensão pecuniária. O monopólio do valor pelo dinheiro é um acinte à natureza. Quem detém o valor é a natureza (relação econômica em-si) e não o dinheiro (fetiche sem vida).

Ainda que se tenha em mente o espectro social das demandas de direitos difusos e coletivos, força crer que numa ordem moldada pelo garantismo a própria idéia de pretensão e invocação do poder judiciário está atrelada ao interesse no sentido econômico. O paradigma de cidadão forjado pelo Estado de Direito é o homos economicus. A regra de ouro do liberalismo é o hedonismo. A aposta na tendência natural da busca da maximização do prazer no homem, como faticidade empírica a que todos, independente de crenças ou valores pessoais, estão sujeitos. A busca de uma liberação da experiência humana ocorre em meio ao cenário medieval, quando a ciência emergente disputa poder com a Ordem Religiosa, opondo aos dogmas daquela, relacionados à transcendência, os seus dogmas referentes à apologia da imanência.
A fundamentação de uma efetividade prática calcada na maximização do prazer, no entanto, é problemática. À doutrina do empirismo, seguem-se as doutrinas do utilitarismo e pragmatismo, cuja a tendência ou vetor é o voltar de olhos para a efetividade prática. À ética platônica do mundo das idéias, opõem a objetivação do saber a serviço das finalidades humanas (saber aplicado).
Malgrado toda a aura de progresso que o ponto de vista pragmático suscita, na esteira do utilitarismo de Bentham, cujo propósito foi superar o masoquismo das práticas eclesiásticas de auto-flagelo na idade média, pensamos que o hedonismo não logra alcançar tal efetividade prática.
Passados mais de dois séculos desde a Revolução Francesa, em que pese todos os esforços de imprimir matizes sociais ao estado liberal, tais esforços tem se revelado inúteis, dada a antítese entre hedonismo e altruísmo. Como se disse antes, garantir direitos a quem já os tem colide com a perspectiva de promover condições para o gozo de direitos e a inserção na cidadania.
Ainda que se prescinda de entabular a questão nestes termos (isto é, na antítese hedonismo-altruísmo), a idéia de hedonismo e maximização do prazer, diante de uma crítica mais pormenorizada, revela sua inconsistência. Seja pelo fato do prazer não significar necessariamente o “bom ” e nem tão pouco a dor o “mal ”. Seja pelo fato do prazer não ser propriamente a antítese da dor, uma vez haver uma relação dialética entre prazer e dor. Seja pelo fato do ícone da maximização do prazer o “lucro” não passar de um fetiche sem vida própria.

5.2. O lucro não é padrão de excelência, logo não pode funcionar como um valor de progresso social. De outra banda, o prazer hedonista não pode ser guindado à faticidade empírica. Seja porque o prazer não se confunde com a expressão singular do indivíduo (isto é, o prazer é um reducionismo da magnitude empírica do indivíduo – a expressão do individuo não comporta rótulo, seja ele o prazer ou qualquer outro adjetivo), seja porque se o prazer fosse faticidade empírica seria um determinismo sobre o indivíduo.

O lucro, de per si, não é padrão de excelência. A perspectiva hedonista visa alcançar foros de efetividade prática, através de uma tentativa de apropriação da instância empírica do homem mediante a apologia do prazer. A idéia de efetividade prática é que, sendo natural a busca do prazer, a sociedade caminha por si própria. O lucro passa a ser a representação econômica deste prazer. O lucro é o excedente voluptuário do dinheiro. É o que sobra para os fins egoísticos. A idolatria do lucro não passa de uma forma de comodismo de um protótipo de indivíduos informados por uma espécie de descaso com os seus destinos. Atribuem às convenções o mister de guiar seus destinos. Insistem em perseguir um excedente que, no frigir dos ovos, é uma quimera, por não exprimir a priori nenhuma relação ponderável. A idéia de sobra, lucro ou excedente é apenas um relativo formal. Não há nenhuma relação necessária entre a riqueza gerada pelo lucro e a edificação social , porque, como dissemos, o lucro de per si não é padrão de excelência ou otimização. Há uma completa inversão de valores. O homem busca desarvoradamente o lucro, como um servo a perseguir o padrão de excelência que supostamente lhe confere o estatuto a vida. Uma vez que a disciplina das relações não pode ser delegada a uma abstração inanimada, a fixação do homem no lucro e no dinheiro não passa de uma miragem, um fetiche. As relações são disciplinadas à medida que perseguimos a civilização em nós, que condiz com a realização do homem como valor-em-si, como humanidade. Atribuir ao lucro ou qualquer outro fetiche mediar as relações significa uma prática bárbara, isto é, a qual, o homem, por seu comodismo, de deixar-se guiar por fatores aleatórios, colherá frutos perversos. Volva-se ao exemplo da lucrativa indústria bélica que, a par de lucrativa, contribui para acirrar os antagonismos, polarizar as forças, potencializar as violências. Que civilidade há nisso? O lucro nesta hipótese representa algum padrão de excelência apriorístico? O que seria da lucrativa indústria de remédios, se não houvesse os doentes mentais dependentes químicos? A indústria poluente, a despeito do eventual lucro monetário, gera um prejuízo à natureza, natureza, esta, que não possui valor econômico de convenção, tal como o dinheiro, mas valor econômico efetivo .

5.3. A função normativa de mediar as relações econômicas, atribuída ao dinheiro pelos homens, não soe alcançar o desiderato almejado. Somente o homem pode vivenciar as relações econômicas, porque o homem é natureza e experimenta a economia de forma sui generis. O homem é o centro de imputação de direitos e deveres, não podendo delegar esta atribuição a um ente inanimado.

Não é o dinheiro que humaniza as relações. O dinheiro é uma mera convenção. O dinheiro de per si não traduz realidade. Tal como o estratagema solerte da delegação divina do poder dos reis, o dinheiro tem se prestado ao engodo de representar o real, de perpetuar a farsa traduzida na sua pretensa capacidade matemática de disciplinar as relações pela sua medida (medida de valor). Tal pretensa capacidade de medida do dinheiro (mediar as relações) só se presta a justificar a impotência do homem em voltar os olhos aos seus semelhantes e a si mesmo. O Estado cuja lei é a ditadura do dinheiro é um estado de manutenção de privilégios, a custa de um considerável ônus social que o dinheiro teima em não valorar, volva-se aos funestos efeitos da apropriação do ente natural pelo ente monetário . O Estado cuja lei é a ditadura do dinheiro é um estado de amesquinhamento da natureza humana.

5.4. A idéia da “mais valia” tem como ponto de partida a crença equivocada de que o dinheiro pode apropriar o valor. A “mais valia” sequer tem o condão de polarizar forças (por ex.: rico-pobre), uma vez que as relações econômicas ocorrem na natureza, e não por uma convenção linear (tipo: mais-menos) como soe acontecer com a “mais valia”. O exprimir da força se encontra na natureza.

Contrariamente a um ponto de vista marxista, acreditamos que o dono do capital não detém mais valia, uma vez que dissentimos da idéia de dinheiro como valor-em-si. O excedente entre, de um lado, o lucro, gerado pela venda do produto e, de outro, o preço pago pelo aluguel da força de trabalho, não deixa de ser uma forma de exploração. Mas acreditamos que não é o excedente econômico-monetário a medida de tal exploração. Se dissermos que o poder do Industrial sobre o trabalhador se corporifica no lucro, estaremos mentindo. Este excesso de dinheiro, ou comparação das riquezas, é um fetiche sem vida. Poderíamos, sim, dizer do não-poder do Industrial ao locupletar-se a custa da exploração alheia, do não-poder ao privilegiar o acúmulo de capital em detrimento do oferecimento de condições condignas de inserção social aos seus trabalhadores, do não-poder ao lucrar a custa da poluição do meio ambiente, etc. De rigor, trocar a idéia de exploração pela idéia de ônus social. De rigor, não associar tal ônus social à tábua de valoração monetária, mas às implicações sociais. O ônus social deve ser diagnosticado no grau de ataque à natureza e aviltamento da condição humana. Se insistirmos em traduzir as relações de dominação em excedentes monetários, sempre haverá dominadores e dominados, sempre haverá cisma. O lucro não é a contradição do sistema liberal, pois, como dissemos, o lucro é uma mera convenção abstrata. As contradições estão escancaradas na violência social, na degradação da natureza, em todo tipo de miséria moral e material. O lucro pode, inclusive, ser legitimado, caso a empresa lucrativa não o utilize como medida de valor (como fim), mas apenas como meio para a edificação social (perseguimento dos fins sociais, de edificação da natureza e de dignificação das pessoas).

5.5. A perspectiva igualitarista não pode ser contraponto da mais-valia, porque a mais-valia não é parâmetro sobre o qual se possa deduzir um contrário. A mais-valia é apenas uma diferença medida por um padrão numérico, não exprimindo a priori nenhuma relação ponderável. O materialismo marxista não funda uma moral. O igualitarismo é uma idéia tão abstrata quanto à mais-valia. São ambas as pretensões utópicas, isto é, sem evidência empírica.

O materialismo marxista opõe à mais-valia a perspectiva igualitária do comunismo, fato tal que, a nosso ver, não funda uma moral. Pelo simples fato de não ser possível deduzir o igualitarismo por oposição à idéia de mais valia. Ora, a mais valia é uma sobra, é um excedente. Um sobrevalor que não é “de fato”, mas simplesmente a idéia de um excedente monetário, que nada exprime, a priori, além de uma grandeza numérica abstrata. A crítica à mais valia não significa moralidade. A mais valia diz com a perspectiva de assegurar posição de domínio, de se precaver contra o imponderável. Ninguém se previne em face do imponderável, pois que tal prevenção é um disparate, um blefe. A mais valia só se mantém em virtude da esfinge numérica do dinheiro, que ascamoteia a sua tibieza de firmar realidade. A mais valia é apenas e tão somente uma sobra, a parodiar a metáfora do gordo que de tão obeso anula a si próprio.

5.6. Querer repartir a mais-valia a bem de um fim igualitarista é como querer matar a galinha dos ovos de ouro na tola pretensão de encontrar a fonte.

A mentira do “ter mais” que a mais valia evoca, soma-se outra mentira do egoísmo sub-reptício da perspectiva igualitarista do materialismo marxista. É como se o igualitarismo fosse possível mediante uma repartição da mais valia. A mais valia não tem contornos. A idéia de mais valia é apenas um apelo formal, um relativo abstrato. A mais valia não é valor, logo, não pode ser distribuída a ninguém. A distribuição da mais valia é distribuição da miséria.
Valor é o homem. O dinheiro de per si não humaniza. O lucro cria excedente de nada sobre coisa nenhuma. Querer que o dinheiro discipline as relações significa alienar o homem (transformá-lo em joguete do dinheiro) ou deslocá-lo da posição de centro de imputação de direitos e deveres.
Num Estado subalterno à economia de mercado, o dinheiro finge fazer mais dinheiro sobre o dinheiro, enquanto o fato social agoniza. Agoniza a prostituta sifilítica, agoniza a criança de rua, os povos marginalizados. À instância da poesia pensa-se com os sentimentos:

Tenho nos olhos quimeras Com brilho de trinta velas
Do sexo pulam sementes Explodindo locomotivas
Tenho os intestinos roucos Num rosário de lombrigas
Os meus músculos são poucos Pra essa rede de intrigas
Meus gritos afro-latinos Implodem, rasgam, esganam
E nos meus dedos dormidos A lua das unhas ganem
E daí?
Meu sangue de mangue sujo Sobe a custo, a contragosto
E tudo aquilo que fujo Tirou prêmio, aval e posto
Entre hinos e chicanas Entre dentes, entre dedos
No meio destas bananas Os meus ódios e os meus medos
E daí?
Iguarias na baixela Vinhos finos nesse odre
E nessa dor que me pela Só meu ódio não é podre
Tenho séculos de espera Nas contas da minha costela
Tenho nos olhos quimeras Com brilho de trinta velas
E daí?
Milton Nascimento e Ruy Guerra

A riqueza anestesia ou normaliza dita sociedade agonizante. Dá-lhe o ópio incauto. Deparamos com a injustiça e a miséria a céu aberto. Tal condição de profunda incivilidade, no seio do Estado-dinheiro-lei, não é levada ao Poder Judiciário, porque via de regra não é traduzível em interesse monetário.
Diga-se, o Senhor Interesse Monetário, o arauto, núncio do Liberalismo.
A mais valia ignara transforma em igualmente bons os aquinhoados do seu monopólio. A dizer, sorri para quem a detém, independente da origem do dinheiro, volva-se ao narcotráfico e à pirataria .
Perplexos, deparamos com um discurso sistemático de apologia do lucro paralelamente a um quadro de desvalorização ou amesquinhamento da condição humana das pessoas e degradação da natureza. Como cuidamos de sublinhar, é deveras ingênuo acreditar que a injustiça social se confina à questão do lucro, da dominação, da mais valia. Lutar contra tais polarizações é como bradar contra os moinhos de vento, metaforizados em gigantes, tal qual a epopéia de Dom Quixote. A injustiça social não é apenas uma temática/versão, mas um fenômeno de extenso espectro, que não poupa pobres nem ricos. A injustiça social é a expressão da miséria sob os diversos matizes em que se antolha. O ente econômico não é o dinheiro, seja porque o dinheiro não se presta a medir a natureza e, muito menos, faz as vezes da natureza.

5.7. A natureza é uma magnitude insuscetível de ser medida por qualquer padrão abstrato, a exemplo do dinheiro, e mesmo que fosse um padrão concreto, não se prestaria a medir a natureza. A natureza é um valor-em-si, daí sua expressão econômica. A natureza já fala por sua medida, e daí não necessita de representação. Se expressa de per-si, sem cartão de visita. A razão não domestica a natureza. O homem, no seu afeto, é natureza viva (espírito da natureza) – natureza em movimento. O afeto é antítese de qualquer determinismo/estagnação. Não existe determinismo na natureza.

A natureza é uma magnitude insuscetível de ser tangenciada pelo dinheiro, porque seus prismas são vários, quiçá infindos. A idéia de quantidade linear que o dinheiro carrega não dá conta da demanda holística da natureza. A economia é a expressão da natureza. Sendo a expressão da natureza, a economia não é suscetível de ser eclipsada numa versão (por ex, a versão da disciplina das relações através do dinheiro), mas é uma inerência dinâmica. Uma universalidade, um insuscetível de se tornar objeto. O jargão do domínio da natureza é falso, pois que a razão não pode domesticar a instância afetiva. Razão e afeto devem conviver em harmonia. A natureza encarada como o reino de determinismo, o é ao preço do homem se confinar ao papel do mero observador. Trata-se de um homem fragmentado, isto é, que se pensa razão. Razão que considera ter uma visão do corpo como objeto, como res extensa, o que não passa de uma ilusão. A verdadeira razão de ser das pessoas está na natureza. O corpo não é um mero receptáculo do espírito. O corpo não é determinismo. O corpo vive. O afeto é natureza e não mera abstração racional. A dicotomia corpo/espírito, perpetuada em certos cultos masoquistas ou maniqueístas, é uma razão hipostasiada, isto é, que pensa tudo poder conter.
A única lição que a mais valia nos lega é a de que o homem precisa buscar em si próprio as soluções. Isto é, na sua humanidade, cuja expressão econômica o é por natureza, e não em abstrações, impessoalidades, fetiches, como soe acontecer com o lucro, a mais valia e o dinheiro.
Em uma palavra, necessita humanizar-se, ir à procura de sua vocação humana. Reconciliar-se com o milagre de ser homem. Não se apagar em ídolos reluzentes – ouro de tolo.


6) O engodo de ancorar o direito na verdade – o mito da neutralidade científica

6.1. O empirismo e a tentativa de substituir o paradigma da transcendência inatista pelo paradigma da imanência. Sobre o malogro da tentativa de incutir o empirismo no âmbito prático mediante à apologia dos princípio da dor e do prazer. O hedonismo, a par de não alcançar a dimensão empírica que se lhe quer impingir, funciona como forma sub-reptícia de imposição de uma rígida disciplina.

A tão almejada efetividade prática que o liberalismo quis impingir, não alcança tal desiderato. O hedonismo resulta de um ponto de vista talhado nas doutrinas empirista e utilitarista. Os apologistas do hedonismo julgaram ter alcançado a dimensão prática, porém, a nosso ver, de forma equivocada. O ponto de vista da imanência foi muito convincente para refutar a crença de sermos dominados por um Deus feito homem (antropomorfizado), uma entidade caprichosa que manipula a natureza segundo seu arbítrio (Deus transcendente, isto é, que manipula a natureza como um objeto – por exemplo, a doença, a epidemia, a catástrofe natural vista como vingança divina).
A doutrina empírica insculpiu a idéia de determinismo causal, mediante a observação (experiência – ponto de vista da imanência) de que tudo na natureza opera por relações de causas e efeitos (elo causal). Ora, pensando como um empirista, se tudo na natureza opera por causa e efeito, não há o Deus caprichoso que a tudo manipula segundo seu arbítrio.

6.2. O mito da neutralidade científica atrelado à concepção do determinismo natural. Não é possível afirmar o determinismo em meio ao dinamismo natural. A ilusão que temos de um “dito” determinismo só é possível mediante a restrição e controle de variáveis, atrelada a outro dogma: o de que o observador não pode interferir na experiência.

O malogro do ponto de vista empirista foi querer extrair dividendos práticos da idéia de determinismo causal. A idéia de determinismo funciona muito bem quando o homem se coloca como observador à parte, quando vê a natureza como um sistema autônomo, no qual a variável-homem não pode interferir. O agente do conhecimento deve se colocar como mero observador, isto é, como não interferente na realidade que observa. O padrão de conhecimento científico informado pela eleição (isto é, selecionar quais variáveis que se irá observar em detrimento de outras que se irá desprezar) de variáveis opera um recorte na natureza, pois que sem restringi-la seria impossível advogar a idéia de determinismo. A idéia de controle de variáveis é uma espécie de assepsia ou tentativa de imunizar o campo a fim de resguardar a credibilidade do processo de aferimento da verdade.
Este padrão de conhecimento calcado na idéia de neutralidade do observador e nas relações naturais como ocorrências alheias ao homem (sistema fechado), a despeito de toda retórica de rigorismo científico que envolve, não logra alcançar os tão almejados resultados. A dizer, o modelo do determinismo causal funciona muito bem quando abstraímos o próprio homem do resto da natureza ou, em outras palavras, nos colocamos como observador externo (sujeito do juízo).

6.3. O homem é também natureza e efetivamente nela interfere. A justificação da verdade é necessária à volição? A exigência da verdade não passa de um capricho do ego.

As coisas, porém, se complicam, quando constatamos que o homem é também natureza e efetivamente nela interfere. Ao paradigma do cientista como observador passivo ou não interferente no objeto observado contrapõe-se a perspectiva de homem dotado de vontade. Poder-se-ia argumentar que o protótipo de homem da ciência não é amputado da sua vontade, mas apenas que tal vontade é justificada pela busca da verdade (vontade a serviço da verdade ).
Tal perspectiva se afigura muito ingênua, dentre outras razões, pelo fato de que vincular vontade à verdade significa uma exigência do ego, isto é, o ego que ordena a verdade. Há aí uma subversão de valores, pois num primeiro momento a vontade procura se justificar como um meio para alcançar a verdade. Constata-se o malogro de tal ponto de vista, quando se percebe que a verdade colocada como uma palavra de ordem, faz com que a vontade, que de início, se delineava apenas como meio, passe a ocupar um lugar de preeminência em relação à verdade, isto é, como credor (isto é, o sujeito-vontade como aquele que exige ou cobra a verdade).
Outro malogro de se vincular a vontade à verdade é o fato de que a vinculação da vontade à verdade se desmorona sempre que o que se pensava ser verdade seja desacreditado . É natural que tenhamos uma crença psicológica de que nossa vontade possui veracidade, pois do contrário a vontade não existiria. Com certeza a vontade está umbilicalmente vinculada a crença. Do contrário, não seria vontade ou volição efetiva, mas mero esboço ou potência. Toda vontade é vontade atuante, isto é, possui uma gênese eminentemente prática. Mas daí a querer hipostasiar tal crença psicológica, de molde a confundi-la com uma tal exigência da verdade há uma grande distância.

6.4. Não existe a busca da verdade como um mister racional. A crença na verdade não é uma exigência do ego, mas uma implicação natural do homem – a razão de ser.

Observe-se que quando afirmamos que a vontade necessita da crença psicológica da verdade, tal crença não pode distinguir entre o homem e o resto da natureza. Importa dizer, a crença do homem na verdade nunca se dá de forma sectária, isto é, como se o homem pudesse crer na verdade aprioristicamente ou a despeito da natureza, uma vez que a crença psicológica da verdade no homem é antes uma implicação natural da condição do homem e não uma exigência racional . Na vontade, não há como distinguir ser e dever-ser. Trata-se de duas instâncias imbricadas no tertius genus afeto, onde se funde natureza e espírito.
O paradigma do homem da ciência como observador neutro a serviço da verdade é uma quimera. Como disse atrás, a idéia de determinismo causal parece muito sedutora ante a perspectiva ou aceno da verdade (relação necessária entre causa e efeito), isto é, supressão de todo arbítrio. Porém, neste caso a manutenção de tal paradigma da verdade tem um preço muito alto, qual seja, o fato de que para mantê-lo necessitamos de recorrer ao disparate de nos alijarmos da própria natureza. Tal alto preço que se paga pela verdade remonta à metáfora daquele que para ter a idéia de totalidade do mundo, necessita se lançar fora do mundo, isto é, como observador externo e, ao assim fazê-lo, despoja-se do próprio desfrute do mundo. A tentação de buscar a verdade no simulacro da idéia diz com o solitário amor platônico.

6.5. A exigência da verdade é uma forma de preconceito e tem como conseqüência o sectarismo: a divisão dos homens segundo suas opiniões.

A verdade não pode ser buscada como um fim-em-si. O ser é que tem preeminência. A vontade é uma efetividade prática. É uma instância que não depende do problema da justificação da verdade. Querer fazer a vontade depender da verdade, significa fomentar preconceitos, dividir os homens segundo os credos, separá-los segundo estejam ou não conforme a verdade. Querer extirpar a vontade nos homens sob o pretexto de que tal vontade não condiz com a verdade significa aniquilá-lo de sua condição humana. Se há vontade é porque há credo. Vontade é uma efetividade. A vontade não é uma mera pulsão ou prurido, mas um complexo de interação do ser com o mundo, no qual não representamos propriamente a realidade, mas, antes, a sintomatizamos, dramatizamos, vivemo-la afetivamente. A vontade não é mero vetor ou pulsão, mas um complexo ande todos os fatores (razão, imaginação, natureza) atuam dinamicamente.
A tentativa de impor ao âmbito do agir humano (ética) o paradigma do determinismo não logra alcançar tal efetividade prática. Isto é, prática entendida no sentido de efetivação da civilidade no homem. A bandeira iluminista de atrelar o progresso ao conhecimento é uma quimera, como já anteviu Rousseau ao desatrelar o progresso moral do acúmulo de conhecimento. Rousseau nadou na contramaré do movimento enciclopedista.
Os homens sectários do empirismo e utilitarismo pecaram em meio à euforia da obstinação de fundamentar até as últimas conseqüências o ponto de vista da imanência. O propósito de dar sentido prático ao discurso científico diz respeito ao projeto de reformulação do fundamento do poder, o qual culminou no advento da Revolução Francesa. Ao fundamento divino do poder dos reis, o qual se delineava como efetividade, posto que atrelado à idéia de juízo final, ou de promessa de civilização post mortem, era necessário opor um discurso da civilização no plano encarnado, temporal, secularizado .

6.6. A idade moderna pretendeu refutar a idade média advogando um discurso da verdade, instrumento que não é hábil a tal refutação. Não é a verdade que está em jogo, até porque é impossível isolá-la da vontade, esta sim efetiva. A verdade nunca se porta como exigência ou meio para qualquer fim que seja. A verdade é simplesmente o destino natural de confluência das forças. O porto seguro. O que tem luz própria.

Aqui, cabe um parêntese. A bem da verdade, o homem do Iluminismo nem precisava bradar com a espada da verdade contra o inimigo. Ora, a verdade, propriamente, não era cara à ordem medieval. Tratava-se de uma ordem dogmático-religiosa que manipulava os acontecimentos funestos – tais, as epidemias -, a fim de manter o seu poder (vide o santo ofício e a inquisição). No âmbito da igreja-instituição, o propósito não era, pois, o de perseguir o justo e o direito, malgrado seja de registrar a produção filosófica escolástica do direito natural, não necessariamente atrelada a fins ideológicos de domínio e poder.
Aquela falta de consenso sobre o conceito e eficácia do direito natural, ao longo da idade média e da modernidade, a que Kelsen faz referência, não deve ser levada às últimas conseqüências. Com todas as contradições e violências perpetradas pela Igreja na Idade Média, não se vá daí afirmar que a era contemporânea é refutação da Idade Média ou que o direito secularizado superou o direito natural de antanho. Em qualquer época da história a discurso teórico, mormente no âmbito moral, deve ser referendado no trama do contexto, em meio aos acontecimentos e as maquinações de poder . Na idade média foi assim e hodiernamente não é diferente. A perspectiva de teoria pura é uma vã ilusão. Se já o é no âmbito da ciência natural, imagine no campo moral...


7) Kelsen e a ilusão de refletir sobre o direito natural como objeto de cognição

É vã a tentativa de Kelsen de enquadrar o questão do direito natural sob o prisma teórico, apontando a “falta de consenso” como o signo de um tal malogro do direito natural. Para que assim o fosse, Kelsen deveria fazer o contraponto de um outro sistema onde efetivamente se verifica o consenso. Como cediço, Kelsen, quanto muito, de lege ferenda, fala de tolerância ou respeito às diferenças. O consenso kelseano é meramente formal e com forte apelo lógico ou ainda a defesa de uma ordem baseada na convenção imposta pela maioria.
A demanda do direito natural e sua respectiva compreensão metafísica continua mais que atual e lícita. Simplesmente porque o homem ainda não fechou a gestalt do direito . A imposição dogmática de ordenamento como sistema autopoiético, preconizada pelos jusfilósofos contemporâneos, é uma idéia abortada.

7.1. A “constatação” da existência do mal no mundo é um equívoco, bem como querer daí deduzir a inexistência/impotência da Justiça Divina. A teodicéia não pode ser colocada como questão, seja para os que refutam a Justiça Divina, seja para os que defendem a justiça divina. O ajuizar questões (exigência do ego) não é meio de fazer ciência. Ao problematizar, acreditamos que a polêmica que instauramos existe de fato na realidade. Quem garante que tal pressuposto exista de fato? A realidade deve ser vivida, percebida, sentida. Nomear a realidade, via de regra, nos afasta da realidade, uma vez que passamos a vivenciar a ilusão da realidade. É impossível reduzir a realidade à bagatela de uma hipótese racional. A realidade é sempre revelação – existência de fato e não petição de princípio.

Urge retomar a questão da teodicéia, acentuando menos o âmbito de cognição e mais o âmbito prático, a fim de perseguirmos uma ordem efetiva, isto é, onde o direito natural saia do mero discurso retórico e dogmático. É heresia falar em refutação do direito natural ou de qualquer direito, porque refutar é antes um imbróglio ao sabor da polêmica entre pontos de vistas divergentes. Absorvidos em tal ambiente de belicosidade, nos foge o verdadeiro norte a perseguir, qual seja, a efetividade. A efetividade não é a luz que ofusca as doutrinas jurídicas, apontando-lhes o erro, mas simplesmente o lugar onde o homem se reconhece em sua humanidade. Ainda que somássemos, ad infinitum, todos os erros, ainda assim não chegaríamos à verdade. A verdade deve ser leve, para que possa ser suportada.
Que fique bem esclarecido que a epopéia do direito não pode ser um flagelo entre contendores de doutrinas opostas. Se assim for, manter-se-á como saga, sem nunca alcançar o patamar da conquista efetiva da civilização. Qualquer sistema de direito carreia contribuições para o nosso labor de compreender as nossas vicissitudes. Dentro de uma perspectiva de construção, críticas são sempre bem vindas e não há que se falar em refutação peremptória de nada . O que devemos, sim, é vigiar para não cair no logro de endeusar a teoria, a ponto de querer que a realidade gravite em torno dela. Como dizia o sábio Jorge Mautner, “Cinza é toda teoria, mas verde é a árvore da vida.” A demanda do direito natural, a despeito desta ou daquela fundamentação dogmática, é mais que atual.
Não há como alinhavar um discurso da bondade de Deus sem que tal bondade produza frutos, isto é, sem que a humanidade trilhe o caminho do bem. A bondade de Deus só pode ser entendida numa perspectiva prática, apodítica. Do contrário, o discurso da bondade de Deus será um mero discurso retórico de sua superioridade e perfeição, gerando daí equívocos sobre equívocos. Primeiro, por dar a ilusão de conhecermos a Deus (âmbito de cognição) e daí pagarmos o alto preço de introjetarmos nosso narcisismo (quem conhece a Deus é deveras poderoso, talvez, até mais que o próprio, pois o ato de conceber é uma criação) na forma de uma submissão (tal submissão não passa, por paradoxal que seja, de uma submissão a nós mesmos, já que, como sublinhado, fomos nós que concebemos tal superioridade). Segundo, porque o discurso da bondade de Deus será inócuo caso não alcance a efetividade prática, se não produzir os frutos de sua bondade.
Refletir com mais vagar sobre o direito natural é deveras importante, tendo em vista que a história não se dá por episódios estanques, mas interligados. Para se compreender o discurso alinhavado na modernidade e contemporaneidade, necessário atentar para o curso da história, resgatando-lhe os processos, a guisa de interpretar e valorar as idéias e os discursos, dentro do ambiente de contexto relacional em que se inserem.

8) A imposição da disciplina é a primeira das cogitações do modelo hedonista

Como dissemos e ora repetimos, ao fundamento divino do poder dos reis, o qual se delineava como efetividade, posto que atrelado à idéia de juízo final, ou de promessa de civilização post mortem, era necessário opor um discurso da civilização no plano encarnado, temporal, secularizado.
O homem do empirismo necessitava de um discurso da disciplina e do direito para concretizar tal tarefa. Não há, pois, como impor um modelo somente na base da sugestão. O discurso do hedonismo, malgrado a horizonte de felicidade que envolva , é um discurso da efetivação da ordem, é um discurso de imposição.
Chamamos atenção para o fato (a nosso ver, de suma importância) de que a perspectiva hedonista, não obstante a aura de liberação que a idéia de maximização do prazer suscite (daí, liberalismo, como contraponto à constrição ascética), é, sobretudo, uma disciplina que visa a impor um julgamento e ordenar a realidade .
Por ora, cumpre deslindar a questão de como os homens da ciência emergente se desincumbem da tarefa da dar efetividade à disciplina do agir humano, fato tal que se confunde com a ordem liberal .

8.1. A doutrina do individualismo tem como corolário a preocupação com o outro desde que represente potencial ou efetivamente uma ameaça. A idéia do Contrato Social foi forjada nestes moldes. A verdadeira prudência assenta na solidariedade, isto é, a preocupação incondicional com o outro.

O ponto de visto hedonista extrai sua efetividade no interesse egóico. A preocupação com o outro só ocorre por via reflexas, isto é, de ordem pragmática . A preocupação com o bem estar do outro, segundo o hedonismo, se dá na medida em que o outro é uma ameaça potencial ao nosso bem estar. A doutrina do Contrato Social incidiu no equívoco de confundir o âmbito de cognição com o âmbito prático. Não há um ponto de inflexão para um adentrar no social, pois que o social, no sentido de civilidade, só tem concreção na ordem prática, isto é, à medida que se realiza o bem comum. A distância que separa o “eu” do “outro” só pode ser vencida quando, reconhecendo o malogro da perspectiva de busca do fim no auto-prazer, buscamos uma síntese que contemple o “eu” e “outro” numa mesma moral (numa mesma morada). A civilização diz em desfrutarmos um habitat comum, o habitat da humanidade. Onde não haja abismos ou esquinas, trincheiras bélicas ou credos sectários a separar uns e outros. Quando nos reconhecemos no outro, percebemos que os muros que construímos para nos isolar do mundo são ilusões por nós criadas. Aparente segurança, que a par de não nos proteger de nada, nos aprisiona. Resignamos-nos em nossos sectos, sem nos dar conta que o mundo é a nossa morada, que a atitude de cada um de nós contribui para a feição do todo.

8.2. O movimento pela subjetivação dos direitos objetiva garantir posições de privilégio. Está conforme uma sociedade estratificada em castas.

O movimento por subjetivação de direitos é por assim dizer uma página da história. Não logra, porém, alcançar a dimensão de “o que é de direito” ou do direito dito adquirido. A Ordem Contemporânea como movimento de apologia de direitos revela-se impotente para realizar a paz social. A tônica na garantia de direitos ou direitos adquiridos perpetua as relações de dominadores-dominados, pouco se diferenciando da relação Rei-Súdito. Tal ocorre porque é impossível tornar universal o direito, na base de uma fórmula lógica ou racional. É impossível exprimir o direito na base de uma sentença, por ex. “todo proprietário está para com o mundo numa relação de alteridade” “dizer-se proprietário significa dizer aos demais “não-proprietários””.

8.3. O método da abstração, conquanto sirva ao apelo retórico, se afirma sempre na negação, isto é, na exclusão de parte da realidade. É impossível exprimir o princ. da causalidade através de uma sentença. Seja porque a sentença não pode dizer tudo, seja porque, ainda que pudesse, não é de se dizer apenas (isto é, confinar ao mundo da teoria) aquilo que deve ser ínsito à expressão de nossa humanidade. O direito não está nas sentenças, ou em qualquer interpretação por mais estilizada que seja, mas no espírito do povo. A voz do povo é a voz de Deus. Somente o amor (força inteligente – força + espírito) une.

A tentativa de exprimir o direito na base de uma fórmula ou sentença é fadada ao fracasso. Várias razões assim aconselham: 1) toda sentença divide o mundo em realidades estanques (por ex, proprietários e não-proprietários). Toda sentença necessita de uma relação de negação, ainda que implícita (por ex, dizer-se branco, supõem uma relação de contrariedade com outras supostas cores – caso houvesse uma só cor, não haveria como nominar cor alguma). Toda sentença é um ato de separação (abstração). A metodologia científica tradicional nunca poderá exprimir o princípio da causalidade, uma vez que o controle de variáveis significa restrição. Caso fosse possível exprimir o princípio da causalidade, tal só poderia ser possível na base da consideração de todas variáveis. Mesmo que, por hipótese, fosse possível considerar todas variáveis, ainda assim não seria possível exprimir o princípio da causalidade. Tal, porque a eleição de uma variável significa sepultar o livre acontecer das coisas ou o acontecer contingente. Pensar uma variável significa aprisionar uma realidade em relações previsíveis. Além disso, a sentença não pode conjuminar em si todas as variáveis, uma vez que o julgamento implica abraçar uma versão do mundo e não uma onisciência. O sujeito que emite uma sentença é punido por não poder comungar da realidade que assevera. O mito do observador neutro (isto é, que não interfere na experiência) carrega a limitação de que tal sujeito de ciência não pode estar em interação dinâmica com sua experiência. É sem consistência o credo de que as inferências ao mundo significam conhecimento.

8.4. O conhecimento das coisas do mundo não almeja um significado unívoco, nem um fim teórico em-si, uma vez que as coisas do mundo estão atreladas a nossa experiência e volição. O significado das coisas muda conforme o contexto e o desiderato. O exemplo da “pedra” e da “descoberta da quebra do átomo”. Crítica a romântica perspectiva empirista do ato de conhecer. O homem não pode se despojar do seu afeto/sintoma, como se pudesse conhecer apenas pelo intermédio dos sentidos e razão. Não há ponto de descontinuidade entre homem e natureza. O homem se revela como natureza.

Dizer, por exemplo, “pedra” não significa conhecimento algum. Não há possibilidade de reduzir as relações a uma mera especulação, tal como se almejássemos apenas reduzir a coisa ao seu elemento essencial. O sujeito do conhecimento é um engodo ou uma falsa ilusão da verdade. A “pedra” não existe de per si, mas imbricada numa trama natural em relação intima e inextrincável com o nosso sintoma. Querer fazer um recorte do homem como sentidos (visão, audição, tato, olfato) é reproduzir um ideal romântico e ingênuo de relação com o mundo, mediante o simulacro da experiência. O homem é natureza, e deveras complexa, uma vez que dotado de vontade. Daí se infere que não é o resíduo dos sentidos que firmam a relação do homem com a natureza, uma vez que a natureza mora no próprio homem como criação e não como um produto ou reflexo somático. A idéia de que o homem capta a natureza exterior sem nela interferir ou desinteressadamente (isto é, com olhos de mero observador passivo) é falsa, uma vez que o homem, sendo vontade natural, o tempo todo está em íntima profusão na natureza. Dizer “variável” é introjetar uma ilusão de que temos em vista uma realidade dinâmica (por exemplo, assumir que um carro pode mover-se em “n” velocidades), quando, na verdade, não passa de uma hipótese pré-concebida.

8.5. A falsa concepção do “voluntarismo” forjado como “teoria que se faz passar por prática ou que informa a prática”. A expressão da vontade nunca nasce de uma imposição. A expressão da vontade não é uma concessão da teoria. O amor, como princípio-valor apodítico, nos insere no âmbito de graça. Isto é, um âmbito que nunca perde o sentido, isto é, no qual o “sentido” (fundamento de validade) já descansa em sua natureza (não é por convenção, mas de direito). O amor, mais que uma convenção, é querido, realizado e desfrutado.

Valer-se do julgamento, da sentença, significa acreditar que o mundo opera na base da voluntariedade, isto é, que o alcance da verdade não pode ocorrer naturalmente, mas, ao contrário, depende de uma alteração do curso das coisas. Toda voluntariedade significa cisão, parodiando o dilema shakespeariano “ser ou não ser”. A sentença acorda o mundo. Infunde a ilusão de que o mundo precisa ser nominado para ser mundo. Dizer o homem é mortal, não passa de uma constatação empírica de que as pessoas morrem, baseada na inferência de que o corpo físico é sujeito a degradação. A rigor, a sentença da morte só poderia ocorrer como pura prática, isto é, como morte em realização, uma vez que o ato cognitivo “o substantivo “homem” mais o adjetivo “morte” nada diz sobre a morte. As sentenças não podem fazer as vezes da realidade. Nem o suicida poderia pré-conceber sua morte na base de um ato (por ex, enforcar-se), uma vez que a realização nunca poderá se restringir a potencia. A morte, se possível, só pode sê-lo como realidade autônoma, na qual o indivíduo a vivencie como espírito. Não é somente um estado, tal qual de uma variável (função de duas coordenadas – tempo em relação com espaço) se tratasse. A morte não pode ser sujeito, pois o indivíduo nunca deixa de sintomatizar/dramatizar a realidade. Somente neste ínterim a morte pode ter lugar, isto é, em interação dinâmica com o indivíduo e nunca como estado ou condição. Ante tais conclusões, a sentença de morte “o homem é mortal” é absolutamente falsa. Quando me referi ao suicida e disse do ato de enforcar-se como se potência fosse, não há contradição alguma nisso.

8.6. A violência tende à inércia. A violência é fadada à morte. O moto-contínuo é o amor. O amor é força sem violência.

Ora, toda violência, em verdade, não é ato, mas mera ilusão de ato, uma vez que toda violência tende a inércia. O ato de se enforcar, sendo uma violência ou um ato contra o ato, na verdade, muito mais afinidade com a potência guarda, uma vez que não é um ato desencadeador de frutos fecundos de vida, tal como o amor, verdadeiro ato – não necessita de violência, não está sujeito a degradação – subsiste pela eternidade. Chutar uma bola, é uma violência contra a bola. A bola, por sua vez, reage contra o chute. O ar, por sua vez, reage contra a bola. As relações se tornam de tal forma implicadas tal que o destino da bola é a inércia, ainda que se tenha em conta que o referencia da bola (o lugar onde se encontra) não é um mundo estático, mas um planeta em órbita. Se houvesse só forças mecânicas governando o mundo, tal mundo teria como destino o ocaso. O mundo não pode derivar apenas de uma realidade mecânica, mas requer uma força inteligente, isto é, sem violência, sem que seja suscetível de degradação. Tal é um desafio, principalmente para os sectários do voluntarismo/decisionismo, que acreditam que tudo depende de um julgamento ou sentença. Como conseguir uma força sem violência, sem que tenhamos que apelar para a negação da natureza ou a criação de realidades quiméricas ou imaginárias ou ainda tenhamos que apelar para a instância do espírito como negação de toda realidade fenomênica e natural...? Tal dimensão – força sem violência – se possível, só o será na base da demanda de nossa própria experiência e nunca como apoderação de um saber ou do conhecimento de qualquer objeto (cisão sujeito-objeto). A dimensão – força sem violência – só pode existir numa instância de pura revelação, isto é, sem que o mundo precise ser referenciado, nominado, sublinhado, reflexionado. A dimensão – força sem violência – nada mais é que a dimensão amorosa, só passível de ser vivida como inocência, isto é, como experiência única e não suscetível de repetir. Não há em tal dimensão velhice ou nostalgia, uma vez que o amor só subsiste na juventude do espírito. Aceitar a dimensão do amor significa um acordo entre o conhecimento e a auto-aceitação. Toda vez que quisermos nos valer do conhecimento como porto seguro para implicar as demais relações, estaremos nos desviando da dimensão do amor. O conhecimento só se opera como o produto de um ser-no-mundo – conhece-te a ti mesmo – e nunca como um objeto possuído. Não há possibilidade de conhecer alienando a própria vontade.

8.7. O momento da alienação da vontade, quando do pacto de aderência ao Contrato Social, é da ordem do impossível. Além de ser da ordem do impossível, ainda que possível, seria inoportuno, pois que é um contra-senso o homem alienar sua própria vontade, sob qualquer justificativa que seja. Alienar a vontade significa abdicar de si mesmo, de sua auto-estima, de sua vergonha, enfim, significa se anular a bem de um protótipo de um ser-robô (o protótipo impessoal do homem-razão aderente do pacto). A Ordem só é possível de ser alcançada no âmbito prático, mediante aceitação incondicional de eu-volitivo das pessoas, qualquer que seja sua condição no mundo. Não aceitar o acontecer-prático das pessoas significar fechar os olhos para o mundo, ou, em outras palavras, se fechar numa redoma de auto-justificação racional. O mundo acontece a todo o momento. Não há como freia-lo racionalmente. Se há uma razão possível, somente é aquela que se incorpora à prática e se torna, conforme o plantio, instrumento operante no mundo. O termômetro da razão é o afeto/amor.

A perspectiva do contrato social é falseadora, pois não há como alienar a liberdade para depois retomá-la num plano social. A vontade, o sintoma são ingredientes intrínsecos do conhecimento, impossíveis de serem aprisionados como realidades estanques. O ideal de conhecimento teórico é um mito, uma vez que não há como despir-se de sua vontade própria para especular sobre o mundo. Uma vez que a inteiração de nós com nossa própria vontade não nos permite julgar, a única via de acesso ao mundo é a da percepção. A percepção é sempre subjetiva, isto é, envolve todo o “eu”. O universo da vontade é o universo de valor – as coisas não são certas ou erradas. Simplesmente, valem. Não há desvalor. O lugar do desvalor não existe. Ainda que pensássemos o diabo como desvalor por antítese a Deus – valor, tal não seria possível. Tudo influi no mundo. Tudo é valor. No campo da vontade nada pode ser entendido como puro desvalor. Para que fosse puro desvalor, não poderia ter influência sobre nada, fato tal que é impossível de ser concebido. Pensar a “pedra”, significa pensa-la na relação com o sujeito, não como um conceito subjetivado (isto é, apropriado pelo sujeito ), mas como pedra viva em confluência inextrincável com o sintoma/drama .

8.8. A pretensão à pura especulação é uma quimera. Todo conhecimento é politicamente referendado num contexto. O exemplo da quebra do átomo.

A pretensão de objetividade do conhecimento científico é um caminho muito curto. Veja-se o exemplo da quebra do átomo. Tanto boas (aparelhos médicos) como más (indústria bélica) intenções daí emergiram. Não há como apartar conhecimento algum de sua primordial inserção política, em virtude da própria condição natural dos homens . Como disse, a ilusão da objetividade do conhecimento é um caminho curto. Não existe a garantia de conhecimento de per si bom (por ex, a quebra do átomo), pois o conhecimento está umbilicalmente ligado a intenção/natureza das pessoas. O conhecimento só pode ser sufragado pela humanidade ou centelha divina que cada um de nós possui, nunca pelo seu resíduo particular. Não existe nenhum conhecimento que se possa dizer apriorísticamente bom, ainda que pensemos numa perspectiva inatista ontológica de Deus. Tal Deus será, antes, um engodo. Não há Deus possível senão por via de nossa vontade, da revolução interior que opera milagres em cada um de nós.

8.9. O âmbito do valor não comporta interdito. Entre o certo e o errado existe um abismo. Entre o bem e o mal não há uma antítese ontológica, uma vez que tais instâncias se comunicam. Conforme a doutrina bíblica da redenção.

Se não há possibilidade de pensar o mal como desvalor, como depurá-lo do bem? Não há porque apartar o mal do bem. Ainda que tal fosse possível, dita operação não seria de nenhuma valia. O mal não é antítese do bem, apenas possui a divina graça de contribuir para que contemplemos o bem com maior esplendor. O mal é como a dor que aponta para a chaga. Se dor não houvesse, não teríamos retorno de nossos maus investimentos. O universo do valor não tem seu ponto de amarração na verdade. Não há como querer implicar o valor na verdade. Querer tal coisa significa a tola pretensão de querer aprisionar algo que só alcança seu esplendor no seu operar dinâmico. O bem não pode ser apreendido como estado que se possa opor a um tal estado do mal. Se porfiarmos tal concepção, retornamos a estaca “zero”, reduzindo o bem a uma mera expressão lingüística, um adjetivo, um locus de uma sentença. O bem é valor, isto é, valor que vale, que existe no homem como realidade apodítica, impossível de ser reduzido a mero conceito ou objeto. O bem não é o adjetivo do homem, de Deus ou de qualquer outro, mas graça que se revela, instância inexpugnável da natureza. O bem não é valor ao gosto de uma ótica voluntarista (isto é, valor por referência, por convenção). O dinheiro nunca poderia lograr ser bem, vez que se trata de mero fetiche ou réplica de valor. O bem sempre opera efetivamente – princípio da efetividade prática. A existência de Deus é uma realidade e não mera petição de princípio. A questão da Teodicéia é mal colocada (rememorando: “porque Deus sendo sumamente bom permite a existência do mal”?) uma vez que o mal não é desvalor, não significa inverdade ou supressão de realidade. O mal existe como efetividade em meio à multiplicidade das condições (na natureza tudo é contingente). O mal opera nas entrelinhas, sempre a serviço do bem. Não há como pensar num contrato social, admitindo uma igualdade das vontades. É quimérico supor que todos adentram a sociedade mediante a uma idêntica resolução. Adentrar na sociedade não é função da cognição ou razão, mas exige vontade boa. Isto é, a civilização quer dizer nada mais que humanidade ou vontade boa e não um estado de prevenção ou prudência contra o mal
.
A prevenção contra o mal, em verdade, de prudência não se trata. A prevenção contra o mal é a disseminação do medo. Quando quero de alguém a amizade como prevenção em face de sua possível ameaça, tal relação nunca poderá ser de uma verdadeira amizade. Por exemplo, querer agradar meu vizinho, que tem uma condição econômica inferior a minha, para que ele não vá me furtar. O Contrato Social propõe esta forma de prevenção contra o mal. Preceitua que todos são iguais e todos devem respeito recíproco, respeito aos direitos de propriedade alheios. Não passa de um estratagema ou petição de princípio, através do discurso de uma suposta igualdade de direitos. A igualdade de direitos vive no mundo das idéias, totalmente apartada da realidade dos fatos, onde se verifica a diversidade das condições das pessoas. A igualdade de direitos dos indivíduos é um artifício necessário para inculcar a perspectiva voluntarista/decisionista do Contrato Social. Além disso, o jargão do respeito mútuo de direitos se trata daquela prevenção contra o mal, que antes sublinhei. Digo ao outro: - eu lhe respeito, logo, você deve me respeitar. Tal conclusão é falsa, por se tratar de uma atitude possessiva, que faz do outro um joguete da condição por nós estabelecida, bem por não ficar claro do que se trata este respeito (um mero não fazer mal ao outro, ao invés de ser co-responsável pelo seu destino). Só há uma autêntica prevenção ou prudência na disseminação do bem e no respeito incondicional à condição do outro. A prudência que se funda na prevenção do mal é uma ilusória garantia de direitos. É o mito de que a segurança fala mais alto que a edificação social e a realização dos indivíduos. A disseminação do pavor se vislumbra na metáfora do homem seguro contra o mundo em sua casa trancafiada a sete chaves e paradoxalmente fadado a uma prisão auto-imposta.
No caso, os mentores do Contrato Social, além de pretender nos imunizar do mal alheio (isto é, da suposta ameaça ao gozo do direito), preconizaram o Estado Social como instância de prevenção contra nossa própria ganância ou maldade (isto é, desejo a tudo com exclusividade, com exclusão de qualquer outrem). Não há “ser social” por oposição a “ser natural”. Este ser pensado como ser natural (o ser do egoísmo) não é propriamente um ser natural, mas produto de uma cultura e, diga-se, equivocada. Repita-se, cultura lastreada em conhecimento muito tíbio do homem. Cultura de ínfima fé. Cultura impressionada pelo impacto irrefletido do mal. O homem da ganância (o que tudo quer) é uma hipótese de laboratório e não propriamente o ser em estado de natureza.

8.10. A responsabilidade como paradigma de imputação dos sujeitos é uma criação dogmática. Um estereótipo necessário à imposição do Poder. No plano da realidade, os indivíduos são mais ou menos responsáveis, conforme o grau de maturidade. Não há como se exigir dos sujeitos um padrão unívoco de responsabilidade. Os mais responsáveis tem maiores ônus perante os menos responsáveis. Doutrina da caridade.

O eu-subjetivo é um ícone? É possível falar em individualidade? O que é a individualidade? Atributos como responsabilidade, liberdade, poder podem ser vivenviados pelos indivíduos tal como adjetivados em sua pessoa como acessórios de um suposto “eu-ordenador”? O ser pode exigir de si, como se pudesse ser objeto de si mesmo?
A Ordem liberal necessita dos lugares comuns. Malgrado toda aura de cientificismo e fundamentação racional, a Ordem laica vale-se a todo o momento do fetichismo e do apelo dogmático para se erigir como Ordem. O protótipo do ser individualizado e livre-arbitrário é um fetiche, seja porque ninguém decide em condições de puro exercício individual do livre-arbítrio (nossos desejos estão implicados na sociedade, como uma complexa trama, de inter-relações, de influências recíprocas. Ninguém decide solitariamente. Vide a psicologia de massas, por ex., as torcidas de futebol e a violência; a propaganda e a influência sobre o comportamento das pessoas), seja porque não há como ter um denominador comum para proceder ao julgamento de nossas atitudes. A condição de cada um é personalíssima. A singularidade da condição de cada qual acarreta a impossibilidade de erigir um denominador comum nas relações, na base do certo-errado. Como querer impor os meus valores ao outro, informado por tantos outros valores?... A condição de cada um é porsonalíssima, por qualquer dos prismas que se observe: vivencia ou experienciação do meio ambiente; manifestação do eu-afetivo.

8.11. Porque o paradigma do certo/errado não se presta a instituir uma disciplina social?

Porque não é possível julgar a conduta das pessoas através do paradigma certo/errado, analogamente à metodologia aplicada às ciências da natureza? O cientista social, o jurista, o filósofo, o jusfilósofo podem pretender ocupar o lugar do senhor-certeza? É possível que a verdade se despoje de toda sua pretensão de poder, para que se ratifique como pura verdade? È possível que os homens vivenciem suas experiências de molde a abdicar de toda sua condição subjetiva e humana para se erigirem em detentores de um saber objetivo?
A despeito de sua inspiração anti-metafísica, o movimento de laicização do direito não é menos mitificado. Necessita de infundir credo aos indivíduos, necessita de inculcar a ordem, necessita de simbolizar o poder, de reverenciar fórmulas sagradas, ou palavras de efeito. Em que medida a Ordem Liberal nos liberta de um senhor todo poderoso ao qual devemos resignação e devoção?
A demanda do poder está implicada na demanda da verdade. Não há como dissociar uma coisa da outra. Não passa de um apelo romântico acreditar que a verdade nos franqueie um lugar justo e eqüidistante de todas as pretensões egoísticas de poder. Não há como colocar a verdade a frente do poder. Não existe nenhum trampolim que logre realizar tal proeza. O ideal teórico de apreender a realidade é fruto de uma prisão lógica ou movimento de desconstrução da realidade, tal como se pudéssemos apreendê-la por partes. Não existe possibilidade de apreensão teórica da realidades tais como justiça, direito, moral. Mesmo, no âmbito das ciências da natureza, tal ímpeto supostamente objetivo, teórico e apriorístico vem sendo paulatinamente infirmado. O ajuizamento da realidade, isto é a pasteurização da realidade através de adjetivações é um ideal de estagnação da realidade, isto é, uma tara de aprisionar aquilo que só pode ganhar termo nos dinamismo da nua e crua realidade, não afeta a definições ou clichês. Pensemos como um cientista da natureza e vejamos até onde a perspectiva de inteligir o mundo teórica e aprioristicamente vai: começa-se com a problematização, por exemplo, como quebrar um átomo. Após alcançado tal desiderato, exsurge uma nova pergunta, que é decorrência da primeira pergunta, a qual parecia ser autônoma e objetiva. Vamos a segunda pergunta: - para que serve a quebra do átomo? A resposta a esta pergunta está implicada às intenções dos indivíduos. Não se está mais navegando no terreno do pretenso ideal científico de neutralidade e puro amor à objetividade dos fatos. A resposta a tal pergunta (para que serve a quebra dos átomos) já não depende mais de condições meramente especulativas, mas, ao contrário, depende de condições materiais de estruturas definidas de poder, de fomento logístico. A quebra do átomo pode se prestar a muitos fins, tal como um equipamento médico que se preste a salvar vidas, ou uma bomba de alto potencial lesivo. De uma primeira problematização aparentemente inocente (como quebrar o átomo) desembocamos em um universo altamente politizado , onde não há como tratar a verdade como realidade estanque em relação aos credos, valores e índoles dos indivíduos.

8.12. Não existe delimitação racional ou estado de defesa contra o mal.

O mandamento divino “crescei-vos e multiplicai-vos” guarda em si bastante sabedoria, pois que o homem não pode querer ter pretensão à verdade alguma se não se conscientizar que tal verdade nele habita. Não é por outro motivo a máxima socrática “conhece-te a ti mesmo”. É fadada ao malogro a tentativa de buscar uma verdade como porto seguro de proteção contra a nossa própria hipocrisia. Não existe nenhuma garantia em face da ameaça que representamos a nós mesmos.
Trazendo à baila a candente questão da teodicéia, isto é, porque Deus na sua infinita bondade permite a existência do mal, reflitamos na infinita sabedoria que reside na intenção de abandonar cada qual a sua sorte. Se assim não fosse, seriamos totalmente dependentes da verdade. Por graça e obra de Deus não somos dependente da verdade. Deus quis que vivêssemos a verdade em nós. Deus quis em nós habitar, mesmo tendo consciência de nosso estado imperfeito. A verdade e condição humana, verdade e intenção, verdade e poder, verdade e condição carnal: não há como dissociá-los. Qualquer tentativa nesse sentido não passa de um engodo lógico, de um ajuizar/sentenciar, que nada mais é que um ato de separar ou extremar coisas, sem que daí exsurja nenhum resultado útil de maior monta.

8.13. A idéia de autonomia/individualidade das pessoas, a par de sedutora, não significa propriamente liberdade, mas imposição de disciplina.

A Ordem laica pensou fazer justiça aos indivíduos personalizando-os em entes autônomos, em seres individuais e senhores de seus destinos. O suposto cidadão que se quis criar, o suposto senhor de direitos e obrigações que se quis criar, enfim, o protótipo de cidadão é um constructo racional, uma pura abstração sem correspondência com a realidade. O movimento de subjetivação dos direitos, a par de seu fim aparentemente nobre referente a despolarizar a condição de súditos das pessoas submetidas ao estado-rei, deu ensejo a tantos outras aberrações.
O estado-rei travestido na condição de um inimigo é um bode espiatório conveniente à perigosa retórica da polarização dos opostos . Os discursos de ordem necessitam de seus opositores para que possam se afirmar em meio à contrariedade. É possível a construção de uma ordem sem que se necessite fazer apelo a uma correlata desconstrução de um outro algo? É possível construir sem que para tanto seja necessário deixar um rastro de destruição, sem cair no engodo da saga maniqueísta da eterna luta entre o bem e o mal?

O estranho paradoxo de empirismo e idealismo da idade contemporânea sobrevive como um doente dependente do tubo de oxigênio. O matrimônio do empirismo e idealismo é uma espécie de união sadomasoquista, na qual o idealista – o puritano da história – diz ao empirista – o senhor-hedonismo; o sexólatra: - eu vou orar por você; o empirista, por sua vez, diz ao idealista, eu vou gozar por você. Trata-se de um Estado, de uma lado, agonizante pela exasperação da exigência da verdade, pela imposição da ordem (como se pura cobrança ou dever pudesse ser) e, de outro, promiscuído, como se o tal hedonismo fosse pura carnalidade bestial. Convivem no estado o masoquismo e o sadismo, como componentes de uma fórmula perversa.
Em tal estado de coisas, não se vislumbra ordem possível. A bandeira iluminista de superação das trevas através da instauração do mister científico, a par de sua ancianidade, já passados três séculos de história, naufraga rodeada de seus louros de conhecimento. A humanidade progrediu, adquiriu conhecimentos, desenvolveu tecnologias, sofisticou-se, estilizou-se, e daí?...! Afinal, porque o progresso do conhecimento não condiz com a instauração do bem comum e da paz entre os povos? Porque o conhecimento não pode em si encampar a bandeira da justiça? A bandeira do saber não é um porto seguro onde possamos ancorar nossas expectativas?

8.14. O estado contemporâneo e a crença na verdade como instância de superação de preconceitos. “Estado contemporâneo” quer dizer crença de que se chegou ao presente, na figura do gozo de um direito previamente garantido. A nova era é a era da conquista de direitos. A era do presente construindo o futuro ("o futuro se faz agora" - conquista de direitos) substitui a era contemporânea (isto é, da racionalidade; da garantia de direitos; da visão romântica da fruição hedonista do direito, tal como se pudéssemos ter propriedade sobre os direitos).

O Estado Contemporâneo é fruto de uma concepção de viver um certo presente com pretensão de futuro. É como se os homens na sua epopéia histórica tivessem a pretensão de ter atingido um tal estado de civilização no qual a história atingiu seu termo. Como se vê, é uma pretensão vã. O patrimônio/aquisição do conhecimento ligado ao progresso , definitivamente não é um bom casamento. Fazendo-se uma retrospectiva da história da humanidade, observa-se acontecer por ciclos, tal o revezar de períodos pragmáticos e idealistas. A história não é linear, mas acontece pela sucessão de ciclos pragmáticos e metafísicos .

8.15. O endeusamento do objeto do conhecimento como signo de progresso. O saber escamoteia as intenções, que não constituem a priori propriedade do objeto, mas são simplesmente humanas. O sábio sabe para si. Não projeta o saber num objeto externo, tal um objeto mitificado, recheado de intenções e veleidades.

O preço de se associar acúmulo do conhecimento e progresso é bastante alto. Ainda que se admita que a trajetória do homem signifique busca, não há como proceder tal busca sem que exista uma fonte efetiva que dê validade a tudo. Não se trata de uma fonte convencional, mas efetiva, isto é, baseada num valor que é mais que princípio. Trata-se, por aparentemente redundante, de um valor que vale. Tal sentença é só aparentemente redundante.
Quando se quer exprimir um estado de espírito ou faticidade (e não um iter descritivo) a preocupação formalista é totalmente despicienda. Atente-se para a famosa frase de Sócrates: Só sei que nada sei. Qualquer análise lógica a fulminaria. Mas, então, porque subsiste ilesa? Ora, simplesmente porque revela um estado de espírito e não uma situação descritiva (tal como se falássemos de um outro sujeito sobre quem adjetivamos). Sócrates ao dizer, diz a si mesmo. Não necessita de um observador que lhe capte o sentido. Pode exprimir-se, ainda que de perplexidade ou espanto se tratasse. Ora, tal faculdade de expressão é dignidade, é cidadania. O maior expoente do direito é a expressão, pois é quando nos damos o direito de sermos em nossa humanidade, isto é, sem subterfúgios ou manobras de querer-se ser-se mais do que é. O senhor-verdade constrói um castelo para nele habitar e daí fica prisioneiro deste castelo. Ao construir o castelo conclui privar-se do bem mais caro: a livre expressão. Livre expressão, esta, que não precisa de cartão de visitas, sob pena de desfigurar-se.

Como disse atrás, a idéia de acúmulo de conhecimento atrelada ao progresso passa ao largo da ciência. A ciência não pode ser uma reconstrução do mundo, sob pena de vivermos uma suma artificialidade... Ou querermos fazer do natural uma instituição, o que é um paradoxo! Não há evolução possível sem que abandonemos a perversa idéia de aquisição ou posse embutida no conhecimento. Tal implicação de poder/posse/aquisição no conhecimento não passa de uma ingenuidade. Não passa de uma forma anômala de assumirmos nossa condição política amalgamada a uma pretensão de verdade. Ora, admitamos o poder, admitamos nossa gênese política. Querer sublimar o poder sob o pálio da verdade significa uma grande hipocrisia. O poder travestido de verdade é uma máscara perversa e egoísta. O conhecimento só pode aspirar estar a serviço da verdade , mas em hipótese alguma colocar-se no lugar de construtor da verdade. Aquele que se diz detentor da verdade, nada mais faz do que aliciar-se a si próprio ou martirizar-se. Mais sorte teria se cada desejo pudesse ser vivido plenamente, isto é, em comunhão com o todo. Cada desejo que se nos antolha, por mais aparentemente insignificante, é pura ciência. Diz com a nossa condição singular de conhecer o mundo concomitante ao interagir com ele.

8.16. Conhecer o mundo e agir sobre o mundo não podem ser processos distintos e estanques. O barro que Deus nos moldou desde já assumiu uma índole prática. A criança desde o ventre materno (ou até antes...) já navega no universo do acontecer prático. Traz esta semente (cuja vocação é germinar) em seu espírito.

Muito ao contrário da hipócrita tentativa de querer primeiro (a moda da pretensa neutralidade) inteligir o mundo para ao depois agir sobre o mundo. Não há como separar estes dois momentos, sob pena de viver de forma fragmentada. Julgar-se detentor da práxis é assumir uma postura possessiva perante o mundo. É querer que todas as expectativas migrem para a sua pretensa auto-verdade. É querer que o mundo gravite em torno de nós, em meio à pífia expectativa da busca de confirmação da verdade, tal um estado simbiótico filial com o Deus-pai. Como disse atrás, assumir uma correlação saber-verdade significa querer engendrar o ente político no ente determinístico. Significa querermos implicar num divisor comum entes de natureza diversa. Ora o poder, a política, a sabedoria não dependem da verdade. Não se justificam na verdade. Não há como ter uma garantia de poder ou de verdade ou de uma pretensão atitude insofismavelmente ética. Tal ocorre porque não é de nossa natureza polarizar a verdade num escaninho de nosso desejo. Não há como tornar o desejo objeto. Há uma confluência com o desejo ou uma interação personalística. Não há como fazermos do desejo um produto ou mercadoria. O sintoma é um complexo orgânico e afetivo que não é possível desvendar ou descobrir o manto. Vivemos inexoravelmente com o sintoma. Qualquer experiência possível é mediante o sintomatizar/dramatizar, exprimir o mundo pelo canal dos sentimentos e vivências afetivas. Não há atalho possível fora daí.

8.17. A verdade encarada como produto/objeto tem como conseqüência o aviltamento do desejo. O desejo seria o cultor/adorador daquele totem externo, representado como “a verdade”. O “bem” encarado como objeto de posse significa mercadejar com o desejo. O “bem” é, mais que um atributo/adjetivo/propriedade, uma condição personalíssima do ser, só exprimível no próprio expoente do ser (isto é, não comporta representação).

A humanidade tem malogrado em auto-distruição, querendo trasformar o desejo em mercadoria ou produto, tal as várias formas de prostituição do corpo (sexolatria) e sentidos (droga). Tais desvios acarretam patologias por perda de imunidade. O corpo humano tem defesa natural, o ser humano em sua realidade espiritual e afetiva tem um vasto mundo para descobrir e um sem fim de coisas boas para experiênciar. Via de regra, trocamos tal riqueza por perspecticas pífias e malogradas, tal como soe acontecer com a remediação crônica, com a droga em busca de prazer, com o sexo apartado do afeto. A humanidade tem buscado perspectivas imediatistas, no mais das vezes à procura do lucro certo , perspectivas, estas, que acabam custando caro. Veja-se os alimentos com agrotóxicos. Fazem mal as pessoas. Os agrotóxicos são o substitutivo fetichista do óptimo da natureza em estado de biodiversidade. Ora, na natureza há controle biológico. Todo meio que possui um relativo grau de desorganização, consegue perpetuar-se, bem como possibilitar a manifestação dos elementos interagentes. Quando extinguimos tal desorganização, por exemplo, plantando em vastas áreas uma só semente, o controle biológico fenece e daí a completa vulnerabilidade ao ataque das pragas (ou elementos potencializados pela ausência de inimigos naturais). Daí, o homem na sua sanha imediatista, remedia, utiliza o princípio da morte (agrotóxicos) para matar a praga. Tal remediação em utilização diuturna vai acarretando processos de morte em escala multiplicativa, de forma que a natureza vai perdendo suas defesas naturais. O mesmo acontece com o homem que se remedia. Tal homem podia, ao invés, correr, ser feliz, utilizar de forma saudável a mente, sonhar, amar, descobrir. Muitas das vezes, confina-se a perspectiva aidética de extorquir de si aquilo que seu miserável corpo já não pode mais lhe dar.

8.18. Dos três paradigmas relacionados à saúde (promoção-prevenção-remediação), o mais caro é o da promoção. A promoção da saúde é um modo de ser, incorporado pelo sujeito/sociedade. É antitético à exigência, pois que o gozo o é pelo sujeito e na medida em que toma a decisão política de assim proceder. A pedagogia da promoção não é através da exigência, mas do exemplo. A promoção da saúde nada mais é que gozar a saúde, vivê-la qualitativamente, transcender à perspectiva funcional do corpo, sorrir com o corpo.

Remediar-se é o mais reles dos paradigmas da saúde. Além da remediação está a prevenção e ainda muito além está a promoção. A saúde não é um resíduo do corpo, mas nós mesmos em realização. A saúde é um estado qualitativo do espírito. Um estado que paradoxalmente não pode ser apreendido como estado , mas apenas como desfrute. A sanha capitalista de engendrar produtos contribui para um mundo cindido, onde as questões são pensadas de forma fragmentada . Aquele que remedia a praga da plantação resolve uma problema imediatista, a par de criar a tantos outros problemas. Implica dizer, resolve um problema pelo efeito e, de outra banda, é uma nova causa produtora de tantos outros efeitos nocivos. Remediar quimicamente a praga da plantação é um diagnóstico precoce, é um problematizar a natureza de forma sumária. A praga da plantação não é doença, mas apenas uma reação natural contra os efeitos nefastos causados pela monocultura. Como dissemos, é equivocado diagnosticar a praga como sendo a doença. No caso, o que é doentio é o ataque à biodiversidade operado pelas práticas de monocultura e plantation. A praga é só um sintoma da doença. É a ferida que, se bem compreendida, aponta para a cura. Graças ao bom Deus as pragas existem. A questão é: até quando vamos querer trilhar o caminho das pedras...?...! Até quando vamos dar ração para as pragas? Até quando vamos cevar o vírus do HIV? Quando o homem tecnológico acordará para o fato de que é a natureza quem detém soberania? As técnicas de manipulação da natureza não são hábeis a forjar a natureza ao seu bel prazer. A natureza, sendo soberana, é sempre causa e não efeito. O atuar do homem no meio ambiente não se deve dar de forma autista, mas sempre em diálogo com a natureza.

9) Crítica à pretensão pragmática veiculada pelo movimento da “Querela dos Universais”

9.1. O movimento da “Querela dos Universais” é um problematizar o universo do conceito, sem que daí possa realmente ter a pretensão da pôr o universo em questão. O esplendor do “direito natural” não habita no conceito, mas na expressão do ser. A expressão do ser logra alcançar a universalidade.

O que dizer das pretensas fórmulas vazias objeto da crítica mordaz dos protagonistas da Querela dos Universais. Em definitivo, a Lebre levantada na querela dos universais só acarretou outros tantos descaminhos. Ora, ainda que a crítica pareça procedente, isto é, a indagação do conteúdo das coisas, tal o perquirir-se sobre o conteúdo de Deus, do Universo, da Alma, da Justiça, a averiguar sobre qual a substância respectiva de tais entes, de se reconhecer que, antes da tentativa de resposta, a pergunta é irrefletida. Explico. A pergunta ou especulação sobre tais entes ideais não tem como ser cognitiva. Não se pode reduzir tais entes a objetos, tal como se fossem demandados pelo conhecimento. Quanto muito, o conhecimento só pode, no máximo, se postar como curiosidade, desejo de bem, deslumbramento, fascinação, mas, em hipótese alguma, ter posse de pergunta alguma. Ter posse das perguntas significa já ter a presunção da resposta, ou, ao menos, a exigência. Os protagonistas da Querela dos Universais pecaram ao formular a pergunta, bem como, ao obter uma resposta a contrario sensu. Dizer da não-universalidade das coisas, nada mais significa que uma universalidade às avessas. No caso, o objeto da crítica, a suposta não universalidade dos ditos bens ideais (Deus, alma, ...) funciona duplamente, na base de um motor da economia psíquica dos querelantes. É um reforço de ego, uma vez que chegar a conclusões – isto é, da não-universalidade das coisas – significa um poder, vantagem, um excedente. Por outro lado, é uma violência contra si mesmo, pois ordenar a pergunta, malgrado a aparência de poder que envolva (o sujeito da pergunta é o sujeito-autoridade, que nomeia o mundo, que o constrói – sujeito-ordenador), é uma restrição ao eu, seja quanto ao seu universo lúdico (o conceito põe a imaginação a ferros), seja em virtude da pergunta ser uma imposição ao eu-afetivo (isto é, que não se admite como desejo; este desejo tem que estar travestido de perguntas para se legitimar). Quando disse alhures que o conhecimento só podia quanto muito se postar como curiosidade, desejo,..., quis falar de que o conhecimento só tem como ser uma percepção do eu, mas em hipótese alguma projetar objetos para fora de si. O conhecimento como percepção do eu não tem como firmar definitividade de sua condição, uma vez que o conhecido e o conhecedor existem num mesmo sujeito. Não há como fazer polarização do conhecimento, dado sua natureza eminentemente dinâmica. O conhecimento é um inteirar do indivíduo como totalidade, isto é, que vive as experiências com autonomia, diga-se, não propriamente fenomenológica (a perspectiva fenomenológica, nos moldes tradicionais, não deixa de ser uma unidade aprisionante), mas afetiva.
O homem é um ser fenomênico, mas daí não se vá concluir que é uma unidade fenomenológica, tal como de conceito ou categoria se tratasse. É fenomênico por ser natureza viva, real, dotada de vontade. Natureza onde os aspectos empíricos e idealísticos estão imbricados na singularidade expressional do indivíduo. Ainda que se queira definir a dimensão fenomenológica do indivíduo, tal tentativa de definição possui estreitos horizontes, pois o que importa é a manifestação do indivíduo como singularidade, o seu processo, a sua autonomia vivencial, o poder desfrutar a vida como experiência real. A reflexão é sempre um dado do passado. O presente é dádiva. O futuro é uma conquista.

A razão nunca pode ser uma constatação ou polarização. Não há razão possível sem o exprimir afetivo do indivíduo. O exprimir afetivo do indivíduo é uma instância dinâmica, um eterno sintomatizar/dramatizar. A história da verdade é por demais cruel. Não há inserção social possível sem que o seja pela via do drama, do afetivo. Que se chore, que se brinque, que se iluda, que se desaponte... Qualquer desses caminhos são válidos. O interdito é a própria razão como fim em si. Por muito se criticou a fé católica no sentido de um apanágio da ignorância. A crítica é, em parte, procedente, na medida em que põe a descoberto o escopo da Instituição-Igreja de interditar o acesso ao Deus todo poderoso (a fé seria como uma consciência lobotomizada). A crítica põe a descoberto o preconceito da Instituição-Igreja de estigmatizar com a pecha da ignorância. Como se quisesse dizer que a fé é a última racio do miserável. A igreja, fazendo do Deus o Deus-Instituição, põe-no grande, misterioso, inacessível. Uma vez superada a crítica, a idéia de fé é muito mais razoável do que a de conhecimento no sentido de posse. A fé entendida não como um conceito-ignorância, mas como pulsão/desejo, como manifestação do desejo a singrar o inescrutável, tal concepção de fé torna-se bastante atraente. É uma perspectiva libertadora, de expressão do ser, de auto-aceitação. Não é mais o apanágio da ignorância, ou o castigo/preço da insignificância espiritual, mas simplesmente o ter o direito de caminhar seja qual for a matalotagem – o caminhante, qualquer que seja sua condição, raça, riqueza, grau de instrução, procedência, caminha sempre com o Deus presente. A fé não é a venda dos olhos, mas simplesmente a inocência de ser sem mais..., a esperança na base de nossas atitudes. Isto é, não a esperança como conceito que temos que guardar a sete chaves, tal uma tábua de salvação, mas a esperança dos nossos próprios sentimentos, da boa querença, do desejar continuar caminhando, por maiores as vicissitudes.
Recaptulando, o movimento da querela dos Universais foi encampado posteriormente, em linha de sucessão, por empiristas, utilitaristas e pragmatistas. Como cuidei de explicar, a crítica às substâncias universais é mal dirigida, uma vez que tem a pretensão de perquirir sobre a possibilidade ou não dos universais, tal como fosse uma questão na base da cognição. Tal como fosse uma operação puramente intelectual, balizada pela demonstração e análise de variáveis. A critica aos universais torna-se inócua, na medida em que navega em mares de não se navegar. Vejamos: dizer que não se pode falar em universo (no sentido de cosmos) na medida em que não se tem idéia de sua dimensão (tanto no sentido da maior dimensão possível, como da menor dimensão possível; ou, mesmo, do dinamismo deste universo – isto é, o universo em movimento, em complexidade e entropia; o universo e o captar da totalidade de suas causas em co-interação), conquanto não se possa refutar in totum a crítica (há uma evidência da incapacidade racional de representar o todo), de tal crítica não se pode tirar tantos dividendos quanto se pretende. Ora, dizer ser impossível representar o todo não é dizer do impossível em si. Dizer ser impossível representar o todo é quanto muito dizer de uma certa possibilidade. Entre o ser e o não-ser, existe o possível. Somente uma rígida apreensão conceitual (isto é, que tem a presunção de que a representação e o objeto representado sejam idênticos) pode fixar os marcos do ser e o “não-ser” de molde a excluírem-se mutuamente. Somente tal pretensão conceitual açambarcadora da realidade convive com o princípio do terceiro excluído em sua magnitude.

A dita questão, acima exposta, da incompletude do universo funciona para o raciocínio como um trunfo. Isto é, mais potencializa o agente do raciocínio, tal a se achar todo poderoso. E isto é um paradoxo. Ora, como ocorre concluirmos de uma certa incapacidade e daí tirarmos dividendos com vistas a uma generalização/poder? Ao que tudo indica, o ser subjetivo não suporta a incompletude. Por mais que em sã consciência a conclua, tal só é um pano de fundo, pois o que vale para o indivíduo é o credo, é a convicção, ou até mais que isso. Além da convicção, existe a necessidade do ser de ter significado para si. Tal necessidade não pode ser reduzida, como muitos pensam, a uma simples questão fenomenológica (isto é, de unidade do ser). O ter significado para si não é apenas uma questão de unidade, fenomenologia, conceito, ou, mesmo, de verdade. Mais que isso, o ter significado para si envolve a questão do poder/existência. Tal poder não é objeto deste “ter significado para si”, mas é um ingrediente ínsito no processo. Ainda que o “poder” não seja explicitado pelo agente que busca tal significado, o poder é inerente à busca. O poder está geneticamente presente no volitivo do sujeito. Diga-se, sujeito não reduzível a intelecto, mas sujeito que é natureza. O germe (congênito, atuante) do poder se encontra no indivíduo-natureza, mediante seu sintomatizar/dramatizar. As situações do acesso à verdade e ao saber são sempre dramatizadas, implicadas na condição do eu-afetivo. Nunca funcionam na base do certo/errado, pois a referência do sujeito perante o mundo é o seu eu como micro-cosmos dramático/afetivo. Seria redundante dizer tratar-se de um eu-subjetivo, uma vez que isto nada acrescenta. Até porque, o que importa não é dar um conceito para o eu-subjetivo, mas simplesmente compreender a dimensão em que opera. Tem somente o intuito de demonstrar a dimensão prática em que se insere o indivíduo. Isto é, que o problema da verdade para o indivíduo nunca é de ordem teórica ou conceitual. Por mais que se queira implicar a questão do homem na do poder, tal poder no homem é insuscetível de ser bitolado num conceito, pois envolve a própria existência personalíssima e irrepetível do homem. Uma vez fixada tal dimensão, cada qual na sua existência tomará os frutos do seu caminhar. A cidadania é uma dimensão íntima e personalíssima de cada indivíduo, no seu expressar-se. Por mais que se queira afirmar que o homem, sendo natureza, é poder (e isto é verdade verdadeira – o homem participa da criação), esbarro na impossibilidade de exprimir tal poder na base de um conceito. Se isto, num primeiro lançar de olhos, sugere uma limitação, é só aparentemente, vez que descortina para a dimensão prática do poder, isto é, umbilicalmente ligado ao expressar afetivo do indivíduo. O poder não precisa ser colocado a descoberto ou promiscuisado, por razões mais que obvias.
O mesmo aparente paradoxo encontramos na impossibilidade de estabelecer a extensão da alma ou mesmo seu conceito, de um lado, e, de outro, a condição existencial da alma . Malgrado a impossibilidade de definição conceitual, não se pode querer reduzir esta alma a petição de princípio, prurido de ser ou bagatela. Esta impossibilidade do ser que cogita de se auto-definir o que significa? Talvez tal pergunta não comporte uma resposta puramente lógico-racional. Melhor pensá-la metaforicamente mediante o apelo à cobra que come seu próprio rabo.
Voltando às palavras, a pretensão dos querelantes dos universais de sepultar universalidades/idealidades não alcança termo. Por mais que estejamos perplexos numa sociedade rodeada de misérias materiais e morais em meio a tantas idealidades, tais o apelo retórico de palavras como a justiça, direito, dignidade, paz, harmonia social, acho premeditado ou açodado daí sepultar a esperança, daí soterrar a fé, daí desacreditar do amor, daí colocar tudo isto (justiça, direito, paz,...) incredulamente na vala do sepulcro. Dizendo de outra maneira, coloco sob suspeita a pretensão de esvaziar tais palavras (justiça, paz, direito, harmonia,...) ao zero absoluto. Como tentei demonstrar, ao menos sob o ponto de vista teórico, tal pretensão é impossível. O concerto empirista de trazer a experiência humana para a ordem da imanência só pode ser entendido como mais uma pretensão de idealidade, dentre tantas outras. A dizer, não é qualitativamente diverso do ideal platônico de supremacia das idéias. A idéia de imanência, experiência, acesso do homem ao mundo através das sensações e das pulsões de prazer e dor, não é menos universalizante e totalizante do que os paradigmas ou idealidades platônicas. O ceticismo só se firmou como uma crença subjetiva respeitante a impossibilidade de universalização no plano da substância, a custa de firmar-se como uma universalidade no plano lógico-formal. O ideal cético nada tem de descrença ou anti-universalidade. Firmou-se a idéia de que os processos eram passíveis de generalização sem, no entanto, nunca lograr universalização. Tal perspectiva, vista de longe, é tão universalizante quanto as demais. É universalizante no sentido de julgar o mundo com ares de definitividade.

Posso falar que o discurso do direito se vale a todo momento de fórmulas abstratas (vg, dignidade da pessoa humana; cidadania; bem comum; eficácia; justiça). O vulto cético e empirista não conseguiu conter isto. A crítica empirista ao inatismo; a querela dos Universais, quanto muito, conseguiram pôr sob suspeita as substâncias universais (tal, Deus , Universo, Alma), mas não há como ter uma evidência empírica especulativa (descrição cognitiva) que prove o contrário. Se quiséssemos submeter tudo ao crivo da demonstração e da manipulação de variáveis tangíveis e daí querer derivar um logos ou uma polis, não haveria como habitar tal cidade. Pois na prisão do mundo da ordem da demonstração e das variáveis tangíveis não há lugar para o valor, o qual não pode ser capturado fisicamente. Pode até operar no plano físico, mas desde que seja na natureza das pessoas, em sua dimensão desejante . Os valores nunca podem ser capturados como conceitos-realidade, que se desprendem dos indivíduos (dicotomia sujeito-objeto). Os valores só têm razão de ser nos indivíduos e desde que efetivamente e enquanto queridos.

9.2. A perspectiva da imanência tem como pressuposto a idéia da natureza como determinismo. A idéia parece muito atraente, mas em tal habitat de determinismo não habita o homem. O homem é natureza e não é determinismo. Tem tino e vocação próprios, tem liberdade de ser. O domínio da natureza é um paradigma equivocado, ao contrário do harmonizar-se à natureza. Pensava-se que a natureza, sendo determinismo, poderia ser compreendida e controlada. A devastação da natureza pelo homem é um exemplo (ainda que cruel, ainda que pelo caminho das pedras) de que a natureza não pode ser controlada. O homem é natureza em movimento, é natureza viva. O homem-devastador é natureza doente, que não precisa propriamente de controle (ou, mesmo, é vã a tentativa de controlá-lo), mas de cura. Ainda que se tenha em mente que a natureza não pode ser controlada, os desregramentos da natureza (tal o sintoma da doença) são um clamor à harmonização da natureza (a doença aponta para a cura). Da natureza curada, colhe-se outros tantos frutos de bem aventurança, tal a água que se bebe no regato, ou o sorriso recebido.

Advogar a idéia de que a relação do homem com a natureza se dá sob o pálio da imanência e da mensuração não aspira a explicar toda gama de relações do homem com a natureza. Importa dizer, a pretensão de substituição da transcendência pela imanência não logra alcançar termo. Pensar numa leitura da relação do homem com a natureza mediante a idéia de nomeação de relações comensuráveis torna-se assaz complicado quando se põe em foco a própria natureza do homem... Quando a questão não é do conhecimento do mundo circundante, mas do homem para consigo mesmo... Dizer da quantidade de felicidade que se sente, ou estabelecer um nexo causal entre um dia ensolarado ou nublado e o bom ou mau humor de alguém constituem tarefas inglórias. Isto porque a felicidade, o bom ou mau humor são instâncias imbricadas na vida de cada qual, cuja relação de acessoriedade para com o homem não pode ser inferida. Constituem tais estados de espírito de condições personalíssimas de cada qual. Trata-se de estados de espírito cujo conceito respectivo não tem o condão de reduzir tais estados de espírito a objeto. Por exemplo, conceituar a tristeza de um paciente não faz com que tal paciente se aposse de tal tristeza, tal como um objeto que possa manipular. Continua vivendo a tristeza como sintoma, como complexo motivacional e afetivo. A tristeza pode, sim, transformar-se em alegria, mas não apenas especulativamente (tal com se quisesse trocar a tristeza pela alegria, como se troca de calça), mas vivendo o sintoma em sua plenitude.
Justamente os estados afetivos, as condições do espírito (ódio, amor, alegria, depressão, apatia,...) dizem respeito às motivações de cada qual, as quais norteiam ou, ao menos, influenciam sobremaneira seus projetos e realizações. Esta é a matéria prima do direito: o comportamento humano. O empirismo/utilitarismo (hodiernamente, o behaviorismo, pragmatismo) tentou conjecturar, no domínio prático, o mesmo discurso do âmbito da especulação teórica, a nosso aviso, sem sucesso. Considerar não haver princípios éticos absolutos, mas apenas estados motivacionais (procura do prazer e fuga da dor), é uma tentativa reducionista de entabular a epopéia humana.

9.3. Considerações sobre o Princípio Regulador. Não é a idéia que dá fundamento de validade à realidade. Preeminência do “ser” sobre o “dever-ser”. A realidade empírica do amor é de direito (a justiça efetiva e não como dever-ser – o dever-ser sempre supõe a injusta para se firmar como tal, em meio à polarização) e de fato. O ideal na natureza, a natureza boa, dotada de vontade.

Retomemos o curso do raciocínio. Dizíamos que o empirismo não logrou refutar as substâncias universais, mormente no domínio da prática, onde entram em cena bens ideais, tais a justiça, a realização, a felicidade, intangíveis a uma apreensão empírica, nos moldes tradicionais da relação sujeito-objeto . A esta altura, cabe trazer à baila consideração sobre a solução por muitos alvitrada da utilização do Princípio Regulador. Conforme o magistério platônico, ainda que não haja no mundo em que vivemos exemplo de sociedade perfeita, o paradigma ideal da república serve aos propósitos daqueles que buscam tal sociedade perfeita. Kant erigiu o imperativo categórico insculpido sobre o paradigma formal de um tal comportamento querido por todos. Santo Agostinho, reelaborando Platão, teceu considerações sobre a Cidade de Deus, esta sim encarnando a idéia de justiça.
A idéia de um Princípio Regulador causa bastante perplexidade. Tal perplexidade poderia ser formulada nos seguintes termos: como vislumbrarmos um bem efetivo em meio a nossa condição falível? Como poderemos crer num paradigma de perfeição se os exemplos que deparamos na realidade são de situações onde se revela a imperfeição humana?
À guisa de complicar ainda mais a questão, indagaríamos a Platão: - como é possível conseguir uma definição teórica (por exemplo, justiça, república) daquilo que ainda não se logrou alcançar na prática? Será que a pretensão teórica de dizer sobre bens ideais tais como a justiça, a res pública, o bem comum não são meras ilusões de poder, meros autoritarismos travestidos de imparcialidade e desinteresse?
Continuemos: qual a diferença entre escutar uma boa música e tentar conceituar com palavras esta mesma música ouvida? Diríamos que na primeira situação (“ouvir uma boa música”) tal tem uma dimensão prática, enquanto a segunda “teorizar sobre música” significa apenas uma tentativa de conceituar algo que é insuscetível de ser conceituado in totum sob pena de se desfigurar . Melhor seria que déssemos testemunho do estado de espírito que a música incitou em nós. Em tal situação, haveria duas realidades de índole prática: a música e a manifestação de nosso eu afetivo.
Justiça feita ao movimento da Querela dos Universais ao pôr em dúvida as substâncias universais. Não propriamente as substâncias universais, mas a pretensão de seu conceito mediante a utilização de palavras. Além de tal prurido, mais nada. O movimento da Querela dos Universais nada refutou. Simplesmente por ser impossível desdizer da universalidade do Cosmos ou de Deus apontando para a vacuidade das palavras que os compõem. Deus, por exemplo, pode ser dito numa única palavra e não obstante ser socialmente aceito como ente personificado. Se quiséssemos colocar na fogueira da inquisição palavras vagas teríamos que demonstrar existirem palavras cheias. Aquilo que se reputa cheio é apenas aquilo que se convencionou como sendo extenso, tal um padrão de medida (metro, quilômetro), nada mais. Dizer que algo é cheio ou extenso, depende do referencial que se convencionou. Note-se que quando consideramos bens intangíveis à matéria (espirituais), tais a felicidade, a alegria, a questão torna-se assaz complexa. Como tê-los a conta de res extensa, senão desfrutando de tal estado?
Como podemos falar em realização sem estarmos no presente realizado, como podemos falar de algo que não desfrutamos? Será que, tal como concebido por Platão, teríamos reminiscência de uma realização já vivida numa dimensão espiritual? Se já tivéssemos experimentado a realização (diga-se, na prática), porque haveríamos de ser arremetidos neste mundo de desilusão? Seria uma espécie de expulsão do Paraíso, subsistindo a reminiscência do estado de plenitude edênico.

9.4. O impacto irrefletido do mal e sua generalização indevida. Somente o medo pode justificar tal ímpeto. O julgamento é uma ferramenta inapropriada para diagnosticar o mal.

Retomando a polêmica da “Querela dos Universais”, atente-se para o fato de que não só os bens ideais que possuem uma conotação de positividade, tais, por ex, Justiça, Deus, Bem Comum, podem ser encarados como substâncias universais, mas também aqueles que carregam uma conotação de negatividade, tais a desordem, a miséria, o Diabo. Encará-los como substâncias universais é tão problemático quanto no primeiro caso. Se é problemático encarar como substâncias universais os bens ideais, com sentido de positividade, tais, por ex, a virtude, a justiça, pela aplicação de um certo paralelismo, também igualmente o seria atribuir universalidade àqueles com valoração negativa, tais, por ex, a desordem, a miséria. Podemos até apontar para as desditas (miséria humana), mas, é assaz delicado generalizá-las, fixar-lhes um conceito universal e, muito menos, tirar dividendo de tal miséria a fim dar ensejo a qualquer discurso de Ordem ou, mesmo, a um discurso de maior desordem ainda (a raciocínio é o seguinte: se há violência, o destino é a aniquilação completa de todos – mais ou menos tal como empreendeu Hobbes: a luta de todos contra todos).
A polêmica lançada no movimento “Querela dos Universais” não se pode taxar de inútil, mas não menos dolorosa, pois que nos relega a um certo estranhamento de nós mesmos. Como podemos pensar, emitir conceitos e, ao mesmo tempo, descrer de toda e qualquer substância de verdade? Como podemos acreditar na justiça em meio ao bombardeio do noticiário de acontecimentos violentos? Só a humanidade em nós acontecendo pode desfazer os desentendimentos, as dissensões doutrinárias, o jogo de palavras, as sombras que existem nos discursos. É razoável a afirmativa de que nenhum conceito pode pretender a universalidade. Mas rogamos para que a coisa fale pelo seu conceito e possa estar em paz aonde estiver, mesmo na universalidade. Rogamos para que Deus tenha seu merecido descanso, após a labuta. Que a humanidade viva e respire em nós com todo seu esplendor, expulsando toda sombra de inverdade. Que a palavra tenha espírito! Seja sempre verbo em ação. Que as minhas afirmações sejam expressão do meu querer. Que meu querer seja expressão do meu poder.


10) O engodo do modelo liberal hedonista. O controle da natureza não é meio de edificação social.

10.1. A doutrina hedonista, ao contrário do semblante de prazer que suscita, significa imposição de controle e pretensão de disciplina. Diga-se, pretensão, pois que não atinge o fim colimado referente à harmonização da natureza. A harmonização da natureza se dá, não propriamente do duelo da dor com o prazer, mas mediante o prazer ratificado pela via do afeto. Em tal processo, a dor é importante, mas não aquela dor instituída, mas a natural/fatídica, vital para o processo de realização.

A doutrina empirista tentou trazer o modelo natural do determinismo para o campo do comportamento humano, de molde a impor-lhe uma disciplina. Trata-se do conhecido esquema do estímulo-resposta. Se ajo obtendo prazer além do permitido, o Estado me aplica uma “dor” a fim de contra-balancear a transgressão. O utilitarismo tentou entabular a questão do comportamento humano sob um ponto de vista imanente e determinista, analogamente ao modelo das ciências naturais (dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo). Tentou dar efetividade prática a tal disciplina (manipulação da dor e prazer), ante o argumento de que o homem não tem como se opor a evidência de tais estados motivacionais ou, mesmo, não é indiferente a tais estímulos (dor e prazer) .
Há várias críticas a serem dirigida à pretensão empirista de entabular o domínio prático humano sob o sabor da manipulação das variáveis prazer e dor, ou mesmo encampados no jargão utilitarista da maior felicidade possível para todos, ou, ainda, a conhecida máxima liberal do hedonismo, da busca natural do prazer (implicado no bem cultural “lucro”), do laissez faire.

Vamos às críticas: 1) transformar a dor e o prazer em res extensa, tal como se pudessem ser medidos e manipulados, tal como se acessórios fossem, se objetos fossem, significa mercadejar com a condição humana. Requisito sine qua non da cidadania é que cada um possa exprimir-se como individualidade, como valor-em-si, por mais degradante (vg, homicida) que seja sua condição episódica. Não há como transformar os estados de espírito em objetos mensuráveis e manipuláveis, sob pena de alienarmos as pessoas do bem mais precioso que possuem. A motivação, o sintoma, o estado motivacional não pode ser objeto de apropriação alheia, de julgamento, de mensuração, de manipulação. Quanto muito pode se tentar compreendê-los, mas em hipótese alguma, extirpá-los, mensurá-los, manipulá-los (induzi-los: modelo estímulo-resposta da doutrina behaviorista. Redução dos indivíduos a objetos manipuláveis). A condição de cada indivíduo é personalíssima. 2) o prazer não é necessariamente felicidade e a dor não é necessariamente tristeza. A oposição prazer-dor não logra atingir um resultado útil, uma vez que não há dividendo algum a se ganhar. Isto é, o prazer (no sentido de realização) não é a antítese da dor (a dor também pode contribuir para a realização). O discurso de oposição prazer-dor tem a mesma índole maniqueísta do discurso do bem versus mal. Tal dicotomia prazer-dor implica um mundo cindido; 3) Dizer que o prazer influencia significa fazer tabula rasa da auto-estima das pessoas, uma vez que são os únicos senhores da ponderação sobre se o prazer lhes é ou não conveniente e em tais e quais circunstâncias. E, ainda que considerem que algo possa lhes ser prazeroso (por exemplo, uma ida ao parque de diversões; relacionar-se sexualmente com pessoas bem-apessoadas), podem, ao seu talante, mudar de idéia, conforme lhes diga a experiência; 4) a dor não pode ser relegada a condição de inimiga da qual queremos nos livrar, seja porque a dor não é sujeito nem objeto (está umbilicalmente ligada ao nosso sintoma), seja porque a dor tem uma função dialética de nosso diálogo conosco. Que seria do diagnóstico da doença se não houvesse a dor da ferida? Ou, mesmo, que seria da saúde se não fosse a doença? (a doença aponta para alguma condição inapropriada, seja do meio ambiente (por ex, vírus, poluição, degradação ambiental), seja do sujeito (por ex, doenças psicossomáticas; má formação genética herdada de vícios de gerações anteriores, por ex, alcoolismo); 5 ) A disciplina da manipulação das variáveis prazer e dor não pode ser realizada de forma a considerar cada indivíduo como realidade estanque. Não há como aplicar a dor correspondente ao indivíduo que excede a cota de prazer socialmente permitido, uma vez que muitos fatores sociais (educação, condição econômica, referência familiar, trabalho) interferem na motivação do indivíduo. A cultura de massa, a propaganda (sensualismo hedonista), os meios de comunicação, os movimentos grupais (vg, torcida de futebol) influenciam os indivíduos. A propaganda de massa tenta vender a idéia de prazer e sucesso não como “solução”, mas como prótese para mascarar o fracasso social a olhos vistos (miséria moral e material com que diuturnamente deparamos). Para se responsabilizar o indivíduo necessário que se tenha certeza que a gênese do seu prazer tem sua fonte no próprio indivíduo. Para se afirmar que alguém tem responsabilidade, liberdade de escolha, livre arbítrio, necessário que esse alguém possa decidir livremente sobre seu destino, isto é, sem influencias externas. Como querer aplicar a disciplina prazer-dor nos indivíduos, considerados individualmente, se a questão do prazer e da dor são questões, antes de tudo, de magnitude social e grupal?; 6) A ótica da manipulação prazer-dor possui índole repressiva, isto é, apenas remediadora das transgressões já ocorridas, mas tem pouca utilidade quando o que se quer é prevenir o mal e, principalmente, promover o bem. Como dissemos, considerar o prazer como uma busca natural e individual de cada um significa desconsiderar a magnitude social da questão. A realização é social, uma vez que cada qual é co-participe da felicidade ou tristeza do outro. O prazer reduzido a uma busca individual é um amesquinhamento do bem comum. Principalmente, é um amesquinhamento da condição humana, uma vez que a consideração sobre o outro é essencial para cada qual de nós, dada nossa índole afetiva gregária; 7) O prazer e dor são meros estados fisiológicos e orgânicos, os quais nada dizem sobre a condição afetiva de alguém. O excesso de prazer, tal como soe acontecer com o sexólatra, não significa necessariamente realização e felicidade. O prazer não pode ser considerado numa condição meramente animal, mas deve ser equacionado na nossa dimensão espiritual. O animal não se rege pelo princípio do maior prazer, mas apenas daquele instintivo e necessário. As maiores aberrações de prazer e dor (sadismo, masoquismo, perversão) são vícios sociais, exclusivos da raça humana. Para aqueles que experimentam excesso de prazer, não há como fazer disso uma apreensão linear, de molde a considerar que o prazer que tiveram foi maior do que o de outros. Malgrado a maior excitação orgânica, via de regra, o prazer pervertido é um prazer qualitativamente menor, uma vez que não logra encontrar a realização no plano afetivo. O prazer desregrado, fatalmente, leva ao sofrimento, o que, de per si, é uma sanção natural. Sanção, esta, não mais na base de um voluntarismo (“ser ou não ser”; deliberação; instituição), mas de ordem natural (o plantio é eventual, mas a colheita é certa – pode se arbitrar, deliberar sobre o agir, mas não há como fazê-lo no âmbito do reagir).

10.2. A sanção é natural e tem como fonte de validade o amor, que possui dimensão empírica efetiva. A sanção instituída é uma abstração sem vida. O dever-ser é uma petição de princípio, atinente à ilusão de implicar o âmbito prático/moral numa bitola cognitiva e de transformar o mundo na base de uma imposição/julgamento.

A sanção natural é a antítese da sanção instituída. A verdadeira sanção é aquela natural, da qual se infere o caráter moral porque opera inexoravelmente na natureza (é a moral da morada e não a moral imposta, instituída). Trata-se de sanção, não no sentido de violência voluntária praticada pelo Estado, mas aquilo que colhemos dos nossos investimentos. A perspectiva da sanção de ordem moral supera o dualismo prazer/dor preconizado pelo utilitarismo. O estado secularizado preconizado pelo utilitarismo manipula as variáveis dor e prazer, tal como se pudessem funcionar separadamente, assim como o sopesamento respectivo fosse passível de deliberação ou cálculo. A perspectiva da sanção de ordem moral aponta para resgatarmos a dimensão de Ordem no seio da revelação. Não como secularização ou reflexão, mas como desfrute natural – revelação – acesso ao telúrico . A sanção, ao operar no íntimo de indivíduo e de forma personalística, opera no plano natural. Tal sanção não é propriamente um julgamento sobre o indivíduo, mas acessível ao indivíduo através de sua percepção implicada em seu sintoma. Não é necessário que exista um sujeito-autoridade (razão dominante, super-ego, discurso do poder) para estabelecer a sanção, uma vez que tal sanção é patrimônio da própria humanidade que habita no íntimo de cada qual, humanidade, esta, centelha divina, chama que não se apaga. A questão colocada sobre a Teodicéia (“como Deus, sendo sumamente bom, permite a existência do mal?”) é um auto-engano, a uma pelo que se disse acima quanto ao engodo de projetarmos nossos próprias questões como exigências de solução (sujeito impositor da realidade ), a duas porque tal questão não pode ser respondida mediante a emissão de um juízo sobre a realidade, pois todo juízo é parcial (toda abstração é manca – abstrair é ato de separar, não de unir). A resposta da Teodicéia só pode ser alcançada pelo ser desejante, em interação dinâmica com sua experiência. Só podemos solucionar a questão da Teodicéia em nossa dimensão (percepção) natural, desfrutando efetivamente da bondade de Deus.

10.3. O Sistema baseado na autoridade como ponto de amarração do Poder. A idéia de que o “melhor” fala pelos “piores”. A estratificação social chancelada pela teoria, como signo de distinção entre as pessoas. O culto ao ideal teórico, como se tivesse o dom de nos livrar dos males do mundo. O Poder instituído necessita do fetiche da autoridade porque não logra ser simplesmente “poder”.

A questão do Princípio Regulador é deveras importante ao Direito, pois tem a ver com a questão de como a ordem consegue se impor em meio às vicissitudes humanas. Será que os idealizadores dos sistemas racionais de ordenação da realidade (por exemplo, Tomas Hobbes, Hans Kelsen) funcionam como ponto de amarração para o credo na Ordem (isto é, independente da efetiva realização da Ordem)? Tal sistema, baseado na autoridade encarnada na virtude ou dom intelectual de alguém, logra alcançar êxito? Se, uma vez concebido, um sistema de Ordenamento da realidade não é observado por todos, qual é o galho?: o sistema que não funciona ou os indivíduos que não cooperam? Outrora, foram os Deuses, os Santos que encarnaram a figura da autoridade. O preço de fundamentar a Ordem na opinião dos doutos é caro, uma vez que os doutos são tão humanos e falíveis quanto qualquer um de nós. E mais que isso, via de regra, os doutos representam apenas uma pequena parcela (intelectual, acadêmica) do querer social, querer, este, expresso em seus vários quadrantes. A Universidade/Academia não pode ter a pretensão de ocupar o locus do saber. Para que um sistema se fundamente na Autoridade, necessário que tal autoridade aconteça no domínio prático e teórico, proeza de uma quintessência divina.

Será que a Ordem Positivada detém efetividade prática? Pode se impor como uma dogmática, não sujeita a contestações que lhe destruam o legado?

Dir-se-á que o Ordenamento Jurídico antolha-se como efetividade prática, pois, do contrário, não haveria Ordenamento possível. Mas, somente um aspecto formal pode fundamentar a efetividade do Ordenamento? Somente uma espécie de barricada de defesa contra nosso próprio desatino? Seria uma espécie de medida de segurança contra nós mesmos. A dizer: sem a Ordem haveria o caos, logo qualquer Ordem, ainda que injusta, é melhor que o caos. Mas um dos descaminhos que a escolha do “ajuizar” como paradigma nos leva.
Como podemos conceber a Ordem se tal não pode ser feito cognitivamente, uma vez que a efetividade prática não é função apenas da inteligência ou da capacidade de síntese teórica? Não há como fundamentar a Ordem sob o manto da autoridade, a menos que tal autoridade não seja aquela que engendra a Ordem (sistema hierárquico de estratificação do poder e de nomeação de lugares-comuns), mas simplesmente que encarna a Ordem mediante seu simples agir. Como queremos salientar, dizer a Deus, - não mate! (isto é, a lei estereotipada em contingências) é uma redundância, pois o “não matar” decorre de sua simples bondade. Deus não necessita se dar tal mandamento, pois que já decorre de sua bondade. O dever-ser, já sendo um ente encarnado na bondade de Deus, não se porta como mandamento, mas, sim, como singelo desfrute. O Deus liberta-se da lei, ao vivê-la em sua plenitude. Ante tais considerações, a Ordem seria um atributo divino. Nunca na dimensão de uma Ordenação ou imposição. A Ordem numa dimensão divina não é propriamente “ordem”, mas graça, bonança, desfrute. Vontade que se realiza (meio-fim).



11) O pensamento pragmático de Marx não logra alcançar o patamar prático.

11.1. A proposta pragmática marxista padece do mesmo mal que quer extirpar do idealismo: querer que uma versão abstrata faça as vezes do âmbito prático. O homem-interessado, concebido pelo marxismo, não passa de um protótipo sem vida.

A idéia marxista de que a ideologia está a serviço da classe dominante precisa ser revista, pois uma análise mais acurada fatalmente encontra no jargão marxista de que a verdade é produzida pelo interesse pragmático do homem (idéia de que o homem é um ser adaptativo, o qual constrói sua verdade na base de seus interesses) uma generalização indevida. O marxismo se opôs ao idealismo, no afã de desmistificar a busca da verdade como fim em si, mas pasteurizou uma relação não menos idealizada entre homem e interesse. Afirmar que a busca da verdade pelo homem está em função de seu interesse significa uma personificação indevida do homem, pois se trata de um reducionismo afirmar que o homem está em função do interesse. Reducionismo porque não é só a relação entre o homem e o meio circundante, mediada pelo interesse, que conta. A relação do homem consigo mesmo, através da comunicação com seus sintomas e emoções, é uma realidade tão dinâmica como a primeira, e em certo sentido mais complexa, uma vez que não é possível de ser objetificada, tal como acontece com a apropriação de um bem da natureza (por ex, uma pedra) pelo homem. O sintoma é um dinâmico inteirar-se do homem consigo mesmo, isto é, o sintoma evolui, mas nunca pode ficar polarizado no homem, tal como se de um objeto se tratasse. Como acima afirmamos, assim como é uma tentativa reducionista definir o homem só na base do interesse, é igualmente uma generalização indevida, por ser uma tentativa de dizer que é tudo, algo que não pode alçar tal pretensão açambarcadora do todo (hipostasiamento). Se o interesse pudesse confundir-se com o objeto do desejo, haveria um holocausto da condição humana. O interesse sempre precisa de um outro. O homem somente pode realizar-se como pessoa, mediante sua vivência afetiva. O interesse pode dar ao homem o ensejo de viver experiências afetivas, mas em hipótese alguma pode o interesse se legitimar solitariamente.
O marxismo tentou alçar um vôo pragmático, isto é, retirando o homem de uma tal idealização platônica, mas, a nosso ver, sem sucesso. A idéia marxista de que o homem é em função de seu interesse, a par de querer apreender os atributos do homem, é uma forma de julgamento. Como todo julgamento aprisiona, rotula, sem que, contudo, se intere do homem real. Qual o interesse do homem Marx em inferir sobre o tal homem interessado? A fórmula marxista do homem-interesse é um ideal desinteressado ou uma pura verdade da condição humana? Marx, em tal ponto, não se diferencia dos seus antecessores, apologistas do iluminismo (ideologia como ciência da verdade) e do idealismo (a legitimação da verdade em si no homem), pois incide no mesmo equívoco de buscar o acesso ao ser através do julgamento do ser. O ser tem a liberdade de ser, mas em hipótese alguma apossar-se de si, tal como se pudesse apreender de si uma essência/objeto. Ora, se essência é, nunca pode se tornar objeto, sob pena de se estagnar tal um objeto de consumo. O equívoco de Marx, assim como de muitos outros, é tentar apreender a condição humana através de um julgamento, pois que humanamente só é possível a Marx ser a si mesmo e imputar seus interesses na base de sua experiência, mas nunca generalizá-los tal como de um pragmático interesse de todos se tratasse.

11.2. Crítica à ideologia como instância de apropriação de sentido e dominação, em proveito do homem-interesse (objeto realmente querido - verdade verdadeira) travestido na figura do ideólogo (verdade declarada, simulada – verdade não verdadeira). Ao identificar o descompasso entre verdade real e verdade declarada, não logrou Marx pôr a descoberto o estratagema/artifício ideológico. Não é propriamente a ideologia que amofina, mas a insalubridade em si das relações. O Poder, ainda que se valha da mentira para se erigir, não se mantém, caso der ensejo à relações insalubres (produzir miséria material e moral). Não é propriamente a mentira que amofina o Poder, mas a sua própria insubsistência. O dito ideólogo não é o desalmado Mefisto, mas alguém que experimenta no seu corpo físico/emocional/espiritual a conseqüência dos seus atos. Atribuir ao dito ideólogo o mal significa fomentar lugares-comuns e alimentar uma visão maniqueísta do mundo.

O ponto de vista de que não é o interesse que define a condição do homem destrói a figura do ideólogo (homem-interesse), tal aquele que manipula o mundo sob os auspícios de uma fictícia verdade utilizada como fachada de seu discurso. Não negamos que o discurso possa servir a uma intenção maquiavélica. Nosso desiderato é desmistificar o lugar ocupado pela ideologia no discurso marxista. Lugar de dominação, de segundos interesses (isto é, lugar de uma verdade declarada simulada e de uma verdade velada real). Como disse, reportando-me a Maquiavel, é fato que os homens buscam vantagens, mas não se pode daí querer extrair um discurso de polarização de índole maniqueísta. O protótipo do ideólogo, tal um capitalista, um banqueiro, não pode ser colocado no lugar do homem-interesse, pois é um ser humano, como qualquer outro, suscetível à entropia do meio ambiente, suscetível a própria vicissitude de sua condição de ser afetivo. É para ele, como de resto para qualquer um, doloroso ocupar o locus da verdade. “Deter poder” é um lugar complicado de se estar, simplesmente porque para tal poder se legitimar precisa passar pelo crivo da verdade. O desejo do capitalista de obter vantagem em detrimento de outro passa pelo crivo da verdade? Se num primeiro momento é ao menos razoável responder afirmativamente, baseado na simples idéia de que uns colimam obter vantagens sobre os outros , com um pouco mais de reflexão, logo percebemos que este desejo de dominação produz miséria e daí à violência. Este pretenso homem-interesse, o Capitalista, é destruído por seus dominados (pelo ladrão), por seus próprios sentimentos mesquinhos (violência anterior; baixa auto-estima; recalque; falta de solidariedade; desamor), enfim, é destruído por colher frutas podres em virtude de um plantio açodado. Ao contrário do preconizado por Marx, o Capitalista não é vencido pelo pretenso interesse legítimo das Classes Trabalhadoras, mas, ao contrário, é destruído pela miséria, por exemplo, abuso de poder e violência exercido pelas polícias, prostituição, proliferação de doenças, terrorismo, crime organizado, disseminação da violência, crendice religiosa, agressão ao meio ambiente natural e todas as demais misérias geradas pela deseducação (por exemplo, cultura massificada, apologia do sexo sem responsabilidade, do consumo de drogas), realidades, estas, comuns num ambiente de lucro predatório, ainda mais sob o beneplácito do Estado, mediante tráfico de interesses (patrocínio de interesses privados por agentes públicos).

11.3. A representação determinística da natureza é apenas um quadro na parede. A natureza está viva no homem. A natureza está em movimento e possui vontade. A “pedra” respira e compactua com os nossos anseios. Não existe “pedra” sem vida, porque a “pedra” está umbilicalmente jungida ao âmbito ético. A dicotomia entre meio natural (sujeito ao determinismo) e meio humano (sujeito ao livre-arbítrio) não se mantém. Não há solução de continuidade entre homem e natureza.

Hoje em dia, é cada vez mais claro que a ambição do lucro e do poder nada tem a ver com edificação. O progresso não pode ser medido pecuniariamente. O dinheiro não é padrão de medida de eficácia. O dinheiro não pode alienar o homem de ponderar suas próprias condições. O dinheiro é uma forma de pasteurizar uma realidade assaz abrangente, com todos seus espectros/matizes. A relação homem-natureza tende a complexidade. A visão científica de considerar a natureza como sujeita ao determinismo é inverídica, simplesmente porque o homem é natureza (é vão abstrair um homem-intelecto, homem-razão ) e não pode ser enquadrado na bitola do determinismo (por exemplo, uma pedra pode ser objeto do estudo de um cientista, pode ser a arma de um crime, pode ser o assento de uma moradia,...). A natureza está viva. Não há solução de continuidade entre ela e o homem. Pensar a natureza como determinismo é desconsiderar o homem como volição, como célula de poder e regido pelo princípio da efetividade prática.

11.4. Cada ser humano é, por direito, um interferente na natureza, independente de sua condição. Princípio da Efetividade Prática.

Dizer “efetividade prática” significa dizer que o ser humano é influenciado pelo meio e o influencia (via de mão dupla). O preconceito intelectual de rotular os homens pelos seus gostos (por exemplo, condenar os menores pedintes na rua; as prostitutas; os assassinos; a massificação cultural) não tem nenhuma relevância prática. Não podemos julgar os outros segundo nossos próprios padrões, pois a condição das pessoas é diversa . Cada um busca adaptar-se com os meios que dispõe (efetividade prática). Por exemplo, o que pode ter a conotação de selvageria sexual a alguns, para outros pode ser tão aceitável como forma de prazer assim como beber um bom vinho. O que diferencia beber um bom vinho de praticar sexo sem camisinha, se cada um dos agentes é um ser subjetivo, para quem tal e qual comportamento significa o gozo de um prazer?!!!. Argumentaríamos que são formas qualitativamente diferentes de prazer, que o sexo sem camisinha é mais danoso que beber um bom vinho... Porém, estaríamos singrando um caminho tortuoso, de julgamentos, de rotulações, que só leva a descaminhos. Por exemplo, porque não seria danoso gastar uma fortuna em um vinho, fortuna, esta, que poderia estar alimentando crianças africanas? Outro exemplo, quando condenamos as pessoas menos aquinhoadas, afirmando que deveriam ter menos filhos, porque nos julgamos no direito de emitir tal julgamento? Será que para os pobres ter mais filhos possui alguma relevância prática? (por exemplo, utilizar, como meio de vida, crianças para insuflar o sentimento de comiseração alheia ). Ou, simplesmente, a constatação de que os pobres têm mais filhos deve-se preponderantemente ao fator “falta de educação” ? Ninguém espera uma confirmação de estar certo para poder agir. Tal certeza é uma quimera, pois o mundo é diversidade de condições em íntima relação.

11.5. O engodo do fim pragmático, de garantia dos próprios interesses, colimado pelo Contrato Social.

O idealizado Contrato Social de Rousseau tem que se valer de homens abstraídos de sua condição humana, tem que se valer de uma sublimação das diferenças. O homem que adere ao Contrato Social é um suposto homem-intelecto, que possui interesses a defender (por exemplo, proteção da propriedade). Ao miserável, ao sem teto, àquele que nunca estudou, que interesse há em aderir ao Pacto Social? Preferível manter-se na selvageria, que lhe granjeia maiores dividendos. Com certeza, esta é uma forma pragmática de agir, a qual não abonamos propriamente, mas reconhecemos que é cria do liberalismo mediante sua cultura do agir por cálculo ou interesse. Por exemplo, não consentimos com o fato de que o estado de pobreza constitui salvo-conduto para a prática do crime, mas reconhecemos que a própria lógica pragmática do Estado, induz as pessoas à busca de ganhos secundários , mormente, as mais carentes de educação e influenciadas pela mídia comercial. Tais pessoas, com certeza, não são amputadas do seu intelecto. Apenas vivem uma condição hostil e daí a desenvolverem formas adaptativas de perversa caricatura pragmática. Tais desrazões não deixam de ser razões (vide o princípio da efetividade prática), porque o sistema se explica nas suas contradições. A violência não é o inimigo, mas um sintoma a ser compreendido. Compreender não no sentido de justificar, pois não há como condescender com a miséria e violência. Só é justo aquilo que a si se justifica. As ações solidárias tendem à justificação, à promoção da cidadania. Dignidade não é uma definição, mas um efetivo ser de alguém que se espraia cativando tantos outros seres e fazendo novos multiplicadores de bem-aventurança.

11.6. A ordem sempre existe. É uma condição natural da sociedade. A ordem é, independente da interpretação que se lhe dê (isto é, se boa ou má, se isto o aquilo). Ainda que aparente desordem, sempre é ordem, pois que o prático detém soberania. A promoção das pessoas (o investimento nas pessoas) é o único caminho possível para a boa Ordem. Aquele de boa auto-estima toma para si a responsabilidade, não como um fardo, mas como uma honra.

Aquele que antes era considerado escória, torna-se um multiplicador/fomentador de cidadania. A expressão do direito é esta vida que só opera no íntimo de cada um. Conquistar cidadania é participar ativamente da construção da civilização. Não há direitos garantidos ou adquiridos, mas conquistados pelo livre expressar-se de cada qual. O amor, como expressão de completa doação, é a morada do justo. Nesta dimensão, não há lei ou mandamento, mas ser em harmonia.

Em suma, devemos abandonar os julgamentos a guisa de almejar edificação social. Os julgamentos, as rotulações só servem para estratificar, para polarizar, nunca para edificar. Para edificar é necessário compreender a condição do outro, procurando olhar pelos seus olhos, isto é, procurando nos despojar de nossos preconceitos. Obviamente, não queremos que o planeta se consuma em selvageria sexual, drogas e criminalidade. Certamente, em alguma medida somos responsáveis por tais ocorrências e devemos ter um ânimo diferente para lidar com estas realidades. Nunca procurando nos esconder na redoma de nossa verdade, mas sim ver nas misérias alheias uma oportunidade positiva de transcender nossas próprias misérias. Almejar um mundo melhor significa aceitar a diversidade do mundo tal como é, considerando que existem tantas razões segundo cada arbítrio subjetivo e daí sermos um agente de mudança. Os discursos prontos, que pretendem monopolizar a realidade, os pretensos discursos universalizantes, sob roupagem científica, de nada servem. Por exemplo, o discurso do governo americano de caça às bruxas (terrorismo) é um discurso preconceituoso, maniqueísta. Porque cargas d´água o governo americano teria foro privilegiado para condenar o terrorismo? A apologia americana do armamentismo é totalmente justificável? E a indústria bélica considerada como fruto de um desejo hedonista de lucrar, seria justificável? Não seria tão ou mais bárbaro que o terrorismo? O terrorismo, de fundo religioso, conquanto possamos rotular como uma prática abominável, não seria menos condenável que simplesmente desejar lucrar com a violência (indústria bélica)? Sob o crivo de uma ponderação racional, podemos afirmar que a crença religiosa de uma tal guerra santa, à maneira do antigo testamento, é uma coisa abominável. Mas se fizermos tal julgamento, estaremos novamente adentrando no tortuoso caminho dos preconceitos, isto é, considerando o outro como um igual, quando este outro está sujeito a condições diversas. Isto é, abstraindo todo um cenário internacional, marcado pelas diferenças de toda ordem. Estaremos reforçando o protótipo ocidental de civilização, estaremos reforçando o mito de que a produção científica pode ser de per si legitimada. Estaremos concordando com o engodo de que aquele que detém mais saber (tecnocracia científica) ocupa o lugar do poder. Ora, a ciência não pode se legitimar como lócus detentor de foro privilegiado. Dizer-se arauto da ciência, a priori, significa apenas uma técnica, que para ser legitimada necessita de uma implicação moral (não há ciência apartada da moral e da política). Por exemplo, a quebra do átomo (Einstein) tanto pode servir a fins bélicos, como a fins médicos. Como cediço, a pura técnica de que vale se não referendada num contexto de legitimação moral?!!!

11.7. Da inspiração pragmática comum ao liberalismo e ao marxismo.

A bandeira empirista/utilitarista preconiza uma moral do interesse (do ser empírico-desejante) em oposição a uma moral metafísica da pura constrição espiritual, de feição inatista, idealizada. O materialismo marxista identifica-se muito mais com o liberalismo do que com a concepção metafísica, pois o substrato empírico do interesse é comum ao marxismo e ao liberalismo de matiz empirista, utilitarista e pragmática. A idéia de que o marxismo se opõe ao liberalismo deve ser considerada com a devida cautela, pois ambas as concepções tem muitos pontos em comum, mormente por serem propostas de secularização da ordem, isto é, de uma tentativa de dar contornos a história para o futuro (liberalismo: hedonismo e concepção orgânica de ordem social; marxismo: a conquista dos meios de produção e o coletivismo). Estas duas concepções propõem uma ordem que deixa o passado a mercê do acaso (não interessa como foi o passado, não interessa seu legado cultural). O que interessa é que o presente/futuro ganhe um sentido de referência (laicização/ racionalização; secularização). Embora a palavra “liberalismo” carregue um sentido de liberação, o liberalismo é sobretudo a imposição de uma disciplina. Disto não destoa o materialismo marxista, o qual veicula uma rígida disciplina concernente a imposição de uma igualdade material coletiva, a maneira de um necessitarismo messiânico.

11.8. O liberalismo e o materialismo não logram alcançar o patamar empírico da epopéia humana. Somente o amor detém magnitude empírica. Somente o amor detém realidade.

Sobre o substrato empírico do interesse pedra de toque do liberalismo e do materialismo marxista, temos a dizer que a tão acalentada dimensão empírica do homem ainda é uma incógnita, uma vez que a retórica do empirismo escamoteia sua origem obstrata (reflexão; racionalização). Seus apologistas julgaram ter encontrado a dimensão empírica do homem, sem se dar conta de que a consideração sobre o interesse não pode ser reduzido a uma bitola empírica (isto é, uma res extensa orgânica). Afinal, o que é o interesse em termos empíricos? Se dissermos que é busca pela satisfação das necessidades básicas, tais alimentar-se, dormir, proteger-se do frio, chuva, procriar, não haveria muita razão para desejar, pois o desejo seria mera função da necessidade. Seria um estímulo fadado a morte quando de sua satisfação. Outrossim, se quisermos atrelar o desejo à necessidade deixamos a reboque sua gênese psicológica, e, por conseqüência, sem explicação a enorme gama de desejos do “homem social”, para além de sua condição animal, desejos, estes, que tanto revelam a faceta humanitária do homem (por exemplo, amor, compaixão, heroísmo), como bestial (perversão sexual, traição, ganância, canibalismo, requintes de perversão).

Particularmente, acho factível o interesse e isto importa afirmar seu substrato empírico, mas não creio que se possa ter acesso a tal interesse na base de um julgamento ou da apreensão do empírico como uma instância passível de ser tornada objeto (sujeito – objeto; verificador versus verificado). O interesse existe amalgamado inexoravelmente à experiência do indivíduo. Daí sua dimensão empírica. Porém, tal experiência é vivida de forma integral, porque o indivíduo é dotado de autonomia . Além de ser dotado de autonomia, não há que se falar de um indivíduo por seus atributos (esfacelado em tais e quais qualidades), mas como inerência. O interesse do indivíduo nunca pode tornar-se objeto, tal como pudesse ser eclipsado numa experiência (o observador externo; o verificador; aquele que crê exercer a cognição de um objeto externo a si). O que pode acontecer é que o indivíduo abandone seu interesse, mas tal é uma consideração de foro íntimo, que não pode ser polarizada por quem quer que seja (nem pelo próprio indivíduo), uma vez que a condição do ser não opera na base do sim/não, do certo/errado. Sempre carregamos conosco todas as nossas determinações.

A busca de um substrato para o interesse humano decorre do ímpeto empirista/utilitarista na busca de um novo fundamento de validade, oposto àquele de índole religiosa, na esteira do pensamento científico emergente, capitaneado pela burguesia. Se considerarmos contextualmente tal proposta de fincar no interesse do homem a gênese de suas relações morais com o mundo, soa bastante razoável a proposta. Isto porque, para os utilitaristas, admitir a condição carnal do homem (isto é, sua condição de ser desejante), apareceu como um avanço, haja vista todo ambiente ideológico de perseguição, punição e vigilância que se instalou na Idade Média.

11.9. O ethos científico da idade moderna foi construído em meio a um cenário de relativismo valorativo. Não era propriamente a verdade que estava em disputa, mas os interesses das instituições referentes à perpetuação do Poder. Necessitou-se abraçar um paradigma de verdade, porque o “sagrado” não poderia ser substituído por um “talvez”. Em tal contexto, era necessário que a ciência se erigisse como uma moral.

Porém, nos idos do século XVIII, ainda não se tinha a dimensão da ideologia no sentido de maquinação ou artifício. A palavra de ordem era a imposição da verdade. Não se admitia a falta do objeto. Tal paradigma era reforçado pela Igreja, que impingia o sagrado, usando de um apelo estético, de um realismo muito presente, tal o fetiche da santidade e do diabo. A possibilidade de ponderar concepções, interesses e valores, tal, por exemplo, o interesse da Igreja, em perpetuar-se como instituição de Poder, não vinha à tona, porque tudo tinha que ser canalizado à bem de uma verdade. Não havia espaço para qualquer relativismo valorativo.

O empirismo necessitou se firmar como uma nova moral, fundamentada no discurso científico de que não havia conhecimentos a priori, mas derivados da experiência (imanência X transcendência). O discurso empirista conseguiu operar a mudança de paradigma, a desembocar na laicização do Estado. Importa dizer, o ímpeto empirista foi totalmente justificável em face das circunstâncias. Seu discurso se instalou em meio ao jogo de oposição com o Inatismo. Nesta altura, é imperioso mencionar que o empirismo pagou um preço deveras alto por refutar a pretensão de verdade do pensamento inatista/cristão (escolástico), simplesmente porque não existia tal pretensão de verdade. O discurso religioso era um discurso engajado nos interesses da Instituição/Igreja. Não havia interesse algum de alcançar uma verdade espiritual, etérea, desapegada. Considerando o discurso religioso como um discurso de valor, não calha a pretensão empirista de refutar pretensão de verdade de tal discurso, simplesmente porque não havia tal pretensão de verdade a salvaguardar.

Igualmente, da parte do empirismo, o mesmo problema se coloca. Não há como encontrar um substrato empírico (fisiológico) do desejar humano. Não há como reduzir tal interesse/desejo a uma variável observável. O interesse não se coloca somente em função de um estímulo. Se assim fosse, seria um determinismo.

E, mesmo que se queira apreender o empirismo sob o crivo da verdade, tal tarefa é inglória. O que os arautos do empirismo/utilitarismo queriam é um salvo-conduto para resguardar sua liberdade individual, em face das pretensões totalizantes provenientes da Realeza. O discurso empirista não é, assim como o discurso religioso, um discurso de puro amor à verdade e a ciência, mas um discurso engajado, direcionado a garantir posições de poder (da Burguesia).

11.10. Do relativismo moral e da constatação de que o saber está umbilicalmente ligado à motivação/interesse humano, não se vá querer coroar o ponto de vista da ideologia abraçado pelo materialismo.

Uma vez considerado que um relativismo valorativo povoa as pretensões seja do Clero, seja da Burguesia, poderíamos arriscar dizer que a razão está com os Marxistas, que vislumbraram a gênese ideológica dos discursos?
Muito embora possamos associar ideologia a poder e a manutenção de posições de privilégio, não há como justificar o caráter ideológico dos discursos . Com certeza o marxismo não descobriu o ponto de inflexão que revela o caráter tendencioso ou parcial da natureza humana. Não há nada a desmascarar. Entre um extremo e outro dos significados que a ideologia pode assumir (discurso da verdade; discurso da simulação), ambos são irrealizáveis como meta.

O poder para o homem não é um objetivo destacável , não é uma posição, mas apenas um estado. Imbrica-se no sintoma. O poder não pode ser vivido como um absoluto, porque não é humano que assim seja. Com certeza, o Poder já gerou muito infortúnio (por exemplo, inquisição; exploração do trabalhador; pobreza; miséria), mas em verdade de Poder não se trata, mas de recalque (isto é, força que compensa uma frustração, por exemplo, o estuprador utiliza a força como recalque de um desejo insatisfeito; Qual desejo?: o desejo de ser aceito, o desejo de ter sua auto-estima compartilhada com outros). Na verdade, as misérias causadas pelo pretenso Poder não passam de atestados de malogro deste poder, e não propriamente de um trunfo, tal como pretende o materialismo marxista. Não é coletivismo materialista que vence o ideólogo capitalista, mas as próprias contradições (se, como e quando) são, de per si, atestado da miséria. O desejo do capitalista de, mediante o acúmulo de capital (que representa maior força), desfrutar de posição privilegiada perante os demais, nada mais é que uma frustração, um recalque, um malogro . Em verdade, vantagem nenhuma representa, mas simplesmente uma ilusão de Poder. Note-se que o “ter mais dinheiro” em si nada representa a priori. Depende da intenção, isto é, de como o sujeito representa este “ter mais dinheiro”, em meio às relações que trava com o mundo. Um excedente de capital pode muito bem gerar bem estar social, uma vez posto o dinheiro a serviço de uma empresa organizada para atingir determinados fins benfazejos a sociedade, como soe acontecer em muitas fundações. A distribuição gratuita e inadvertida de dinheiro também, eventualmente, pode ser de reduzido impacto social, se o dinheiro for usado para fins perdulários, sustentar vícios, etc. Como cediço, não há uma equação que denote a justa relação entre homem e natureza, porque a natureza não pode ter para o homem uma representação empírica invariável, uma vez que o homem e sua volição também é natureza e cada homem possui suas peculiaridades, dependendo das influências que teve dos pais e outros tantos fatores/estímulos que o cercam. Um dia ensolarado em uma praia, pode para um significar prazer, para outro significar o ensejo de atirar-se ao mar para dar cabo de sua tormentosa viva.

11.11. A pretensão materialista de divisão matemática da natureza (coletivismo necessitarista) entre as pessoais não passa de uma utopia. O denominador comum entre o “eu” e “outro” não é propriamente ter o mesmo quinhão de matéria (egoísmo velado; solução pelos efeitos), mas poder cada qual expressar-se como pessoa e ser reconhecido pelos demais por suas obras. A humanidade é o elo que nos une e se espraia no amor dignificante.

Não há perspectiva de uma distribuição justa de riqueza através do esquadrinhamento da natureza. Não há como apreender a natureza e dividi-la, tal como de um objeto se tratasse. Há natureza não pode ser simbolizada fora do homem, mas existe em meio ao afeto do homem. A natureza sempre se renova. Um fruto não dado a alguém por egoísmo, frutifica algo no sujeito egoísta. Não morre no ato do fruto não dado, pois este fruto não dado já é passado, e existem outros tantos frutos frutificando no presente. Contrariamente ao que pode dar a entender meus pensamentos, não é que a natureza não conte. Muitos têm sede de água e este é um clamor do mundo, mas não é propriamente um clamor da natureza como matéria bestial (fadada ao pó), mas da natureza no homem. Os rios poluídos, o mar conspurcado de óleo, é um clamor da natureza no homem. Não da natureza lógica/hermética hegeliana , mas da natureza da volição dinâmica que é o afeto. Natureza que não se exprime como unidade, nem como fenômeno a guisa de um conceito do que é (ou seria...) . Natureza que se exprime dinamicamente, isto é, se, quando e como acontece. Não tem contornos de fora para dentro, mas somente na persona em movimento, co-criadora do universo, juntamente com a legião de todos os demais co-criadores. Para que querer abstrair de tudo isto uma unidade? É como querer viver num passado de nostalgias, comparado a um mundo que sempre se renova, a parodiar as sabias palavras de Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso. A insuperável ética de Cristo prega o amor, porque o amor é maior expressão da natureza. Não daquela natureza mórbida, tal um retrato na parede, mas de uma natureza em ato. Onde não há reflexão sobre o que foi, mas criação do que é. Ética do amor tão menosprezada pelos sectários de um pretenso e caduco rigorismo intelectual, fundamentado numa concepção equivocada de verificação empírica, na base do dualismo cartesiano, ou do “apreender o mundo” mediante julgamentos ou aprisionamento das formas.

Com certeza é impossível dizer que o interesse não existe (este é o grande trunfo marxista), mas o interesse não se basta, pois está amalgamado na condição humana (afetiva). O interesse não existe como poder. Poder é uma conjugação íntima de cada um. Só se revela para cada um na medida do seu “familiarizar-se com sua experiência” e guindar sua versão à condição de história criadora do mundo. História/ciência, história que não morre no passado.

Em vista do que dissemos, não queremos que nossas palavras sejam tomadas como intenção de refutar o patrimônio cultural anterior. Há que, ao menos, confrontar os paradigmas herdados do marxismo, do esquadrinhamento do mundo através das relações de poder, dividindo-o em dominantes e dominados. Que prega uma consciência burguesa, uma maquinação ideológica, como se houvesse um protótipo de homem/interesse/poder, destituído de afeto, de humanidade. Como se o Ideólogo Burguês tivesse pleno domínio dos meios e fins, como se sua condição humana/afetiva pudesse ser bitolada no simulacro de uma mais valia. O Banqueiro pode muito bem se sentir poderoso, em virtude do estratagema que criou em torno de si, para fazer valer a lógica da inversão de que o trabalho paga o dinheiro. Pode muito bem se sentir poderoso..., mas não passa de uma grande miséria. A cobiça de poder do Banqueiro não significa um acúmulo de riqueza, mas uma degradação da riqueza. Aqueles que clamam por aniquilar os Banqueiros, para que se dê ocasião a divisão de suas riquezas, estão a parodiar a fábula da Galinha dos Ovos de Ouro. Não se trata de criar celeuma sobre o dinheiro, que é uma abstração destituída de natureza, mas de aquilatar o que há de realmente valoroso na natureza (por exemplo, qualidade do ar, auto-estima, satisfação no trabalho, analise dos projetos sobre o ponto de vista do impacto ambiental, etc), isto sim passível de valoração econômica. A economia está na natureza, diga-se na do homem (que não aceita nenhuma bitola de determinismo). O dinheiro não pode usurpar a natureza do homem, pois só o homem pode ter a dimensão do valor. Não há como o homem delegá-la a ente externo algum, o dinheiro, uma Mansão, uma Ilha Particular. Qualquer tentativa de açambarcar a natureza através do monopólio de valor (por exemplo, acumulo de capital, de poder, de armas) não passa de um câncer social. Como dissemos, tal modo de proceder nada tem de riqueza, mas de disseminação da miséria, sobretudo moral. A miséria moral é deverás mais grave que a material. Podemos nos cercar de ouro e riqueza material, mas, dependendo de nossos investimentos equivocados, a natureza nos cobra com rigor. À tentativa de dominar a natureza, colhe-se o orgulho e o desamor..., até que sejamos derrotados por este orgulho (a religião afro é sabia ao conceber o Exu, não como o diabo a moda maniqueísta, mas como entidade de comunicação entre o bem e o mal. In casu, estaria representado naquele orgulho que cultivamos, mas o qual paradoxalmente sempre nos derrota).

11.12. O interesse não pode permanecer somente na esfera da razão, pois seu lócus é a natureza. Não a natureza legada ao reino do determinismo, mas a natureza dotada de vontade.

Com certeza, na experiência encarnada do homem o interesse conta, uma vez ser impossível abstrair o total desinteresse ou um tal interesse puramente racional em contraposição a interesses parciais. Os homens via de regra tem interesse em acumular riquezas, possuir bens de consumo, relacionar-se sexualmente e assim por diante. Nem é possível legar ao homem, a conta de um reduto onde o interesse estaria legitimado, as necessidades básicas, tal a necessidade de alimento, habitação, necessidades fisiológicas, como se tal pudesse pertencer ao âmbito de um indiscutível determinismo. Não há nenhum interesse prático em fixar a necessidade determinística do homem como direito garantido, a uma, porque se necessidade determinística é, é antitético que a fixemos na base um direito, pois tal seria misturar o que é por natureza e o que é por direito . Melhor seria, neste particular, legar os homens a uma vida animal, pois a busca das satisfações básicas seria natural. Não há um divisor de águas entre estado civilizado e estado de natureza, isto é, não é possível peremptoriamente afirmar que a civilização é superior ao estado de natureza. Os animais ditos irracionais, em estado de natureza, não lutam por puro espírito de beligerância, mas em virtude de satisfação de suas necessidades básicas. Quando ensinados pelo homem, podem desenvolver outros instintos, como soe acontecer, com a briga de galo.
O homem, em sociedade, possui vícios não detectáveis entre os animais em estado de natureza. As piores perversões são encontradas no homem em sociedade, tais as perversões sexuais, os requintes de crueldade e traição...

Definitivamente, tal tentativa de instaurar um núcleo de prudência é vã. Ao afirmar, de um lado, que o interesse conta e, de outro, que não há como garantir um interesse expurgado de qualquer ilegitimidade, caímos num aparente paradoxo, dando azo à idéia de que o interesse é como navegar em uma nave que singra por caminhos indefinidos ou simplesmente não almeja nenhum destino que legitime seu percurso.

Tal paradoxo é apenas aparente, porque o problema não está propriamente no interesse, mas em sua relação com o afeto/emoção. É impossível legitimar a vontade do homem só na base do interesse, uma vez que a “vontade de poder”, somente calcada no ego é uma prisão.


12) O discurso moral do empirismo.

Porque os empiristas necessitavam de um discurso moral? Porque haviam se desincumbido com relativa facilidade da tarefa de discorrer sobre o fundamento empírico da especulação, mas restava uma outra tarefa: imprimir um sentido prático na busca do homem. Afinal, porque buscamos algo? De que vale uma especulação desenfreada, aleatória, se não há uma motivação para a caminhada?!. Tais indagações, a primeira vista, não parecem desarrazoadas. Contudo, a questão não é simples, devido aos contornos políticos que enseja. Note-se que dizer sobre o que seja a motivação pode resvalar para uma outra e sórdida consideração maliciosa, qual seja: como induzir comportamentos. Em outras palavras, de uma indagação aparente inocente, quase uma especulação ou curiosidade quanto à questão sobre como os homens se comportam e se motivam, transgredimos para o terreno tortuoso referente à indução de comportamentos, bem como a imposição de uma disciplina, ainda que travestida de uma aparente perspectiva de liberdade. O utilitarismo nada mais é que uma especialização do empirismo no âmbito moral, com o intuito de dar contornos políticos e morais à tarefa iniciada pelo empirismo da substituição de um fundamento transcendente por um imanente. A moral da utilidade é irmã da moral do hedonismo ou busca do prazer. Como dissemos, a aparente inocência da proposta da busca do prazer, sobre aparentar um viço de jovialidade, mormente em vista do cenário em que o discurso do liberalismo foi forjado (isto é, como disse Bentham, em meio às praticas celibatárias de auto-flagelo), em verdade tal concepção carrega consigo a ancestralidade da imposição da disciplina. A proposta utilitarista (ou se assim quiser, prático/empirista) no âmbito moral, foi preconizada por muitos, a exemplo de: Locke: há dois estímulos para o comportamento, a atração pelo prazer e a repulsa pela dor; Hume: a moral inatista é uma quimera, uma abstração sem sentido; Bentham: a imposição arbitrária do Rei deve ser substituída por um contrato baseado na maior utilidade para todos.

12.1. A tentativa de dar foro empírico à ética, mediante o discurso do dualismo prazer/dor. A pretensão de atingir o patamar prático naufraga em um “determinismo”. A apologia do prazer, paradoxalmente, possui a natureza de imposição de disciplina, isto é, de indução de comportamentos, mediante os estímulos de recompensa e punição. O modelo pragmático do “agir por interesses” é uma prática behaviorista.

O que significa a moral da utilidade/hedonismo? Diriam os prosélitos do empirismo e doutrinas afins, assim como a teoria deriva da experiência (isto é, mediante a relação com a natureza imanente), a prática não pode discrepar de uma fundamentação empírica. As questões da teoria e da prática são, respectivamente, “o que devo saber” e “como devo me comportar”. De maneira pueril, poderíamos asseverar que a questão de “como devo me comportar” seria facilmente resolvida, caso tivéssemos pleno conhecimento de tudo (aquele que tudo conhece não pode ser vítima de ignorância e logo não incorre no perigo de mal comportar-se). Note-se que, mesmo no campo da especulação, o problema do “como comportar-se” se coloca, pois a perspectiva empírica de conhecer não pode ser uma indução que a natureza nos impõe (isto é, as sensações não nos podem legar um determinismo de um conhecimento inexorável).

12.2. A tentativa de Kant de firmar a precedência do espírito sobre a natureza.

Talvez por tal motivo, Kant tenha lançado a idéia de síntese a priori, a fim de defender o ponto de vista de que antes do contato com a experiência há uma potencialidade inerente ao espírito (categoria – a suscetibilidade da fazer inferências lógicas). Kant, porém, não ousou ferir o cerne da pergunta antes formulada: “como devo me comportar?” A perspectiva de um operar lógico apriorístico do ser põe termo à precedência do espírito sobre a natureza, porém peca ao pretender por o homem a ferros, como se a inteligência pudesse ser a antevisão do todo, como se de fato existisse uma linearidade lógico/consequencial na empreitada da relação do espírito com a natureza, como se o homem fosse um ducto produtor de inferências lógicas. O que mais causa perplexidade é que a tal idéia de uma gênese categórica do homem é antitética a qualquer pessoalidade, a qualquer motivação humana. Mesmo se, tal como Kant, quisermos compreender a relação do homem com a natureza através de uma ontologia discursiva, poder-se-ia indagar a Kant sobre sua assepsia da natureza, isto é, Kant retirou do espírito todo resíduo de natureza (a categoria opera numa espécie de vácuo). Mesmo se quiséssemos pensar a categoria como uma espécie de operar puramente neurológico, ainda assim estaríamos querendo pôr a ferros o homem, pois que o querer Kantiano, para salvar a precedência do espírito sobre a natureza, acaba por nos transformar em andróide. Na tentativa de responder a questão de “como devemos nos comportar?”, hoje, passados mais de dois séculos desde Kant, Freud associou o psiquismo à sexualidade, de molde a deixar para trás a concepção de tempos de antanho quanto à sexualidade vinculada a uma animalidade/bestialidade (o dualismo de Santo Agostinho entre corpo e espírito, de matiz platônico). A perspectiva Freudiana se nos afigura um tanto rígida, por pretender entabular a trajetória humana sob foros científicos, bem como assumir postura anti-metafísica na apreensão do ser (psiquismo X espírito). Seja como for, o ponto de vista freudiano, de um liame causal entre corpo e mente, e da constatação do sintoma como tertius genus (o sintoma é fisiológico e psíquico) constituiu um importante avanço.

Retornando à Kant, ao assumir a empreita de vencer o determinismo da natureza sobre o homem, isto é, a perspectiva empírica de que o conhecimento dava-se a posteriori, o Filósofo de Konisberg pagou um preço alto, qual seja, de, a bem da verdade, alienar o homem de sua própria natureza. Kant não se deu conta de que a perspectiva especulativa empirista não era um modelo apto a explicar a relação do homem com sua motivação, mas apenas uma abstração referente à relação entre razão e sensações, nada mais que isto. Ou seja, a tentativa de dar foros morais ao paradigma da aprendizagem por via do conhecimento empírico esbarra em sérios complicadores. A exemplo do magistério de John Locke, sabe-se que a moral científica ascendente queria pôr termo à dominação dogmática da Igreja na Idade Média. Contudo, ora questionamos se a nova proposta empírica de fundamentar o conhecimento na relação com a natureza tangível podia pretender novos fundamentos morais, tal como de fato ousou. Ainda que nos pareça ao menos aceitável considerar como saudável uma proposta de um modelo alternativo e racionalmente fundamentado a guisa de refutar dogmas de imposição de um Poder vertical (tal como a ideologia da delegação divina do poder dos Reis), devemos considerar os fatos com o devido distanciamento. Até porque o mal que a moral utilitarista quis imunizar (isto é, o poder arbitrário dos Reis), não o cauterizou no seu próprio discurso A moral utilitarista/hedonista, ao sabor do vulto racionalista que se impôs nas eras moderna e contemporânea, denota uma rígida imposição de disciplina, sobretudo no tocante à repressão da imaginação. Por mais que se possa condenar os dogmas religiosos, a bíblia é repleta de metáforas, de apelos simbólicos, de imagens, criações. A moral científica, ao pretender pôr ferros à imaginação, funciona como disciplina repressora.

12.3. Imputar significa impor (dever-ser) disciplina. A disciplina não pode ser imposta, mas deve ser querida para que possa dar bons frutos. A sanção que se restringe ao “dever-ser” não restaura a Ordem, logo não é sanção. A sanção que se crê atuante pela violência sempre necessitará de um terceiro (e este terceiro deverá ter um outro terceiro que lhe policie, e assim indefinidamente) para pôr cobro a eventual abuso de poder cometido em nome do Estado. A sanção opera na natureza e tem efetividade empírica.

Vide também a outra questão, já comentada, referente ao discurso de libertar o homem do status de servo ou súdito, que escamoteia a imposição de uma rígida disciplina de responsabilização pelos seus atos. O homem é emancipado (inserido na condição civil, declarado livre) e ao mesmo tempo prisioneiro de tal liberdade, uma vez que é cobrado vintém-por-vintém pelos seus atos, no mais das vezes apenas formalmente inserido na condição civil, tal, por exemplo, os menores de rua submetidos aos horrores dos reformatórios, sem nunca terem tido um amparo de afeto dos pais. Ainda que se trate do “protótipo” de cidadão (isto é, do homem de posses e bem educado), a lógica de poder ser imputado (penalizado) por ser responsável é equivocada . Associar responsabilidade à penalização é um ato de desgoverno. A expectativa legitima que se deve ter para com os responsáveis é a de que tragam bons frutos à sociedade . Responsável é aquele que coopera com a Ordem, que efetivamente realiza a Ordem e não meramente aquele que a destrói ou simplesmente se comporta conforme a ordem pré-estabelecida, como se de um “vegetal” se tratasse (um autômato cumpridor de uma imposição vertical emanada de uma autoridade impessoal). A Ordem não é a concessão de um Estado como produto de uma razão abstrata, mas a Ordem é o simples resultado do querer social, através dos cidadãos, os seus protagonistas.
Associar irresponsabilidade à penalização é, no mais das vezes, desmando. Desmando de um Estado que pensa diagnosticar casuisticamente (e individualmente) as transgressões, quando a questão é de uma magnitude muito mais complexa, inclusive, envolvendo problemáticas atinentes ao abuso de poder e corrupção no seio do Estado. O Estado, através de seus agentes, que deseja veementemente erradicar o crime, deve dar exemplo, por atos, intenções e palavras, da conduta reta. A técnica de disciplinar do Estado é equivocada, uma vez que a pena nunca pode ser encarada como um efeito da conduta. Não há vínculo conseqüencial entre a pena e a conduta, tal como incidiu em erro Bentham, ao atribuir ao Estado a tarefa de realizar o equilíbrio matemático entre prazer e dor. É uma quimera realizar tal equação em virtude da diversidade de condição das pessoas e da falta de unidade ideológica do Estado (a imagem do Estado varia conforme a lente de cada observador). Além disso, é reducionista a idéia de que o prazer (ou a deliberação sobre o prazer) pertence ao indivíduo. O ser social é gregário, suscetível a influências (por ex, filmes policiais incitando à violência). Como dissemos, não há um nexo matemático entre pena e conduta. A pena deve ser encarada somente como um meio de edificação social. A certeza da pena, no sentido da eficácia na promoção dos indivíduos (dignificação, investimento na auto-estima), apenas diz respeito à autoridade do Estado, e não, propriamente, um requisito sine qua non à constituição do Estado (este último na base de uma aplicação formal do princípio da certeza da pena. Isto é, no sentido de que as penas inexoravelmente são aplicadas). O estabelecimento de tal requisito à constituição do Estado é um embuste, porque o Estado Burocrático não pode calcular a suficiência do aparato repressivo anteriormente ao acontecer social, e nem tampouco este é um mister somente a cargo do Estado Burocrático, pois que a pena dita “humanizada” não requer somente o aparato físico (por ex, cadeias), mas sobretudo é um empreendimento humano, o qual requer a participação da sociedade e intercâmbio multidisciplinar. A quantidade de crimes, isto é, o grau de transgressão ao sistema é um fator assaz complexo e não pode ser encarado apenas como uma variável a ser manipulada pelo Estado. Vide às prisões super lotadas, que, de resto, prestam um desserviço à ordem (escolas do crime). O presente ponto de vista é distinto do de Kelsen, pois, para nós, a sanção está inserida no domínio da natureza (a realização da civilidade e da humanidade são eficácias que se espraiam na natureza), ao contrário de uma relação meramente convencional (de imputação). Não há sanção meramente racional. Qualquer sanção, para se convalidar, deve acontecer como um ato de humanidade. Os direitos gravitam em torno do homem. A sanção jamais pode se portar como imposição racional (dever-ser), mas deve ser uma restauração que opera diretamente por natureza e na natureza, e confirma/ratifica o amor, o qual detém excelência empírica.

12.4. A idéia de que as pessoas têm livre-arbítrio é um artifício para a imposição da disciplina e responsabilização pessoal. O livre-arbítrio é um mito necessário a imposição de uma dogmática.

Não fosse isto, como já esboçamos, a moral empirista deixa a desejar quanto a sua fundamentação. Volva-se ao exemplo de uma criança, a tal tábua rasa ou papel em branco, como querem os empiristas. Seria romantizar demais, porfiar na idéia de que a criança vai paulatinamente/linearmente formando seu caráter/moral. Ora, a criança desde o útero materno já recebe influências do caráter dos pais, sobretudo o da mãe, suas reações, dramas, comportamentos. Todas as contingências humanas são dramatizadas, o que exclui a hipótese de que haja um momento inicial de pura experienciação dos sentidos corporais. A criança nasce num meio determinado, com costumes já arraigados... Nasce num mundo povoado. Decididamente, a criança não possui livre arbítrio (no sentido de decidir livremente e com conhecimento de causa) para criar seu convencimento e, sobretudo, não há como vislumbrar imparcialidade nas experiências que depara. O universo humano é um universo informado pela parcialidade e subjetividade. A tal altura, poder-se-ia afirmar: o utilitarismo comunga com tal ponto de vista subjetivo e situacional da epopéia humana, uma vez que se opõe a moral abstrata inatista, isto é, preconiza uma moral do homem interessado, real, parcial, carnal. A nosso aviso, assim não enxergamos. A tentativa de fundamentar empiricamente o comportamento humano, sob o argumento de que a gênese prática do homem é a busca do prazer e a fuga da dor, constitui um indevido reducionismo do patrimônio lúdico/afetivo do homem. Em outras palavras, a malfadada investida utilitarista quer transformar em linearidade, em pura sensação orgânica (dualismo prazer/dor) a temática do comportamento humano. O comportamento humano não pode ser apreendido como variável, nem tampouco manipulado tal como um objeto. O comportamento humano, por mais que hediondo, não pode ser taxado assim e assado, de formar a dar um veredicto do acerto/erro. Não calha a idéia utilitarista de que a transgressão seria um prazer que extrapola o limite do permitido. Isto é uma mera tentativa retórica de controle social. Ora, o limite do prazer permitido, a priori, ninguém nos pode dar, pois não existe paradigma. A sociedade é informada pela diversidade de condições/comportamentos, não há como exigir um comportamento modelo, uma vez imperar o signo da diferença. Ainda que se possa recriminar uma tal tentativa de prazer transgressor, por exemplo, o caso do estuprador, não existe esta pessoa que cria em si tal excedente de prazer (tal como um lucro indevido). Este estuprador não obteve um excedente de prazer. Se assim considerarmos, estaremos, de certa forma, reforçando a conduta do estuprador, ao afirmar tratar-se de um grande prazer (tal o beato, que recrimina, mas no seu íntimo deseja aquilo). Seja como for, o estrupador não é um potenciômetro de prazer, mas um ser de sintoma/afeto, que age por motivação personalística. Seria uma tentativa reducionista entabular a questão do estuprador na base de uma apreensão puramente hedonística, uma vez que a deliberação ou agir subjetivo do criminoso é de ordem emocional, bem como sua leitura deve ter em conta os valores do meio circundante. Por exemplo, a cultura de massa vende o “corpo” e a “beleza” como objetos. Se a conduta do estuprador é passível de reprovação, igualmente o é a cultura de massa, bem com todos os que para ela concorrem (modelos que posam nuas, publicitários, fabricantes de cosméticos). O universo moral em que nos inserimos é o da co-responsabilidade. Há influência mútua de uns sobre outros. Ninguém tem salvo-conduto para querer se denominar auto-suficiente moralmente, ou exibir o galardão da fiel observância do Imperativo Categórico. Como dissemos, vivemos num mundo povoado. As condutas que reprovamos (tal, por ex., o ato do estuprador) não podem sofrer o anátema, uma vez que não temos imunidade moral para julgá-las. O que se pode dizer sobre a moral do mundo é que um processo que acontece ao sabor das interações/relações entre os indivíduos. Não há êxito possível para nenhuma moral que se pretenda estática e absoluta. O universo social é informado pela diversidade da condição das pessoas, bem como é impossível inferir sobre o comportamento das pessoas tais como de variáveis (na base dos dualismos, prazer/dor; bom/mal; certo/errado) estivéssemos tratando. Não há como pinçar do indivíduo o seu comportamento. O indivíduo deve ser percebido como uma totalidade. Não há como querer atribuir responsabilidade aos indivíduos, se considerarmos isoladamente seu comportamento (isto é, a despeito da persona/sujeito).

A intenção dos arautos do modelo hedonista era alavancar uma mudança de mentalidade com vistas à laicização (do obscurantismo/trevas à iluminação; a racionalização da vida em sociedade; a refutação da fundamentação absolutista do poder) e a não ingerência do Estado sobre a sociedade (laissez faire). Passados mais de duzentos anos desde a Revolução Francesa, a história nos dá testemunho de que o modelo hedonista não trouxe à humanidade o tão almejado progresso, ante a singela constatação do descompasso entre a enorme riqueza e conhecimento alcançado pela sociedade, comparada a uma miséria material e moral ainda maiores.
12.5. O ser de afeto consegue transcender ao determinismo do prazer. O prazer, como pura excitação orgânica, é uma mera hipótese, isto é, não detém efetividade empírica.

A temática humana não é só função do prazer, uma vez que o afeto/sintoma é que contam. Se o prazer fosse algo determinado pelo objeto, sempre que houvesse sol deveríamos estar com um estado de ânimo determinado e uma mulher bonita deveria incitar nos homens idêntica reação. A doutrina utilitarista é uma tentativa de imprimir o mesmo modelo determinista, utilizado para balizar a ciência da natureza, para o universo moral humano, com grave comprometimento para um projeto de civilização que se queira digno da magnitude humana. Do modo utilitarista/hedonista de vida tem se colhido frutos perversos, a exemplo da ênfase nos remédios (hipocondria coletiva – busca da solução dos efeitos; crença de que a posse do dinheiro paga a cura), na silhueta magra (anorexia; escravidão do corpo), na crença de que o prazer é um objeto suscetível de ser possuído (simbolizado num bem de consumo). Fala-se muito no combate às drogas, mas de considerar que a lógica das drogas é mais que sufragada pelo modelo hedonista, porque é idêntica a lógica dos remédios, da compra do prazer, da redução do corpo a um simulacro do prazer (isto é, desprezando o eu afetivo/somático/sintomático). O sintoma é visto antes como um fantasma, estereotipado como de doença se tratasse. O modelo hedonista de massa plantou a idéia de que sintoma significa doença. Muito pelo contrário, o sintoma é um patrimônio indelével do indivíduo. Não há como ter experiências no âmbito moral sem dramatizar/sintomatizar, sem inserir-se num universo lúdico. A tão decantada busca hedonista preconizada pelos liberais não passa de um espectro sem vida. O prazer não é um fim-em-si, mas somente se legitima se encampada no projeto de realização. O prazer como uma categoria puramente fisiológica é mais bem acolhido entre os animais irracionais, porque está em função do instinto. Nem nos animais irracionais o prazer pode ser gratuito, quiçá nos homens. Para dar uma idéia do descalabro que o hedonismo liberal tem gerado, observe-se uma semente transgênica, hiper-resistente a pragas. Poder-se-á argumentar que tal híbrido produzido em laboratório é benfazejo ao homem. Talvez, sob a ótica de um interesse imediatista, como soe acontecer com o interesse lucrativo. Ora, a semente resistente é uma solução pelo efeito, pois geralmente a causa das plantações vulneráveis às pragas decorre do próprio sistema de monocultura, que, ao suprimir a diversidade biológica, deixa a natureza a mercê da epidemia consistente no aumento desproporcional das pragas, em virtude da exterminação dos inimigos naturais. A sanha do lucro insiste em se valer da cultura da remediação, cultura, esta, que vai aos poucos minando os anticorpos, seja do homem, seja da natureza de um modo geral.

13) Crítica à critica kelseniana referente à falta de consenso sobre o direito natural

A crítica kelseniana à falta de consenso quanto ao que seja objeto do Direito Natural serve mais à fixação de um ponto de polêmica, com vistas a firmar seu relativismo. Isto é, a crítica à falta de consenso no Direito Natural insere o discurso do relativismo kelseniano em meio a um ambiente preparado condizente à descrença de “um absoluto”. Tal descrença do absoluto é concomitante à promoção do relativismo kelseniano. A grande questão que se coloca é se, acaso refutada a descrença kelseniana no absoluto, pari passu estaria comprometida a sorte do discurso relativista? Isto porque, como afirmamos, o discurso relativista se dá por oposição à desvalorização da perspectiva do direito natural.
Quanto à crítica à descrença de Kelsen no absoluto moral (perspectiva do direito natural), há vários apontamentos a serem feitos.

De início, cumpre observar que o jusnaturalismo preparou terreno para o positivismo. Ou seja, a perspectiva do contrato social, isto é, de absolutização de um direito, no sentido de um direito-tipo que insere na condição cidadã (civilização por oposição à barbárie), deu as bases para a laicização do Estado. De que modo a doutrina do Contrato Social o fez? A perspectiva religiosa era a da salvação pessoal. Cada um tinha um contrato particular com Deus, para quem cabia prestar contas. Conforme a doutrina do Contrato Social, a perspectiva se alterou, pois que a perspectiva não era mais aquela solitária de cada qual com Deus, mas de cada um com os demais contratantes. Iniciou-se um regime de co-responsabilidade, de forma que a ambição a posse dos bens terrenos foi sufragada, tendo como limite não mais o veredicto divino, mas o direito do outro. Como cediço, o capitulo imediatamente posterior ao Contrato Social no palco da Revolução Francesa foi o Positivismo. Para Kelsen, ignorar o legado anterior é como dar um tiro no próprio pé. Ou seja, a perspectiva positivista se utilizou de uma base ideológica de consenso sobre o direito, de feição jusnaturalista. Quisesse Kelsen ser autenticamente relativista, teria criticado a tentativa natimorta (natimorta, porque o que caracteriza o melhor estilo de Rousseau não é o apelo à Razão, mas ao sentimento e à observação) de Rousseau de forjar um absoluto onde, em verdade, não havia lugar para um direito-tipo. (como em boa hora advertiu Leon Duguit) Pelo simples fato da sociedade ser, não um consenso, mas uma simples resultante de uma co-existência de forças, uma vez que impera o signo da diversidade da condição dos indivíduos. Ora, se os indivíduos são diferentes quanto a temperamento, condição intelectual e posses, como firmar um mote de forma a inculcar a obrigação de aderir ao pacto social? Porque todos deveriam aderir ao pacto social para a proteção de seus bens, sendo que nem todos os têm e, se os têm, o é em desigual proporção? A idéia da proteção dos bens é de cunho pragmático, pois que incita ao interesse, mas daí a ser prática, há uma considerável distância. Kelsen, simplesmente, fincou seu relativismo confortavelmente em solo jusnaturalista, pois do contrário não teria como sustentar a idéia de uma Ordem com base na convenção/pacto. Kelsen toma como ponto não sujeito a controvérsia o fato de nos obrigarmos, bem como o fato de existir uma ordem acima de nós, fatos, tais, que, a par de estarem muito longe de serem pacíficos, necessitam de um substrato referente à crença num absoluto.

Ainda que se abstraísse tal contradição no bojo do pensamento kelseniano, melhor sorte não assistiria ao pai do positivismo jurídico. A crítica à perspectiva de consenso no direito natural é uma crítica sem objeto. Isto porque Kelsen empreende uma tarefa inglória de criticar em bases cognitivistas a perspectiva do direito natural. Ora, não há como aplicar o método da observação cognitiva para aquilatar se há ou não consenso moral. Não há como reduzir o “Direito Natural” a um objeto de observação, tal como uma experiência no campo da ciência natural . No mesmo malogro incidiram os que tentaram menoscabar a Deus ou refutar seu poder, sob o argumento de que se Deus fosse mesmo sumamente bom, não teria permitido a existência do mal (Teodicéia). Kelsen não tem foro privilegiado para observar ou apreender cognitivamente se há ou não consenso sobre direitos. Ora, só o que é passível de observação é algo que se congela no tempo, que se crê informado pelo determinismo, pagando-se o preço muito alto, de isolar poucas variáveis, em meio a milhões de variáveis exorbitantes, em caótica e dinâmica relação. Todo o resto não é informado pelo determinismo. A pretensão cognitiva de Kelsen é um disparate. O preço mais alto que se paga, quiçá impossível de se pagar, por emitir pontos de vistas axiomáticos diz respeito ao estereotipo do homem-razão que emite tais pontos de vista. Isto é, Kelsen para firmar autoridade sobre a refutação do direito natural precisa vestir a máscara do homem estritamente informado pela razão. Voltamos a indagar: será que a razão é hábil a destrinchar a questão sobre a consistência ou não do direito natural? Como dissemos atrás, só o que é passível de cognição apriorística é uma realidade observável que se crê (ou pelo menos se convenciona) informada pelo determinismo (isto é, imobilizar o dinâmico; congelar uma realidade). O modelo de cientista que crê na perspectiva de isolar variáveis e fazer inferências determinísticas sobre a realidade, deve adotar a idéia de que é neutro (isto é, não interfere na experiência). Não pode interagir com a experiência, não pode ser natureza. Tem que estar fora da natureza. Não pode se relacionar com a natureza.
Não há como Kelsen pretender aquilatar a falta de consenso em um direito natural padrão, uma vez que não há como julgar, nem quem julgue tal, pois que cada indivíduo o é em meio a natureza. Os indivíduos não têm como se abstrair da natureza (isto é, adotar uma postura neutra, imparcial), mormente no campo moral. Os indivíduos são parciais. Kelsen nada poderia julgar (nem tampouco problematizar), nem sobre uma suposta falta de consenso, e nem muito menos sobre si e sobre o papel que desempenhou .

Quando, por exemplo, se diz haver falta de consenso ou divisor comum ante a evidência que uns preferem a propriedade privada e outros a propriedade coletiva ou mesmo a completa ausência de propriedade, não há em tal conclusão evidência alguma quanto à falta de consenso no direito natural. Isto porque o julgamento sobre qual seria a realidade conveniente (qual a forma ideal de propriedade...) não é uma especulação em busca de uma resposta. Isto é, a própria questão referente à forma ideal de propriedade é uma questão suspeita. Não pode tal questão pretender à unanimidade, como se fosse uma inocente e desinteressada busca da verdade. As questões que se levantam, no âmbito moral, estão longe de pretender a imparcialidade. De resto, são questões que nascem localizadas em um determinado episódio histórico, resultante de uma confluência específica de forças e perpetuam-se devido à tendência generalizante, própria do discurso. As inferências sobre realidade morais não podem ser especulativas, pois a condição moral do homem é de parte indissociável da natureza. Para o homem, especular sobre a natureza, seria como ter a prerrogativa de observá-la de fora, isto é, como realidade à parte. Isto é uma quimera. Quisesse Kelsen fazer inferências morais, não as tivesse feito sob a roupagem de uma razão insofismável, mas começando por si, admitindo sua condição desejante. Não há como fazer perguntas no âmbito moral, nem muito menos exigir respostas. As perguntas são situações do espírito desejante. As perguntas estão imbricadas na condição dinâmica e sintomática do indivíduo. As perguntas não são um absoluto. Não carregam em si o peso da verdade. Perguntar qual seria o conteúdo da moral ou de um tal Direito Natural não logra alcançar nenhum objeto fora do indivíduo. Tal pergunta, acaso admita alguma resposta, será alcançada na condição personalíssima do indivíduo, em meio a sua busca. Nunca como um objeto externo. A exigência sub-reptícia de Kelsen, que as pessoas tivessem uma mesma opinião, fato tal que viria a sufragar um determinado consenso em torno de um direito, é uma exigência irrealizável, pois Kelsen não tem foro para capitanear tal exigência, nem ser interlocutor de todas as vontades.

Por ora, discorremos sobre a descrença de Kelsen no absoluto moral (perspectiva do direito natural), já tendo abordado a questão do Contrato Social (jusnaturalismo) e da critica ao método cognitivista de avaliação da ordem moral. Resta dissertar sobre a formação da opinião através do ajuizamento ou sentenciamento. Aqui, exsurge a terceira crítica. Tal crítica tem relação com as duas anteriores, uma vez que decorre da pretensão cognitivista de asseverar os bens morais tais como objetos fossem, daí formando sentenças, por exemplo, a propriedade é privada; a propriedade é uma relação do homem com a natureza; José é inteligente. O ajuizar a realidade não significa atribuir algo a ela, mas simplesmente impor limites. Ajuizar é imputar, classificar. Qualquer sentença é uma limitação da possibilidade do ser. Dizer que a pedra é branca, se levado às últimas conseqüências, significa dizer que é proibido que seja de outra forma. Abstrair é tirar e nunca somar. O método do sentenciar carece do recorte da realidade, para que tenha aparência de verdade. Por exemplo, dizer que o ser humano é animal racional significa interditar qualquer nicho de irracionalidade que possa habitar no homem. Dizer que o ser humano é mortal, significa desacreditar de alguma condição espiritual possível. Ou seja, ao fazer a crítica da falta de consenso no direito natural, Kelsen se vale das sentenças, as quais não têm o condão de refutar nada. Dizer que não há consenso sobre a propriedade é tão vago como dizer que há consenso sobre a propriedade. Nenhuma das duas sentenças tem primazia para nomear magnitudes morais. Afinal, o que é propriedade? O que é a relação do homem com a natureza? É uma relação de apropriação? Se afirmativo, de quem para quem? Ainda que quiséssemos firmar polêmica sobre o direito de propriedade, dizendo não se tratar de um direito natural, em virtude da controvérsia sobre o conteúdo de tal direito, seria ingenuidade acreditar que tal polêmica se encontra no plano da idéia/intelecto. Ora, a controvérsia sobre o direito de propriedade é correlata à diversidade de temperamentos, grau de instrução e riqueza dos indivíduos. Não é uma polêmica em torno da disputa da verdade. Não é uma polêmica firmada no plano da razão. A questão da propriedade não é destacável da peculiaridade histórico/cultural de cada povo, isto é, de suas idiossincrasias. Não existe um direito-tipo de propriedade, como universal. A propriedade, sendo uma inferência sobre a natureza, possui nesta mesma natureza sua solução, considerando a interação dos indivíduos entre si, com o meio ambiente e, sobretudo, a relação dos indivíduos com sua própria natureza. Dizemos da própria natureza humana, pois afeto/desejo/pulsão é força e movimento, é vida, é biologia, é natureza . Se um homem utiliza uma pedra para observação científica e outro homem utiliza esta mesma pedra para matar outrem, acaso não são dois quadros naturais diversos, tendo como prelúdio a mesma composição (um homem e uma pedra)? Porque se vê genocídios por motivos étnicos, raciais e religiosos? Tal não seria uma questão sobre a natureza? Se alguns se julgam no direito de exterminar culturas alheias, tais exterminadores acaso não são detentores de uma imaginada propriedade sobre uma parcela da natureza? Aqueles que tentam egoisticamente monopolizar a propriedade, acaso não são açambarcadores da natureza? Há como se falar em propriedade como um direito destacado, isto é, sem referendá-la na natureza? Se compro uma cama de madeira, não estou pagando pelo oxigênio que deixou de existir? Logo, estou pagando pela morte da natureza. Tal propriedade é uma aniquilação de mim.

13.1. Kelsen e a tolerância considerada como diplomacia necessária à convivência em meio ao relativismo de valores.

Ao referir-se ao valor da tolerância, sem querer, Kelsen pugnava pela justiça, isto é, propugnava valores. A tolerância realmente não é tudo. Pode ser meramente um instrumento de administrar conflitos ... Mas..., a verdade ética -a pura justiça - quem realmente a detém? A tolerância já é um passo a caminho da desmistificação de verdades pré-concebidas, já é um passo a caminho de atribuir mais valor ao que se tem, ainda que não se tenha tudo, de desacreditar de fórmulas mágicas e poderosas. A cobrança da justiça é misto de vaidade e masoquismo. O ideal ético não é atingível pela cobrança. Isto é, como tivéssemos o poder de impor a nós mesmos a resposta, como se fossemos o senhor-pergunta, a ordenar uma resposta obediente e condizente com a realidade cristalina. Este é um comportamento possessivo que só leva a descaminhos. Nossas perguntas não podem ser desvinculadas de nossa condição humana, com todos seus senões, com todas suas idiossincrasias. Nossas perguntas não são objetivas, mas implicadas em nossa condição de ser desejante, de ser dramático. A razão não é um bastião de imparcialidade. A razão não ordena, pois se assim o fosse, nossa condição seria aprendida pela razão como objeto. Em assim sendo, não haveria lugar para qualquer experiência, uma vez que vivência afetiva e razão seriam realidades dispares

14) Sobre a tipificação dogmática das condutas.

14.1. A ilusão da tipificação das condutas no simulacro do “dever-ser”. Não existe o puro dever-ser, uma vez que é o “ser” o paradigma que informa a conduta desejável. Todo o bem emana do ser. Aquele que “deve-ser” não é propriamente o “ser”, mas uma simples hipótese abstrata.

Não dá para separar o dever-ser do ser, uma vez que não é possível se despojar do “ser”, para que possamos refletir sobre o dever-ser ideal. É uma quimera pensar este “ser” de fora, pois que inexorável e intrinsecamente “somos”. Nossas considerações sobre o mundo estão impregnadas de nossas motivações, que são da ordem do ser. Não dá para fazer uma suspensão do juízo a guisa de observarmos externamente nossos comportamentos, ou mesmo de refletir com neutralidade sobre o protótipo do ser-ideal (o protótipo de algo que não aconteceu, isto é, que só vive no mundo do ideal, é um puro dever-ser – é algo inconcebível – se algum tipo de dever-ser é possível, só pode sê-lo sob os auspícios de um “efetivo-ser” – aquele que ensina pelos exemplos e não pelo que obriga que os outros sejam). O protótipo do dever-ser se constrói sob o influxo da causalidade. Por exemplo, não se pode entender o não-matar como uma mera proibição formal de determinado comportamento. O não-matar não tem lastro numa proibição a priori, mas deflui de uma positividade do âmbito do ser (O Estado de Bondade ). Outrossim, não há como dizer “não-matar” como se fosse uma mera forma (o comportamento visto sob o prisma dos atos exteriores), porque o “matar” é somente uma conseqüência de um ser volitivo em ação. Não há um dever-ser como um puro comportamento destacado do “ser”. Em outras palavras, o “matar” ou não-matar” são considerações de foro íntimo de um indivíduo imbricado às suas motivações. O não-matar como proibição a priori é um relegar o homem a um estado de promiscuidade, é um desacreditar na índole boa do homem, é uma imposição externa que insere um gene mutante no homem. A criança não pode aprender à instância do puro concreto (o não-matar como interdição – como limite de conduta), mas sempre resguardando-lhe a inocência. Via de regra, a sociedade ocidental não dá exemplos de “não-matar” e as crianças inocentemente aprendem o “matar” como algo natural . Mesmo no plano da doutrina de Kelsen, o dever-ser não é uma pura idealidade, mas uma cria da noção de causalidade. A imputação é uma causalidade atribuída. Por vezes, mais perigosa do que o ser natural, pois que se trata de um ser imposto (ou de uma ilusão de...). O não-matar não pode existir como um tabu. O não-matar não se realiza como proibição a priori, mas no ser em realização, na via de sua promoção como ser personalíssimo (diga-se, uma pessoa resguardada em sua auto-estima). O cidadão maduro não tem em sua mente o tabu do não-matar, mas apenas o respeito psicológico, espiritual e afetivo pela vida. Aquele que entende o bem pelo princípio volitivo se liberta da lei. Não vê vantagem no ato de matar, não precisa temer a ameaça da pena imputada ao comportamento de matar, pois sente-se absolutamente seguro de que essa não e sua opção.

14.2. O logro da tentativa fenomenológica/racional de apreender a verdade como um objeto. O mito do observador neutro versus o ser motivado e agente.

Observe-se que quando afirmamos que a vontade necessita da crença psicológica da verdade, tal crença não pode distinguir entre o homem e o resto da natureza. Importa dizer, a crença do homem na verdade nunca se dá de forma sectária, isto é, como se o homem pudesse crer na verdade aprioristicamente. A verdade se dá para o homem como uma condição de ser no mundo. Por isto mesmo, qualquer tentativa, nos moldes fenomenológicos, de entabular tal verdade como se fosse uma unidade ou ícone é fadada ao insucesso. Não interessa encontrar a substância da verdade no homem. Qualquer recorte instantâneo de tal verdade é um mero espectro sem vida própria. Qualquer tentativa de captura de tal verdade significa uma estagnação. A verdade é uma dimensão só possível de ser alcançada personalisticamente, isto é, do homem para o homem, em sua vivência motivada (afetiva). A verdade nunca se coloca para o homem como um objeto que se destaca externamente a este homem. A busca do homem nunca pode ser um mero interesse estritamente motivado pela busca do saber ou, em outras palavras, uma especulação (uma metade em busca de um todo – uma curiosidade na busca de se completar no todo). O homem quando busca, já possui em si as matrizes. Não existe busca meramente motivada pelo locupletar-se no saber, tal como se o homem fosse um instrumento a serviço da verdade. O homem nunca pode implicar-se como se variável do processo fosse, sob pena de degradar-se de sua humanidade. Motivar a busca sob os auspícios de um “mais saber” é meramente uma tentativa de racionalizar sobre tal busca, ou justificá-la a guisa de legitimá-la. Como disse, a busca do homem se dá em meio aos seus motivos. O paradigma do homem científico, do senhor-verdade, senhor-neutralidade, é equivocado. O homem não vai ao mundo de mãos vazias, mas como ser que dramatiza/sintomatiza. Mesmo porque, do contrário, não haveria como suportar o peso da verdade. Seria um fardo impossível de suportar.

14.3. Qualquer condição/limite racional que se queira impor ao homem significa preconceito e discriminação. Não há rótulo que defina o homem, ainda que se queira defini-lo como humanidade. O homem simplesmente se expressa como ser de desejo e ação. A inerência tem precedência sobre a reflexão. A reflexão se alimenta da inerência.

A grande beleza que se vislumbra em tal processo, a sua magnitude, reside no fato de que o homem se completa não sob os auspícios da verdade ou de uma razão insofismável, de cuja posse daria ao homem a chave do tesouro, mas, como cediço, o homem se completa em sua humanidade, qualquer que seja o ponto da onde parta, qualquer que seja a condição do indivíduo, com poucas ou muitas letras, agressivo, tímido, pusilânime, retraído, extrovertido.

Definitivamente, a condição básica do homem é a de “ser desejante” e não há rótulo nenhum para tal condição . Exigir um rótulo para o eu-desejante do homem significa impor uma condição ao ingresso no status de cidadão, ou pelo saber, pela riqueza, educação, ou qualquer outro critério de estratificação social. O desejo coarctado por uma condição é um desejo reprimido. Aquele que pretende impor verdade a outrem traveste seu desejo de verdade, com o fito de submeter a vontade alheia. Aquele que se apresenta aos outros como arauto da verdade, sublima seu desejo, que é tão parcial, como de resto qualquer outro desejo . Qualquer perspectiva de disciplina sob a roupagem de um modelo cognitivista do que seja o “bem viver” não passa de uma forma de preconceito, de tolher vontades. Isto é, de uma perspectiva elitista, que intenta o monopólio da ordem a fim de impor seus desígnios.

14.4. O ser de desejo e ação é uma realidade. O denominado “Princípio da Efetividade Prática” significa que as pessoas interferem efetivamente na natureza. Os seres não estão à espera do esclarecimento teórico necessário (suspensão do juízo) para agir. Podem até se abeberar nos livros/sabenças, mas a escola é a Natureza. O patrimônio indelével é a humanidade que em nós habita. Está acima do saber instituído porque tem inerência. A natureza vive e respira ciência.

O que aqui se afirma, a propósito de não impor limites racionais às condutas, não deve dar margem a uma interpretação que apreenda o presente discurso como uma forma de permissivismo. Não cabe no presente contexto de indagação filosófica julgar esta ou aquela atitude, se boa ou má (por exemplo, a conduta do estrupador), mas simplesmente asseverar sob a condição do ser no mundo, de forma a resgatar sua humanidade. A condição apodítica não nos dá um Deus todo poderoso (acima de nós), nem tampouco nenhuma bandeira da verdade mais imorredoura que se queira bradar. A condição apodítica que garante a trajetória do homem a salvo da degradação é sua própria humanidade. Recapitulando, dissemos da condição diversa de cada homem (condição contingente Versus universal); da impossibilidade de estabelecer um julgamento a fim de separar bons e maus (impossibilidade de um paradigma cognitivo do que seja o “homem bom”); dissemos, ainda, sobre o que anima o homem à caminhada, não a busca da verdade, mas a condição desejante/dramática/afetiva do ser. Tais considerações são enfeixadas numa concepção de vida onde não há espaço para a imposição de uma ordem abstrata, que não passa de uma forma de julgamento. A ordem não é uma imposição, mas simplesmente a resolução do homem em sua humanidade. Não há como o homem ser na humanidade sem que se exprima como eu-desejante. Tentar definir o conteúdo desta humanidade significa querer impor ao homem uma forma de ser e, por conseqüência, subtraí-lo de sua condição desejante.

14.5. A Ordem não é uma imposição racional, mas resulta do somatório dos quereres de todos os indivíduos. A dignidade é uma conquista de cada qual. Não se trata de direito que se delega. Quanto muito, podemos contribuir para a dignidade alheia, mas, em hipótese alguma, fazer as vezes.

Não há ordem possível sem que o direito não seja efetivamente exercido. Não há ordem possível sem que haja expressão humana. A ordem nada mais é que o resultado da expressão cidadã dos seres desejantes . Dizer ordem significa dizer contribuição de cada qual com sua condição humana, de ser de expressão, de ser de afeto, de ser que se crê vivo e operante no mundo. A “dignidade humana” não é um standard, mas sempre a resultante do ser dos homens no mundo. A dignidade humana se lê (percebe – nunca se julga) nas entrelinhas da relação dinâmica e viva dos homens entre si, com todos os seus determinantes culturais e afetivos, idiossincrasias/atavismos . A dignidade humana é, concomitantemente, ação (vivo pela minha humanidade, caminho porque vivo minha humanidade como um movimento, um desejo) e percepção (onde morro é apenas uma sinalização apontando para o mau investimento, não uma punição – onde vivo é o espaço de realização de minha humanidade, de aceitação). A trajetória é percebida, nunca julgada. Não há como ter este insight através do julgamento.

Dignidade humana não é um direito recebido passivamente, tal uma garantia delegada por uma realeza caduca, mas uma conquista, uma expressão, a contribuição da cada qual com seu quinhão, a contribuição de cada qual com sua pessoalidade, com sua condição impar, única, irrepetível. Cada qual é único neste processo, detém em tal processo a humanidade como condição personalística. O ente apodítico não é abstrato. Ao contrário, habita como chama viva a humanidade de cada qual. Ninguém pode alienar tal humanidade ou se ver dela alienado. Não há como impor aos outros goela abaixo a humanidade. É uma conquista de cada qual. O que se pode fazer é doar humanidade através do seu exercício, receber humanidade de si e dos outros. Nunca julgar humanidade, impor humanidade, estabelecer humanidade, ordenar humanidade, conceituar humanidade.


15) A prática é uma condição inerente ao mundo e não o resultado de um constructo racional.

Não é o Ordenamento Jurídico, como construção racional, que insere a prática. O volver prático é uma condição inerente ao mundo. Querê-lo transformá-lo num mundo bom, deve ser tarefa a ser realizada em meio à condição prática do mundo. A pretensão de transformar a condição prática do mundo num julgamento, a demarcar os limites do certo/errado, é uma lobotomia, vez que, por pior que seja o mundo, o seu viés prático tem mais virtudes comparado à pretensão de reduzi-lo a objeto de teoria (verificação cognitiva). O discurso do “bom” só é bom mesmo se for prática .

15.1. O ato de conhecer tem uma gênese eminente prática. Não há a pura zetética, a pura especulação. O ser humano é em meio às suas motivações. Não existe o receptáculo racional da verdade. O homem é natureza viva.

Não há, para o sujeito, um interesse no mundo de ordem puramente cognitiva, pois, como dissemos, a fundamentação do interesse pelo mundo na base de procurar entendê-lo (especulação sobre o todo) é uma mera justificativa/racionalização. Ao nosso aviso tal racionalização não logra conceber como se dá o processo do interesse do homem pelo mundo (ou melhor, pela natureza). Em outras palavras, a racionalização de que a relação do homem com a natureza é balizada pela busca da verdade é uma mera suposição sem fundamento, pois que passa ao largo da verdadeira motivação que demove o interesse do homem pela natureza. Corolário daí a se extrair é o da impossibilidade de se extremar teoria e prática O ato de conhecer tem uma gênese eminentemente prática, motivacional.

15.2. O homem não conhece através da razão. O processo do homem é sobretudo dramático existencial. O homem vive suas contingências. O uso da razão é apenas quanto à reflexão das experiências já vividas, e não propriamente o descortinar do conhecimento em si. O descortinar do mundo é inerência, revelação, é o sempre novo, vivido na realidade natural.

Dizer do atributo inalienável de Deus significa que o saber não precisa ser resguardado, uma vez que Deus é fonte eterna de graça. É ingênuo considerar que a reflexão seja uma espécie de reconstrução do mundo (como se o mundo precisasse ser reconstruído peça por peça). A reflexão sempre se alimenta daquilo que é da ordem da inerência . A verdade habita na humanidade das pessoas, humanidade, esta, que existe de forma inerente.
A premissa básica é que o homem não pode almejar conhecer a natureza abdicando de sua natureza. E a natureza humana não é só raciocínio, é imaginação, é afeto, é drama, é acreditar-se protagonista, tal como se dá no sonho. A inteiração do homem com natureza não é a de um objeto captado externamente, mas o homem vive na natureza. Não pode dela se separar, mesmo que sob a justificativa de observá-la. O homem olha a natureza com os olhos da natureza, pois que também é natureza. A realidade é vivida para o homem sempre emotivamente. Dizer que o homem pode captar a pura realidade pelo viés racional, significa massacrar sua humanidade. Não há como o homem se relacionar com a natureza sem dramatizar, sem se acreditar protagonista do processo, uma vez que a natureza tem uma valoração inamovível em seus sentimentos. O drama e o sintoma não são condições patológicas. Qualquer um necessita de dramatizar/sintomatizar, pois que é uma condição básica de sua humanidade. Associar o drama/sintoma à doença/patologia é equivocado, pois que doentio, por contingência, é o estado, nunca o sintoma. O sintoma é uma realidade complexa, indelével no indivíduo. Do sintoma chega-se a cura pelo seu diagnóstico, logo não há como se confundir o sintoma com o espaço da interdição (desejo não permitido). A própria doença não é um lugar de interdição, não é o lugar do não permitido. A ferida não é um mal em si, mas é um sintoma orgânico, assim como existem sintomas afetivos. A doença, inserida num processo dialético, nunca pode ser guindada à condição de mal-em-si, mas é função de um processo personalístico do ser. Desmistificar ou desdemonizar a doença/sintoma, é um passo decisivo a bem da humanidade. É triste que a Ordem Contemporânea não tenha logrado erradicar as práticas maniqueístas (vide movimentos pela pena de morte, a prática cultural da malhação de Judas, o preconceito contra criminosos, terroristas). Em que pese o acúmulo do conhecimento, a sociedade se baseia em princípios equivocados, a exemplo do estabelecimento de lugares comuns, conforme a lógica dicotômica (bom-mau; aceito X não-aceito), a exemplo da política do “matar” , a exemplo do uso do interdito como meio de pedagogia social, e não de exemplos. Conforme já advertia Rousseau, o acúmulo de conhecimento não significa necessariamente progresso moral.

Como dissemos, o corolário é o da impossibilidade de se extremar teoria e prática. O ato de conhecer tem uma gênese eminentemente prática, motivacional Evidência disso, é que a criança não pode ser uma tabula rasa, pois nasce num mundo povoado de valores/preconceitos. Desde o ventre materno vive os sintomas e reações da mãe e as ocorrências do meio circundante. A constatação da impossibilidade de se extremar teoria e prática é a nós muito útil. Tenha-se como exemplo, a descoberta da quebra do átomo pelo Físico Einstein. Se tal saber apontasse para um progresso inexorável, deveríamos atrelar tal descoberta à paz e à civilização. Porque cargas d´água tal não acontece? Porque cargas d´água uns utilizam tal saber para fins pacíficos (por exemplo, aparelhos médicos), enquanto outros utilizam para fins bélicos (armas nucleares)? Ora, ilude-se aquele que acredita que o conhecimento é o apanágio da paz. É muito pueril acreditar que o conhecimento é uma força a me exigir disciplina. Nenhuma verdade pode se impor ao homem a modo de reger sua vida, porque esta é uma perspectiva subalterna. Seria pagar um preço muito caro delegar a um outro (ainda que verdade fosse...) a condução de nossas vidas, pois o princípio ético deve partir do indivíduo, deve ser intimamente querido. Querer uma verdade acima de nossa cabeça é querer um claustro para nos proteger de nossa própria torpeza. Some-se a isto que não existe este claustro. No exemplo dado, da descoberta da fissão nuclear, resta muito claro que o comportamento humano interfere na natureza. Isto é, o homem detém poder, é natureza em atuação. Não há lugar na natureza que nos coloque protegido da violência, pois que esta violência é uma predisposição já ínsita à natureza humana. Ainda que tal lugar existisse, se o ocupássemos, seríamos eremitas, abdicaríamos da natureza (que é abundante), para nos proteger de nossa própria hipocrisia. Querer que algo nos domine, tal como quiséssemos uma camisa de força, significa abdicar de nossa própria natureza, como última e sôfrega ratio para nos salvar de nossos pecados. Não há este determinismo que nos coloque a salvo de nós mesmos. O inimigo somos nós mesmos . Há que se reconhecer que o homem tem poder, que o homem pode errar, que pode, segundo seu desiderato, contribuir para o bem ou para o mal. Não há como nos livrar dos homens. Não há antídoto contra o mal alheio (ao menos, nenhum modelo repressivo conseguiu erradicar o crime). Caminhamos com nossas mazelas. Somos influências uns dos outros, de toda ordem. É este o nosso patrimônio. Qualquer perspectiva de pacificação social ou de atingir o patamar da civilização não pode se fincar num endeusamento da informação como pedra de toque para atingir tal fim. Devemos nos perceber poderosos, nos perceber dotados de capacidade de escolha, nos perceber como natureza. Em suma, não devemos renegar a capacidade de atuar sobre a natureza. Uma vez cientes de que não há como relutar contra o fato de que somos condutores de nosso destino, a descoberta da responsabilidade já é o começo da descoberta mais prazenteira de nossa humanidade. Remontando a crítica que se teceu à ética cristã, no sentido de ser uma perspectiva de anomia, ou de permissivismo, ou de não reagir ao mal, do que já caminhamos no presente livro, podemos cogitar que muito não compreendíamos da ética cristã e, com certeza, muito ainda temos a compreender.

15.3. Todo saber existe num ambiente político, e não meramente especulativo.

A fissão nuclear, como qualquer domínio de uma técnica ou conhecimento, o é dentro de um contexto de relação social, informado por valores, motivações, tal, como por exemplo, acontece com a política primeiro mundista do armamentismo sob a justificativa de segurança ou proteção contra o mal. Não há como inferir sobre a natureza, sem que nos percebamos como micro-cosmos detentores de poder. Não há como extremar teoria e prática, pois que o domínio social, atinente à motivação dos indivíduos, é essencialmente prático. Todo saber é valorado e isto é um mister exclusivamente humano. A vontade é um atributo humano e é esta vontade que considera as coisas do mundo (por ex, a fissão nuclear) e não uma razão pura. A razão pura é uma mera hipótese de uma vontade totalmente guiada pelo conhecimento (segundo tal perspectiva, o conhecer tenderia ao conhecido - uma espécie de determinismo da vontade enfeixado no conhecimento), que de sobejo já provamos ser irrealizável ou até inoportuna.

15.4. O direito não pode se valer de uma dogmática para firmar seu primado prático.

A impossibilidade de cindir prática e teoria deita inegáveis reflexos no âmbito do direito, o qual não pode se valer de uma Dogmática, para fundamentar seu primado prático. Já falamos do equívoco de considerar o conhecimento sobre um prisma estritamente teórico ou especulativo. Como dissemos, todo conhecimento insere-se num universo prático. Prático, não porque seja dogmático, mas porque é da índole humana valorar o conhecimento, dentro de um contexto de relações. Citamos o exemplo do curto percurso teórico referente à descoberta da quebra do átomo, a qual logo se insere num universo político, a exemplo dos fins vários para seu emprego (por ex, aparelhos médicos, usina de energia, bomba atômica) gerando perspectivas de sociabilidade no mais das vezes antagônicas.

Sobre qualquer ponto de vista que quisermos entabular a hipótese dogmática, sempre verificar-se-á sua insubsistência, vejamos: 1) fazendo a suspensão do juízo (isto é, limitando a demanda zetética, para efeito de poder dar ensejo a uma aplicação prática possível); 2) mesmo se quisermos levar a demanda zetética ao infinito (querer saber o porquê dos porquês...), cairemos no engodo da perspectiva da pura especulação, que diz respeito a um mundo aleatório, hipotético, irreal; 3) Se quisermos entabular a dogmática na base de um dualismo entre teoria (zetética) e prática, delegamo-nos um mundo cindido.

Definitivamente, o direito não se constrói sobre uma dogmática. É impossível impor limitações teóricas, que possam legitimar um primado prático qualquer. A história da humanidade é recheada de exemplos da tentativa de imposição de tal dogmática, a qual pode dizer-se também secularização, laicização ou positivação. Se deparamos com o preceito contido no Código Penal – roubar alguém – e daí remetemos à figura do Ladrão, dizemos que a dogmática necessita de impor limitações zetéticas para inculcar o preceito como um receptáculo de verdade. O protótipo do ladrão é, por assim, dizer um dogma, ao dizer dos dogmáticos, necessário à inculcação do preceito e à imposição da Ordem. Diriam, ainda, os dogmáticos, se enveredássemos por colocar sob questionamento toda e qualquer afirmação, não haveria qualquer possibilidade de um modus faciendi social e a desordem e o caos reinariam. Se deparássemos com a voz de autoridade do Policial, dizendo: - Pega Ladrão!, perplexos, indagaríamos socraticamente: O que é um ladrão? Ao nosso aviso, percebe-se que o argumento dogmático tem um forte sentido do apelo da ordem ou da segurança, contudo, deixando a questão da justiça de tal Ordem a descoberto.
O ponto de vista dogmático é falso, pois não há nenhum dito Doutor Dogmático ou nenhuma convenção (de doutos ou da plebe) que defina e limite o conceito de ladrão. Este limite zetético é uma miragem, pois efetivamente não existe. Não há nenhum conceito de ladrão, como uma substância ou res limitada ou finita. A limitação da idéia do que seja ladrão (ou o fetiche de ladrão que temos na cabeça) é um dado cultural, fruto de nossas próprias contingências, como pessoas e como quereres. Qualquer tentativa de limitação zetética, a guisa de tentar definir o que seja ladrão, sempre resultará em discriminação, segregação. Sempre será circunstanciada, face a um contexto contingente, no qual os comportamentos serão apreendidos como papéis sociais, cortando-se o cordão umbilical que de fato e de direito existe entre o comportamento e pessoa. As generalizações dogmáticas são hauridas ao preço de retirar o homem da natureza (elipse).

15.5. A limitação zetética operada pela dogmática só alcança termo numa perspectiva de justiça retributiva e informada pelo princípio repressivo. A dogmática é impotente para fomentar o princípio da promoção dos indivíduos. A ordem dogmática propõe um poder impessoal, isto é, não reconhece os indivíduos como célula de poder.

Até porque o conceito do que seja ladrão é subalterno ao fim prático que se colima, no caso, aplicar-lhe a pena. Este é o fim precípuo dogmático. O conceito de ladrão só uma condição para que se institua a permissão/prática social de impor-lhe a pena. A Ordem é hipócrita na medida em que é tirada do foco a indagação sobre o estado das pessoas, como condição para que tal Ordem funcione. Em tal Ordem, as pessoas não podem ser como tal (isto é, particularizadas em seu atributo personalístico), mas tem que ser abstraídas em standard´s, tal como o do ladrão. Como dissemos, a dogmática consegue ser prática nos efeitos (por ex, punir o crime), mas não nas causas, na medida em que refoge ao plano dogmático a promoção do indivíduo. A bem de abraçar a causa da segurança, o Ordenamento possui uma orientação repressiva (retributiva), ficando a mercê a questão da Ordem como distribuição da Justiça, como promoção do bem (Ordenamento proativo).
Não importa a condição da pessoa, no sentido de respeitá-la como tal, isto é, de que a pessoa é o bem social mais caro.
A condição da pessoa, como no exemplo dado, a circunstância do cometimento de um crime, só interessa a dogmática para afirmar seu primado prático referente à imposição da pena. A dogmática não se pretende prática no sentido de garantir a promoção das pessoas. Não existe a definição dogmática do criminoso, mas somente de um comportamento, a exemplo de matar e roubar. A dogmática é parcimoniosa em se referir aos indivíduos. Refere-se a seres estilizados no fetiche das condutas.
Resta claro que, para a dogmática, o preceito primário é a sanção no sentido da pena. Estabelecer que determinada conduta seja crime não é propriamente uma sanção (ainda que se tenha em conta a fundamentação da supremacia do querer estatal, através do primado da lei), mas simplesmente uma associação, uma analogia. Quando a lei diz que roubar é crime, não há nenhuma sanção aí, porque o Estado não pode sufragar condutas . As condutas estão umbilicalmente ligadas a pessoas reais. E nem tais pessoas podem sufragar suas condutas, pois que tais condutas se ligam ao processo sintomático/afetivo do ser. As condutas não são meros acidentes. Não podem ser dicotomizadas do ser. Mesmo que, imaginando, o Estado pudesse sufragar condutas, redundaria no desatino de sufragar o mal. Ao definir dogmaticamente o crime, estaria o Estado garantindo-lhe um lugar cativo.
Outra razão de maior relevo e simplicidade é que o Estado não pode sufragar condutas, porque tal seria transformar os indivíduos em autômatos, uma vez alienando dos indivíduos seu bem mais caro, a pessoalidade. Tal é da ordem do impossível. Ao tipificar as condutas, o Estado (como construção dogmática) tem a ilusão de imputar os indivíduos. Em meio a tal ilusão, a realidade continua abortada e a violência social campeia. A perversão recrudesce. A ilusão do Estado de nomear/imputar os indivíduos é um continuísmo perverso. Passa ao largo da necessidade dos indivíduos. O Estado deveria ter como premissa que não há como sufragar condutas, nomear os indivíduos. Os indivíduos são microcosmos, possuem autonomia. O Estado não fala, não age pelos indivíduos.

15.6. Uma vez compreendido que não é o Estado como construção racional que detém poder, mas os indivíduos, resta claro que o valor mais caro a perseguir é o da promoção dos indivíduos, único meio possível de edificação social.

Uma vez cediço que o Estado não imputa os indivíduos, uma vez reconhecida a autonomia vivencial, valorativa e efetiva dos indivíduos, exsurge a perspectiva de edificação social baseada na promoção dos indivíduos. Através da promoção, a dimensão prática é resgatada (dimensão, esta, que se perdeu na ilusão do “imputar condutas”). A promoção não se confunde com o desiderato dogmático de impor a prática. A promoção, ainda que singela, e, no mais das vezes, assistemática, possui efeito multiplicativo, de gerar condições apropriadas de existência. A promoção é diferente da imputação, na medida em que ao imputar pensamos referir-se ao indivíduo (imputado) e ao promover continuamos considerando que é o indivíduo o único senhor pelo seu destino, o único senhor de si. Promover é criar condições favoráveis e não propriamente querer falar pelos indivíduos.
A ação de promover não quer ocupar o locus de preceito primário. Preceito é um ente inanimado (uma abstração, um produto da razão). A ilusão dogmática de atribuir à pena a condição de preceito primário é potencializada pela idéia do Estado visto como monopolizador da violência (o Leviatã todo poderoso).

15.7. A pena a priori não quer dizer efetividade prática. Somente os indivíduos podem dar testemunho se um determinado processo social lhe foi ou não proveitoso. O verdadeiro testemunho do aprendizado se tem quando o indivíduo contribui para a edificação social, isto é, passa a ser um agente de mudança. São os indivíduos que detém soberania e constroem a sociedade. Se o Estado tem algum papel neste processo, deve atuar proativamente, informado pelo princípio da promoção dos indivíduos. Considerar que todos, indistintamente, são seres que necessitam de afeto e cuidados materiais e efetivamente traduzir tal máxima em atitudes práticas.

A pena, contrariamente ao almejado pelos dogmáticos, não tem efetividade prática. A priori, a pena é somente uma imposição ao indivíduo. Para que se pudesse falar em efetividade prática da pena, tal seria somente através do testemunho daqueles que a vivenciaram em si próprio. Não, propriamente, como castigo, mas como resgate da bondade imanente aos indivíduos, como resgate da humanidade. É o indivíduo que pode dizer de si. A pena não pode dizer por ele. O monopólio da pena é apenas uma ilusão de poder. O Estado burocrático, visto como o todo poderoso para impor penas/sanções está deveras longe do Estado efetivo, cujo poder se lê do exercício digno de cidadania dos indivíduos. Ou seja, a contribuição dos indivíduos (o direito se encontra em seu exercício pelo indivíduo – não há direito dormindo nos códigos e nas leis) é a própria expressão do Estado. A efetividade prática não se consegue sob os auspícios do almejado monopólio do poder pela violência. A efetividade prática só é possível através da realização da força como expressão de não-violência, mediante a contribuição de cada um dos atores sociais que se realiza em sua humanidade. O Leviatã se dissolve. Bom ou mal, só restam os indivíduos. Melhor que sejam bons. A força não violenta é expressão de vida, daquilo que não se degrada, que não morre. A natureza nos reserva seus frutos imorredouros. A natureza não violenta é singela criação, isto é, sem nenhum resquício de nostalgia.

A pergunta (problematização da hipótese dogmática) pode ser formulada nos seguintes termos: se os problemas/conflitos são contingentes (ocorrem no bojo de uma sociedade, de orientações múltiplas e por vezes antagônicas), como generalizar soluções standard´s, isto é, em que cada solução particular esteja em harmonia com a solução aos demais problemas. O que é um precedente? Um conflito? Porque muitos conflitos não chegam a judicializar-se? Isto é, a ganhar relevância jurídica... Pensar um conflito significa assumir todos os conflitos? Problematizar conflitos é uma mera ilusão especulativa, uma vez que tal expediente nada tem a ver com a promoção social ou justiça distributiva? Em suma, o que de prático tem o pensamento dogmático, senão de uma ilusão de que se está convencionando algo?!!!

Resta indagar, se a Dogmática não consegue se impor como Prática, como Ordem, qual a instância onde tal patamar prático pode ser conseguido? Embora pareça real, tal questão nunca pode se legitimar. A questão da efetividade prática não se resolve pelo método da problematização. É inconcebível iniciar o primado prático por uma cobrança (razão credora X corpo devedor). Porfiai pela porta estreita. A prática consiste no desfrutar o amor. A prática não se julga, mas se evidencia através dos seus frutos/exemplos. Às misérias que se nos acometem não cabe julgamento, mas compreensão, aceitação. O louco, o criminoso, o doente, não são párias sociais. Vivem no bojo da sociedade. São pérolas, cujo fardo que carregam aponta para as contradições sociais. Apontam para a violência social, a insalubridade mental e física, a degradação da natureza, os preconceitos, a falta de solidariedade.

15.8. A explicação sobre um fenômeno não quer dizer deter autoridade. A razão, quanto muito, pode ser um recorte/versão/reflexão do fenômeno. O fenômeno, como acontecer, está sempre irradiando vida. O direito não é concessão dos Doutos. A virtude não é atributo da razão. A virtude é uma vontade em realização (da ordem da revelação). A razão sempre polariza senões no seu discurso (deixa sombras). A razão se vale da contrariedade para se afirmar.

O mérito não cabe ao Douto que explica, mas àquele que fala por suas atitudes. Caber desmistificar o protótipo do jusfilósofo que se coloca como Autoridade, como se a opinião dos doutos tivesse o condão de firmar realidade. Tal modelo induz uma hierarquia, vincula o saber a um tal homem-razão, que de resto em nada difere dos demais seres sociais, porque não pode ocupar o lugar da razão que concebeu. Este lugar é inabitável. A virtude não habita na razão. A razão não tem lugar cativo. Não há a razão pura, acima do homem. O jusfilósofo, muitas das vezes, perpetua as contradições, ao tentar introjetar o lugar-comum da Ordem. O protótipo do ser ordeiro, o homem-padrão, não existe nem entre os Doutos Dogmáticos, que são, de resto, humanos e falíveis como qualquer outro.

A demanda que os Doutos que capitanearam o movimento histórico de secularização (o saber da imanência ou do desvendamento da natureza) se impuseram é duplamente indigesta, seja por tratar-se de uma cobrança travestida de aparência de ordenação prática, seja porque a razão não tem foro privilegiado para firmar realidade, na base de juízos.

A ciência moderna, num primeiro momento pensa se opor à ideologia religiosa, mas se vale dos mesmos paradigmas. Ao Santo infenso a qualquer pecado, a ciência reedita o Cientista Senhor-Autoridade, Senhor-Saber. Tais modelos são cruéis com as atribulações humanas, nunca logrando compreende-las, mas, ao contrário, sempre oferecendo um contraponto, visando com tal expediente garantir o poder em meio ao caos.
Em outras palavras, a perspectiva de um Ordenamento Jurídico, como pretensão de conter a realidade ou de firmar primado prático é megalomaníaca. Já seria um indelével avanço imunizar-se a estes arroubos grandiloqüentes. Talvez por um excessivo apelo retórico, falamos “grandiloquente”, o que de certa forma possui uma carga de preconceito contra os Doutos. Nada impede que os Doutos busquem respostas ou procurem resgatar um sentido de ordem. O que sobreleva é que o barro que amassamos é a nua e crua realidade, cujo sintoma não pode ser mascarado. As intrincadas construções teóricas, as estilizações, por vezes, criam castelos de um mundo paralelo, enquanto a realidade agoniza. A Ordem Social nunca poderá lograr ser reparadora ou remediadora. A Ordem Social sempre existiu e sempre existirá. A Ordem Social é de direito e não uma concessão dos Doutos. É ingênuo acreditar que o discurso instaura a Ordem Social. Como cediço, a Ordem Social é de direito, em qualquer circunstância considerada, na guerra, na paz, no terror, em qualquer tempo ou lugar. Esta é uma premissa básica, isto é, não querer ter a pretensão de desacreditar os fatos, sob os auspícios de uma retórica discursiva qualquer.

15.9. A prática não é a imposição racional do que se acredita “bom” (o bem imposto). A prática é de direito, isto é, pelo simples fato da pessoa existir. A prática é uma condição inerente ao indivíduo, de desfrutar da Ordem da Revelação. O contraponto prático da imposição racional é a realização do indivíduo em sua humanidade, confirmando o primado da prática (isto é, o monopólio empírico da realidade pelo amor).

Não é a dogmática que firma uma prática. A prática não é fruto de uma convenção ou secularização. A prática é imanente ao estado do ser. Dissemos em outro capítulo sobre o “princípio da efetividade prática”, a guisa de explicar que não é a razoabilidade racional que franqueia aos indivíduos poderem ser aceitos socialmente, mas simplesmente sua condição humana, qualquer que seja. Cada indivíduo, considerando suas circunstâncias (se pobre ou rico, letrado ou não), é um operador da realidade, na medida em que atua com sua vontade influindo sobre o todo. É muito ingênuo querer que os indivíduos se comportem previsivelmente ou segundo standard´s, se a própria Ordem estabelecida (ou Ordem burocrática) não dá o divisor comum e mesmo não tem como dá-lo . O protótipo racional do homem justo será sempre uma ilusão a serviço de uma dominação. Nunca se prestará a edificar. Sempre gerará cismas, dissensões, acirramento de ânimos.
Se afirmamos que a prática é imanente ao estado do ser, não temos a pretensão de mostrar a face de tal prática, mas apenas de, uma vez constatada tal evidência (qual seja, de que todos os atores sociais influem sobre a realidade), preconizar como única perspectiva de pacificação social, aquela que dê crédito aos indivíduos, no sentido de, abstraindo suas circunstâncias, resgatar sua inerência prática, no sentido de uma humanidade. A prática não se consegue no sentido de uma retaliação das imperfeições/idiossincrasias (ideológicas, religiosas, perversões, aberrações,...), mas simplesmente a prática se funde na humanidade do homem. A centelha da humanidade qualquer um a tem. Este é o norte para onde o barco deve ser guiado. Há que se abolir qualquer ponto de vista maniqueísta. Há que se resgatar a moral cristã da redenção, entre outras passagens bíblicas, plasmada na parábola do filho pródigo. Moral, esta, mal entendida como anomia.

A prática no sentido de pacificação se consegue na humanização. Tal humanização não é concessão da razão, mas é uma graça acessível a qualquer um. O direito se realiza na humanidade ou na natureza boa das pessoas. O direito não vive nas fórmulas ou abstrações. Simplesmente, o direito é vivido em cada um, na medida em que se realiza. O direito à vida não é um ícone ou um modelo platônico que funcione como instância reguladora da garantia do gozo respectivo. O direito à vida é um germe ínsito a natureza dos indivíduos. Nem carece de ser explicitado. O direito à vida tem sua maior magnitude na expressão do ser, onde se logra alcançar o patamar qualitativo. O direito à vida vai muito além à proteção da incolumidade física das pessoas. É uma realização íntima de cada qual, mediante a descoberta/percepção de sua auto-estima. Percebemos o que é real, julgamos o que queremos que seja realidade. O julgamento sempre nos distancia da realidade. Quando se diz que morremos na carne e vivemos no espírito, tal não precisa ser um prenuncio do fim dos tempos. Pode ser vivido no presente, mediante a realização de nossa dignidade/humanidade, quando nos reconhecemos na natureza. Viver na matéria é se confinar a ser sempre produto, criado e não criador.

15.10. A violência não deflui da índole má das pessoas. A violência é fruto da miséria.

As organizações criminosas (Robin Hood terrorista) cooptam a massa daqueles que vivem em condições miseráveis. O pobre coitado que vende cd pirata não é apenas um subempregado, que vive em condições precárias, mas alguém que carreia recursos para o crime organizado, para o terrorismo, para lavagem de dinheiro, para a indústria de armamentos. Trata-se da tradicional hipocrisia política que teima em não ver a repercussão que a condição dos miseráveis tem para a vida de todos. Não devemos ter medo do outro porque ele é uma potência tendente a violência (tal como de uma arma se tratasse), mas sim das suas condições inapropriadas, estas, verdadeiramente, geradoras de violência. A miséria gera violência. O homem não é o lobo do homem – o homem tem índole boa – humanidade.

15.11. O dinheiro não disciplina as relações sociais. Tal tarefa cabe ao homem. Valorar a natureza, além de ser o direito do homem, é um mister familiar, pois que o homem desfruta das relações naturais. O gozo da natureza pelo homem é experiência. O homem é senhor do seu destino: pode deliberar entre viver ou não num ambiente poluído. O exemplo do cortador de lenha.

Tomemos um exemplo prático da miséria gerada pela violência. Volva-se ao caso do cortador de lenha que vive de subsistência nos vazios demográficos e observe-se o quanto ele interfere na economia. Calcule-se o valor de uma árvore cortada em termos do patrimônio natural: o tempo que demora a crescer, sua função no meio ambiente, suas eventuais propriedades curadoras, suas eventuais contribuições para a ciência, etc. Se fossemos calcular o patrimônio natural em expressões monetárias, certamente tal árvore haveria de valer muito. É bem certo que os 10 reais recebidos pelo cortador de lenha em termos econômicos vale muito mais que o salário de uma vida toda recebido por um executivo. No exemplo, os R$ 10,00 representaram o corte da valiosa arvora, considerando seu valor natural. Além do monopólio do valor pelo dinheiro ser uma quimera, o mais grave é que tal pretenso monopólio de valor pelo dinheiro é um crime ostensivo contra a natureza. O dinheiro finge representar o valor das coisas, sem se dignar cuidar das implicações naturais. O dinheiro não valora a boa ou má intenção de alguém, pois que o dinheiro não tem vida própria. Pertence ao homem a intenção de edificar ou destruir. Não cabe ao dinheiro a disciplina da Ordem Social. A humanidade deve atentar para o fato de que o valor é ínsito ao homem. Cabe ao homem o mister de, em sua natureza, encontra a justa medida do valor. Devemos nos assenhorear de nossas determinações, pois que, para o bem ou para o mal, somos responsáveis pelo descortino da natureza.

16) Crítica ao dogma liberal de que “todo direito tem uma ação que o assegura”.

16.1. A expressão pecuniária do direito não logra valorar as relações naturais. O “dizer o direito” não é um monopólio do Poder Judiciário, seja porque o direito não pode ser dito topicamente, seja porque a premência dos direitos reclama atitude proativa de todos os quadrantes sociais (a contrario sensu do Princípio da Inércia do Poder Judiciário), seja porque o direito é aquele efetivamente exercido pelo povo. O povo, não somente diz o direito, mas faz/acontece o direito. A interpretação do direito pelo Poder Judiciário não se confunde com este mister. O povo detém a soberania.

No contexto liberal, via de regra, o direito se confunde com sua expressão econômica (diga-se, pecuniária). A legitimação extraordinária “soluciona” o aspecto da instrumentalização do direito, mas não resolve a problemática da concepção do direito. Os direitos difusos para que passíveis de ganhar contornos de um objeto a pretender (pedido e fundamento jurídico) sofrem o empecilho da fetichização pecuniária (monopólio de valor pela pecúnia) do direito. Infelizmente, o direito costuma se confundir com sua expressão pecuniária. Em verdade, todo direito é ponderável economicamente, na medida em que é uma relação natural. Mas de econômico, não se vá querer reduzi-lo à padronização pecuniária. Isto, pelo simples motivo de que as demandas efetivamente existem independente de sua valoração pecuniária apriorística. O menor de rua, a criança que bebe água do esgoto a céu aberto , tudo isto reclama direitos e tais questões não costumam chegar ao Judiciário para que diga o direito, porque não há um interesse econômico apriorístico a defender, e nem uma persona que incorpore estes direitos.

O menor de rua não é o protótipo do ser social que vá ao Judiciário reclamar direitos. Sua realidade é bem outra. Mas daí não podemos concluir que não interfira na Ordem Social, ou, como muitos querem, que esteja a margem da cidadania. O menor de rua está nas vísceras do Estado, no cerne da cidadania. É o maior dos cidadãos, pois mora na casa do Estado, na res pública, na rua. O menor de rua não faz petitórios nos tribunais, mas por todo canto ouvimos sua grita. É o pulsar de suas veias que lutam contra a inanição, é a violência que se expressa nas íntimas contradições de sua existência. É o incômodo que causa aos outros, ditos, bem aquinhoados, que, no mais das vezes, administram estes prejuízos, os quais, insensatamente, julgam periféricos. É a moeda da carestia que se dá a sobejo. É o que resta do que não se usa..., é o que encarece, inflaciona, estupora as tensões sociais.

O menor de rua possui direito a uma família e a condições materiais e afetivas de existência, mas daí não se vá querer concluir que não tem direito a ser menor de rua. A condição do menor de rua, malgrado todas as omissões do Estado e da Sociedade, sob o prisma do menor, é lícita . Se é menor de rua, é porque na circunstância em que se encontra é a melhor alternativa que se lhe apraz. Não deve ser objeto de preconceito. O Estado e a Sociedade devem ser sensíveis à condição dos menores de rua, não para lhes impingir a pecha do anátema, mas para fomentar a migração destes direitos mancos para direitos dignos (inserção na cidadania). Muitas das ações que firmam o direito não se expressam em pecúnia (a dignidade do homem não tem preço; a solidariedade social, no mais das vezes, depende de simples intenções, do sorriso, da superação de preconceitos).
Além da problemática referente ao pedido, outro problema se coloca como obstáculo à concepção dos direitos difusos: diz respeito ao provimento jurisdicional, isto é, o dizer os direitos difusos. Por exemplo, sabemos de sobejo ser um direito difuso o “direito a um meio ambiente sadio”. Porém, como o Poder Judiciário, através da jurisdictio, torna tal direito efetivo ou esculpi-lhe os contornos...!...? Ao fixar de antemão tal direito, corre o risco o Poder Judiciário de mumificá-lo no fetiche pecuniário. Como poderá o Judiciário prover em prol do meio ambiente sadio, em meio a um mundo recheado de interesses econômicos? Dir-se-á que a expressão pecuniária não é tão funesta quanto se pensa, vez que o infrator da natureza (por ex, a fábrica poluidora do ar), sendo multado, sente a dor do prejuízo pecuniário sofrido. Além de tal prejuízo poder ser já de antemão contabilizado, mediante o tal cálculo hedonístico (aliás, o mesmo cálculo utilizado na elisão de tributos), não fosse isso, observa-se que as infrações à natureza não se restringem ao âmbito privado, mas tem magnitude pública, e ocorrem ao sabor do volver das relações dinâmicas em todos os quadrantes do planeta. O judiciário, uma vez provocado, resolve questões localizadas, com contornos econômicos definidos, mas ainda está muito aquém de sopesar os problemas com maior espectro de abrangência. O vetusto Princípio da Inércia do Poder Judiciário deve ser confrontado face aos reclamos do paradigma holístico. Que dizer de tantas questões complexas, as quais não podem ser imputadas individualizadamente a esta ou aquela empresa, posto decorrerem de fenômenos coletivos?!!! Por exemplo, o acúmulo de lixo caseiro no leito dos rios e mares, o nível de ruído nas grandes cidades, a desproporção das riquezas e o correspondente desigual acesso aos bens de consumo, o enfartamento do trânsito nas grandes cidades. Com certeza, tais questões não se resolvem, apenas, mediante a equalização pecuniária (lucro-prejuízo; cálculo hedonístico), mas adentram no âmbito ético, requerem questionamento de valores, posturas altruístas, abandono de preconceitos, superação de comodismos (no mais das vezes imediatistas), mudança de hábitos, investimento em educação, pesquisa (por ex, o uso de materiais alternativos não poluentes), comunicação de boa qualidade e procedência certificada.
Face à índole dinâmica das relações , se não for por bem, será por mal , tal como já aliás prenunciado pelo “Aquecimento Global”. O liberalismo deve ser redefinido, pois que não há uma liberdade ao alvedrio de cada um, somente coarctada pelo Leviatã senhor do cálculo hedonístico, mas sim uma experiência que ocorre sob limites, peculiaridade do mundo encarnado (a natureza é um sistema fechado, onde cada ato espraia uma implicação no todo – o corte de uma árvore é importante para o todo; um ato de ódio, de violenta natureza, é importante para o todo – o homem é um ser gregário plasmado na natureza). O dever-ser como pura abstração é uma quimera. O dever-ser não enfeixa em si limites éticos ou mesmo meramente legais. Somente a experiência, em natureza, produz frutos. Simplesmente, por ser a única realidade. Simplesmente, por ser a natureza o espaço de comunicação, de relações reais e efetivas. A economia, em síntese, é a natureza que contém em si a ação e a reação, o que permite a alma viver a experiência efetiva, não se degradar na ilusão da ação transgressora, mas, antes, colher os frutos de cada ato, vintém-por-vintém.
No contexto do homem em natureza, o Judiciário não monopoliza o “dizer o direito”, pois que não há o tal monopólio do dever-ser. Todos dizem o direito, pois que todos exercem direitos, todos fruem experiência em estado de natureza. Cada qual é um ser interveniente, e não há ninguém que possa falar por todos e muito menos agir por todos. O dogma do monopólio da jurisdição deve ser revisto face aos reclamos do Terceiro Milênio. Mas do que na interpretação, que é um ato de entendimento, o direito e a justiça se perfectibilizam na vontade de todos, na ordem prática, na simples vida natural, ao singelo acontecer de cada dia . Reduzir as relações jurídicas ao monopólio da interpretação significa querer alienar os homens de sua intimidade com o direito. O que faz direito não é a leitura/interpretação/reflexão das relações, mas o direito em ato, o gozo do direito pela singular expressão de cada qual em correlação com os demais. Uma das críticas que se faz à perspectiva de democracia pura é de que seria necessário contemporizá-la com o princípio elitista , sob pena de, em assim não fazendo, não haver governo possível. De que a educação é um bem caro a qualquer sistema que se proponha justo, não resta a menor dúvida. Porém, a educação não pode ser monopólio do Rei-Filósofo, mas deve ser haurida em meio à Ordem Prática, balizada pelos valores da humildade e solidariedade . Qualquer tipo de casta, seja intelectual, de riquezas, de forças, conduz a uma polarização indevida. O mundo, sendo reto ou torto, é para ser entendido como tal. Não se deve querer endireitá-lo, sob a justificativa de ser torto. O erro não é a justificativa para sua superação/julgamento/estigmatização, mas apenas a oportunidade singular de acertar. As mazelas/violências do mundo não ocupam o espaço da não-verdade, mas são jóias para aqueles realmente comprometidos com a realização do bem. A interpretação, como mola de alavancar o progresso das relações jurídicas, é uma super-afetação do entendimento, ficando sub-reptícia a vontade de ordem elitista. A interpretação como meio de monopolizar as relações, tem como pano de frente o apelo à razão e como pano de fundo o desejo de poder. É a vontade velada do poder.

17) O estado de natureza não é a antítese da vida em sociedade. O direito o é por natureza e não por instituição. A natureza é a relação econômica por excelência.

17.1. O direito reduzido a uma relação de consumo individual é somente aparência de direito. O direito deve ter magnitude gregária, para que, mediante a contribuição de todos, possa se aquilatar todos os seus matizes.

O direito não pode sofrer uma apreensão linear. Na vida em sociedade, há uma coligação/inteiração de direitos, de molde a se implicarem mutuamente, tal como se um jogo de xadrez se tratasse. O direito de propriedade, como direito estanque, é uma excrescência . A propaganda do direito veiculado como um direito individualizável, isto é, passível de ser adquirido de forma estanque, costuma ludibriar, inclusive, o contingente de indivíduos mais suscetível à propaganda de massa. A propaganda concebe, mediante apelos suasórios, a perspectiva de propriedade dos bens comercializados como um lugar social de reconhecimento, um plus afetivo, um agrado midiático. Os apelos suasórios, tal a imagem, a veiculação da beleza, a manipulação do prazer, a introjeção de valores, vendem o produto, como se dotado de poderes míticos. Por força da magia da propaganda, do apelo à imaginação, o produto é humanizado . A propaganda dos direitos adquiridos, na fórmula de um direito de propriedade, serve à manutenção do status quo. Polariza as relações de modo que a sociedade seja orientada para o consumo, isto é, o consumo como ideal de realização e ascensão social. Outros valores, tal a solidariedade social, a união de esforços para debelar problemas (por ex, a racionalização da destinação do lixo, a superpopulação dos automóveis nas cidades) deveriam ser tão ou mais enfatizados, até porque é uma perspectiva muito maior de realização e união entre as pessoas o investimento em tais condutas, isto é, muito além do prazer obtido por uma solitária relação de consumo. O direito, em essência, é algo dinâmico e sempre pode ser otimizado, conforme o grau de engajamento das pessoas e comunicação entre si e com o meio ambiente. O verdadeiro direito, não se delega, se conquista . Não há direito pronto e acabado. Trata-se de um processo de construção da cidadania, de conquista da dignidade.

O direito não pode ser tratado linearmente. Volva-se a problemática dos menores de rua. Como exprimir o direito cidadão de um menor de rua?! . Tem direito a uma família que lhe dê afeto e condições econômicas enquanto dependente for; tem direito a escola, lazer e participação social. Como se vê este direito não pode ser apreendido só economicamente (mesmo o aspecto econômico não se confunde com pecúnia, uma vez que envolve fatores volitivos, psicológicos, motivacionais, afetivos, enfim, humanos, tal o homem que planta a semente, comercia, consome, seus propósitos, estado de ânimo, tal o professor que leciona, seu grau de satisfação e auto-estima, bem como os demais atores sociais em íntima e profusa correlação – questões como nível de auto estima e meio ambiente sadio são econômicas e prescindem da representação/medição pecuniária), uma vez dizer respeito a vida em sociedade da qual todos somos ao mesmo tempo centro de imputação de direitos e deveres, uns em relação com os outros. Não é passível de congelar (ou colocar num quadro com moldura) o direito do menor de rua. A questão do menor de rua envolve tantas outras questões, tais como analfabetismo, desemprego, planejamento familiar, preconceitos (ocupar lugares-comuns – preconceitos contra criminosos, prostitutas, dependentes de drogas), estrutura assistencial do estado (participação ou não da sociedade em tal estrutura).

17.2. É impossível a instituição da Ordem, pois que a Ordem já é ínsita à natureza.

É impossível ordem secularizada, pois não pode haver determinismo no antecedente. O plantio é eventual, mas a colheita é certa. Não há como exigir a priori a conduta reta. A disciplina é um processo, isto é, necessita da experiência. Quando se diz que a colheita é certa, não se está afirmando uma vedação do cometimento de ilícitos, nem que os ilícitos invariavelmente serão punidos, mas queremos dizer que não há como alcançar a felicidade pela via da violência. Plantar violência significa colher violência. Ademais, o determinismo no antecedente significa suprimir todo o arbítrio do indivíduo, a lhe transformar num autômato. O determinismo no conseqüente não é propriamente uma imposição causal, mas uma inexorabilidade natural. Qualquer comportamento carrega os germes do destino que se lhe antolha. O determinismo no conseqüente não é uma atribuição legal, um mandamento positivado, mas uma vontade atuante e soberana.

Reflita-se sobre o dogma segundo o qual “o crime não aparece para o Estado enquanto não ao menos tentado”. O plantio é eventual, mas a colheita, ainda que no plano da intenção (colheita informada por uma prudência apodítica, metafísica, informada pelo amor) é certa. Tal dogma não é da ordem do ser, mas apenas serve à amarração do sistema. Com certeza, ainda que no plano da pura intenção, o comportamento dos indivíduos influencia e tem inegáveis reflexos para o direito. Os operadores do direito, infelizmente, introjetam a técnica jurídica tal como de postulados humanitários se tratassem. Com tal atitude, ocorre uma mão de via oposta à humanidade, ou seja, a banalização dos valores sociais, o recrudescimento dos lugares-comuns. Isto porque a falta de comunicação, a falta de reflexão, amofinam. Por exemplo, a banalização do Princípio da ampla defesa pode conduzir a idéia de ser lícito apagar provas, comportamento, este, que navega na esfera da ilicitude. Outra evidência do que afirmamos (isto é, da banalização do uso imponderado dos dogmas jurídicos) é a referente à compreensão equivocada da máxima segundo a qual “ninguém é declarado culpado enquanto não provado”. Tal máxima nada (ou pouco) tem a ver com o valor humanitário da proteção aos indivíduos, mas é um dogma necessário à operacionalização fática do direito. Em outras palavras, dizer que um crime não foi provado não significa afirmar peremptoriamente que o indivíduo não cometeu o ilícito, mas apenas que o Estado-Juiz não pode lhe impor a pena. O indivíduo, no seu íntimo, sabe se cometeu ou não determinada conduta, bem como carrega consigo toda a gama de motivações que lhe esculpem o caráter, condição singular, esta, que escapa a qualquer tipificação legal de conduta. Em suma, os arroubos de afetação humanitária, utilizado nos petitórios perante os Tribunais, que vinculam o dogma (“ninguém é declarado culpado enquanto não provado”) à presunção da inocência, fazem tabula rasa do fato de que a conduta não se confunde com a prova. Como dissemos, aquele que cometeu um ilícito criminal, ainda que não provado perante os tribunais, terá por destino ser o confidente de seus próprios atos, bem como continuará compartilhando do convívio social, como de resto muitas ocorrências que ficam à reboque da judicialização continuarão dando frutos por muito tempo. Vide os casos domésticos de abuso/vitimização sexual. Não por acaso, a generalização indevida dos dogmas, tal o da ampla defesa, vem de encontro a práticas mercenárias de advocacia, ou, mesmo, do juiz, que acaba se valendo dos dogmas como atalho indevido, isto é, como forma de acomodação diante de certas questões que deveriam ser equacionadas e enfrentadas com outra disposição de ânimo. Um exemplo do que se afirma, diz respeito ao completo descrédito do sistema penitenciário, ou da disciplina ministrada ao menor infrator, dentre inúmeros outros exemplos. O sistema de “dizer o direito” no caso concreto apenas apanha um fragmento débil da realidade, a qual requer outra disposição de ânimo, para que aja e efetivo exercício da jurisdição. De viva memória, chamamos a atenção para mais um dogma de amarração do sistema, que precisa ser revisto e reavaliado ante as exigências dos tempos hodiernos, o dogma da inércia do poder judiciário. Não há mais como se comprazer em fingir dizer o direito no caso concreto, quando a realidade passa ao largo. Imagino como deva ser embaraçoso a um Juiz aplicar uma pena, a qual se sabe que não terá nenhum fim socializante, mas agravador da pústula a céu aberto.


18) O direito não existe no produto. A natureza detém direito.

18.1. A questão sobre o direito é ou não autopoiético não tem relevância. Direito e economia são apenas categorias racionais. A realidade não gravita em torno das categorias racionais. A relação econômica se encontra na natureza. O valor é ínsito à natureza.

A economia não é linear (início; meio e fim). O mito do produto ou bem de consumo como ícones alienam o homem da condição de epicentro da economia. A inserção do homem na economia se dá em meio à experienciação de valores e preconceitos. Os valores nada mais são que a expressão da relação com a natureza. A economia não é linear, seja porque o produto não pode ser objetivado fora do homem; seja porque o homem é natureza (e por natureza entenda-se vida atuante, em movimento, impossível de ser conceptualizada estaticamente). O homem não pode ser reduzido a um produto. Constitui uma perspectiva degradante que o homem trate seu prazer como objeto de consumo (por ex, a droga utilizada para induzir prazer; a gula; o sexo como vício). O prazer não pode ser generalizado, nem tampouco pode o homem tratar seu prazer como objeto de si, sob pena de aniquilar sua condição humana. No homem, o desejo está umbilicalmente ligado à gênese dramático/afetiva. Não há como mercadejar com o prazer e o desejo, como se objetos de consumo fossem. O homem deve sempre ter autonomia para ponderar as relações econômicas. Não pode se sujeitar à condição de mero depositário/consumidor.
Dizer que a economia não é linear também significa dizer que não é uma instituição, pois não há como impor regras econômicas invariáveis (conforme a estrutura de um dever-ser). A economia deve ser entendida dinamicamente, conforme o acontecer das relações naturais. A gênese da economia é o âmbito de comunicação próprio das relações naturais. Querer reduzir a economia à instituição significa querer secar a fonte do acontecer natural.

Economia é uma experiência intima de cada ser humano. Por exemplo, um brinquedo, pode ser analisado sob o aspecto valorativo de diversas maneiras: 1) o brinquedo feito pela própria criança com materiais recicláveis; 2) o brinquedo como fetiche introjetado na criança pela mídia do comércio; 3) o brinquedo visto como a matéria prima extraída da natureza; 4) o brinquedo tornado lixo; 5) o brinquedo como expressão de solidariedade (doação de brinquedos); 6) o brinquedo como bem voluptuário; 7) o brinquedo como incitação à violência (por ex, réplica de armas); 8) o brinquedo e a função pedagógica de educar, etc. Não é o dinheiro que evoca o valor, nem a ele cabe a função de organizar. Pode-se, quanto muito, dizer que o homem, no afã do social viver (estabelecer relações), se utiliza do dinheiro. Seja como for, o homem é o centro de imputação da arquitetura, avaliação e gozo da economia. A delegação ao dinheiro do atributo de ente econômico é uma afronta direta à dignidade humana. O dinheiro é um mero valor de referência e, caso, abstraído dos valores ínsitos na natureza, nada resta. A economia não existe no dinheiro, mas nas relações naturais, cujo homem é um dos partícipes, uma vez que também é natureza, mormente no que tange a sua vontade. A economia na natureza pode ser expressar independente do homem (conquanto os respectivos eventos naturais sejam valorados pelo homem), como, por exemplo, o caso de terremotos e vendavais. O fato de o homem valorá-los como prejuízo, não retira da natureza a condição de manifestar-se como relação econômica em-si. Pode valorar de outras formas, por ex, o interesse científico na explicação dos eventos naturais; a abordagem filosófica sobre a mudança e efemeridade das relações materiais. Poder-se-ia argumentar que a natureza abstraída de um âmbito de sociabilidade humana não tem nenhuma expressão econômica, reduzindo-se a um nada. Tal assertiva baseia-se no entendimento doutrinário de que a economia é um mister exclusivamente humano (pertencente ao âmbito ético/político). Ao nosso aviso, tal polarização entre o âmbito estritamente natural e o âmbito de valoração humana de nada serve. Há íntima confluência entre homem e natureza e o dinamismo natural induz o homem a uma constante reavaliação das relações naturais. Volva-se, por exemplo, a indagação sobre a existência ou não de vida em Galáxias distantes ou a indagação sobre se o universo durará ou não pela eternidade. Pergunta-se: - tais questões são de interesse para o homem? Não há como responder aprioristicamente, mas apenas focá-las como possíveis. As valorações são sempre possíveis e não se enquadram numa bitola do tipo certo-errado (refutação ao princípio do terceiro excluído). O fato do homem, por exemplo, valorar o terremoto como prejuízo, não retira o ensejo (passado, presente ou futuro) de outras valorações possíveis. E note-se que as valorações não são monopólio deste ou daquele homem, encarnado ou desencarnado. As valorações só encontram termo num espaço social de solidariedade e respeito (isto é, não podem ser submetidas a julgamento). A guisa de pôr as coisas em termos quanto à relação entre homem e natureza, a única conclusão é a seguinte: o homem é natureza, pois que a natureza é a única com condição de albergar o locus moral. A moral não pode derivar da razão, pois que na razão não existe habitação. A moral não é um ente abstrato, mas a expressão da natureza. Mora-se na natureza e o homem, sendo natureza, mora em si. O homem é o ar que respira. A alegria ou tristeza que sente manifesta-se em sua natureza física, mental e espiritual. O espírito não é a antítese da natureza e da matéria. A idéia, como pura abstração, não tem vida própria. Não existe doença da razão, pois que a razão não tem sintoma. Os preconceitos em face daqueles que pensam diferente, que abraçam outros credos, não tem como alvo a razão, mas pessoas reais/naturais, que respiram, amam, odeiam, sentem e se expressam como humanidade. Por exemplo, não se pode reduzir o preconceito aos terroristas como sendo de índole puramente ideológica. O pensar diferente nada mais é que valorar diferente as relações naturais e não, propriamente, um mister puramente racional. Por ex, a polêmica sobre o celibato ou não dos membros da religião, é uma questão atinente à valoração de um evento natural (a relação sexual entre pessoas). O dogma religioso do sexo/prazer como pecado é uma forma de valorar um evento natural, entre outras valorações possíveis. O dogma religioso não tem como açambarcar para si o valor. Isto é, nada obsta a possibilidade de valorar o sexo/prazer como não pecado, ou até de coexistir pecado e não-pecado, ou, mesmo, qualquer outra possibilidade. As relações naturais não são monopólio deste ou daquele. Ao contrário, são experienciadas por todos, num âmbito de inter-relação, em meio ao dinamismo próprio de tais relações. O ato sexual pode ser para um ensejo de terror, para outro de tara e para um terceiro motivo de realização.

O direito vinculado à economia, numa primeira vista, remete a uma concepção heterônoma de lei. Trata-se da célebre questão condizente à autonomia ou não do Direito (autopoiese). A vinculação entre direito e economia também suscita perspectivas hedonistas e materialistas, tal o marxismo, o liberalismo. Considerando a perspectiva holística e sistêmica que abraçamos, nada há que diferencie direito e economia, simplesmente por tratar-se de entes abstratos, isto é, sem vida própria. Logo, não há distinções a fazer (que os possa diferenciar e indivdidualizar – não importa se a mediação se dá pelo estabelecimento de semelhanças ou diferenças), posto serem produtos racionais. A economia, como ente categorial, não possui definição apriorística. Não há o ente econômico, tal como de objeto se tratasse. Economia é relação natural, em contínuo acontecer e produzir frutos. Considerando a tônica da presente obra, qualquer realidade sempre deve se reportar ao homem. Se algum direito há, deve existir no homem, em sua essência. Se o ente econômico é conjecturável, o é no homem e para o homem, em sua implicação de homem-natureza. Conforme entendemos, o direito não vive em definições estáticas (tal, o direito à vida, positivado nos códigos), mas está implicado na expressão do homem. Não há o exercício do direito pelo homem dicotomizado, como se fosse o homem a exercitar um algo diverso dele. O exercício da expressão da humanidade pelo homem é o próprio direito. Faz direito. Acontece o direito. O maior direito de cada um de nós é contribuir para o arranjo social, é dar de si. Conforme a doutrina cristã de que é dando que se recebe. Direito concedido, institucionalizado, é apenas aparência de direito. O direito vive no homem. Pensando sobre economia, a tônica é a mesma. Não há a tal superestrutura acima dos homens. Se possível falar em economia, deve existir de forma inerente no homem (como cediço, nossa concepção é avessa a institucionalizações). A economia não existe nos produtos, pois que os produtos são efeitos e não causas . Produtor somente é o homem no expoente de ser. Economia não pode ser exprimida na máxima hedonística da busca do prazer, pois que a busca do prazer não é uma linearidade (não se pode falar no resíduo orgânico do prazer, como instância humana dotada de autonomia), nem tampouco define a essência do homem (até porque não se trata de definir o homem, mas de apenas perceber aquilo que de sua inerência se revela).
Tentar atingir o cerne da economia é tarefa vã. Não há um objeto que possa ocupar o epicentro da economia. O ouro, o diamante, o dinheiro, até as obras de arte, dependendo das concepções estéticas e emocionais em voga, podem ser objeto de desinteresse estimativo. Nada há que possua valor absoluto e cuja medida possa valer pela coisa. A estimação das coisas/objetos em dinheiro não passa de um malogro analógico, pois que as coisas devem valer por si e enquanto em relação dinâmica com o homem. A relação da coisa com o homem é de tal forma que a coisa não se porta como objeto para o homem e nem tampouco o homem pode ser reduzido a objeto da coisa. Um carro que se possua, com certeza, pode trazer prazer a alguém, mas tal aferição (isto é, do grau de prazer que a coisa proporciona ao seu proprietário) é impossível de ser realizada mediante uma análise atomizada sujeito/coisa. A relação dos homens com os objetos é parte indissociável da natureza, com todos os matizes possíveis desta natureza, inclusive, no que toca ao aspecto dinâmico do ser do homem. A humanidade do homem conclama-o a todo instante a tornar-se sujeito de sua existência. Um carro que aparentemente me propicie prazer é para o espelho de minha alma a poluição produzida por este carro, os dejetos de lixo produzido pelo carro lançados no meio ambiente, o combustível gasto ao longo dos anos, a política das multinacionais que fabricam veículos, os incidentes/acidentes ocorridos no trânsito, a super população de automóveis, e tantas quantas outras implicações imagináveis ou inimagináveis. Como se pode constatar, a prática de valorizar aprioristicamente as coisas, bem como sua relação com os indivíduos é uma ilusão criada pelo modelo consumista. A sociedade deveria estar muito mais preparada para pensar as relações que se espraiam para além de uma relação de aquisição/consumo inicial. A sociedade é conformada para o consumo. Não existe uma perspectiva prática para lidar com o lixo, com o fator de obsolescência das coisas. O consumismo vende a ilusão do novo, do produto individualizado. Não há um cérebro eletrônico que possa conjuminar o que os processos em massa causam a natureza, a super população de automóveis, o lixo lançado na água dos rios, a produção de material bélico. A atuação do homem na natureza é dinâmica, não há uma cartilha de como utilizar um veículo de forma correta, ou dos limites éticos para o uso de uma arma. Os objetos são valorados e tornados úteis conforme a conveniência de cada qual, bem como suas tendências afetivas e aptidões. O padrão científico tradicional é impotente para ponderar o resultado da interação homem/objeto porque procede a uma análise estática e dicotomizada, pinçando os casos ocorrentes e buscando dissecá-los em sua individualidade . Nada há a determinar aí, pois enquanto buscamos compreender algo, na ilusão de que este algo possa se tornar imóvel/congelado para que o percebamos em sua integralidade, o mundo todo está em movimento, inclusive o próprio objeto estudado e, principalmente, os indivíduos vivem em movimento. Não há determinismo causal, simplesmente por não poder ser entabulado numa equação . Da experiência mais complexa que se queira suscitar, se acaso possível ter êxito em tal experiência, não seria através do controle e medição das variáveis . Teríamos que buscar outra metodologia, pois que o controle e medição de variáveis é um engano de representar a coisa por uma definição que se acredite constante. Tudo está em interação dinâmica com tudo.

Quem é que pode aquilatar o resultado da relação dos homens entre si e com as coisas, sejam elas produtos de consumo ou não? É ingênuo considerar que são os cientistas em seus laboratórios ou os sapientíssimos que o fazem. Tal apreensão é realizada por cada ser humano em meio às relações que estabelece na sua trajetória de vida. A criança da favela que brinca com a água do esgoto o faz, o milionário que tem seu apartamento encravado em Nova York o faz. Será que o apartamento do milionário vale mais que a água do esgoto em céu aberto? Depende do prisma de observação. Mesmo que se eleja este ou aquele prisma, a natureza continuará sem esquinas, abundante na sua capilaridade de tudo comunicar. A relação de propriedade não é um valor em si, mas simplesmente uma forma de expressar a natureza desta ou daquela maneira. Se a relação de propriedade é um algo, este algo é uma objetivação da natureza. Diga-se, em meio a todas outras objetivações possíveis, até porque a propriedade não logra deter o monopólio sobre a natureza. A propriedade é apenas um poder. Daí a sua relatividade. Uma potência tendente a ato, mas que muda de feição ao sabor da entropia do sistema. As relações de poder são de toda ordem e em intima interação. O proprietário solitário em sua ilha de comodidade e conveniência é um mito. Não há como querer controlar/represar a natureza. O homem é para a natureza. Ainda que aparentemente nos contentemos com uma relação de posse, apropriar a natureza não é o norte. O norte é que a natureza nos seja familiar, que a conquistemos como de direito, que a natureza sorria em nossa própria natureza. A natureza existe em nós desde o início e só pode ser desfrutada caso nos permitamos percorrê-la (isto é, não poupá-la). O ser na morte é o ser completamente natural, sem poder valer-se de qualquer reserva, sem poder apegar-se na posse do que quer que seja e, paradoxalmente, completamente integrado à natureza.
Outra razão de maior monta aponta para o fracasso de se pretender analisar de forma determinística ou técnica a relação dos homens entre si e com o restante da natureza. Como já afirmamos, a realidade prática da relação homem/meio ambiente nos impede de impor limites racionais a conduta humana, seja porque não há ninguém que açambarque a natureza de tal molde a determinar as condutas alheias (o senhor-razão), seja porque a imposição de limites aos outros é uma forma manca de educar (a imposição de limites o é para aqueles que julgamos transgressores – impomos limites àqueles que julgamos inconvenientes – limitar está a serviço de um modelo de ordem dominante, isto é, que se quer impor sobre outras perspectivas). É ilusório tentar controlar a conduta alheia. Qualquer perspectiva de educação se dá sob o signo da liberdade. A experiência do mundo se dá por uma confluência de quereres e relação multifacetada do homem com o meio. Cada ator social pensa ser senhor do seu querer, mas como é suscetível... Seu humor muda ao talante de uma simples notícia televisiva de algum acontecimento funesto... No mais das vezes, temos a ilusão teórica de deter uma certa sabença, mas como somos inacabados... Nossos hábitos, nossos quereres tanto periclitam... Contribuímos para a poluição do planeta. Nossos hábitos mais comezinhos são um tanto questionáveis. Não sabemos o significado do outro para nós, ora amamos, ora odiamos, ora nos sentimos vulneráveis perante o mundo, ora agressores, ora vítimas...

Dissemos que a criança da favela que brinca com a água do esgoto e o milionário que tem seu apartamento encravado em Nova York, ambos, experienciam a natureza, entendida como relação dos homens entre si e com o com o meio ambiente. Indagamos se o apartamento do milionário vale mais que a água do esgoto em céu aberto? Sob um prisma monetário de aferição somos tentados a declarar que o Apartamento do milionário vale mais que a água do esgoto. Se, por hipótese, tal água de esgoto causar doenças de tal magnitude que implique num custo elevado aos cofres estatais com saúde pública, a equação se inverte, desafiando outra resposta, isto é, a de que a água do esgoto é mais cara. Tal exemplo é deveras didático a guisa de demonstrar que a dinheiro como medida de valor das coisas é uma cópia imperfeita da verdadeira relação econômica, qual seja, aquela que se expressa nas relações naturais. A má qualidade do ar que se respira, a poluição dos rios, a violência urbana e, do outro lado, a salubridade mental, o ambiente familiar sadio, entre bons e maus exemplos, são expressões econômicas que não carecem do “mediador dinheiro” para que se possa captar a ínsita idéia de valor. Isto é, trata-se de um valor que deflui da coisa e não um valor convencionado. O valor monetário das coisas implica uma idéia de linearidade (com as polaridades do mais e do menos) e de monopólio da coisa pelo dinheiro. À coisa é agregado o valor monetário, o qual, por convenção, torna-se inerente à coisa. Tal concepção de Ordem é por demais irrefletida, pois se um carro custa, por hipótese, R$ 100.000,00 no comércio, tal um direito inconteste do seu fabricante de exigir o preço do automóvel para que o aliene, quem é que paga a poluição causada pela emissão de gases deste carro, o desgaste nas estradas, o ferro velho do carro-cadáver e todas as demais implicações econômicas (diga-se, as relações naturais) advindas da colocação do automóvel em circulação? Quem é que paga a depreciação dos recursos naturais de petróleo e ferro e demais substâncias extraídas da natureza para fabricar e fazer rodar o carro? Poder-se-á argumentar que os fabricantes pagam tributos, relação que se constitui na contrapartida (isto é, o ônus) necessária para que se legitime o desiderato hedonista de lucro do fabricante de automotores. Sem pretender negar tal evidência, o intuito que nos anima é o de tecer considerações filosóficas a guisa de livrar o ente econômico do fetiche que o mitificou, da ritualização que o modelo liberal impôs ao ente econômico e, sobretudo, da escravização do ser humano ao papel moeda. Como se a sociedade necessitasse de regras que guiassem a humanidade, tal o dinheiro elevado à condição de mediador das relações sociais. A economia inculcada no fetiche da mercadoria, na ilusão de que as coisas valem pelo que custam, na idéia de que as únicas relações efetivas são as de consumo (a ideologia segundo a qual para ser feliz devemos acumular capital e adquirir bens de consumo) é um espectro sem vida, o qual cegamente cultuamos. A economia/valor é algo muito mais simples, que existe nas relações naturais, sem necessidade de mediação/representação por outrem. A coisa fala por si. A economia é dinâmica, é o terrorismo acolá, o terremoto na Ásia, a fome, a peste, a tristeza, a alegria, a boa ou má qualidade de vida, a satisfação ou insatisfação no trabalho, bem ou mal, tudo conspira numa economia em constante acontecer dinâmico. É pura ilusão a idéia do produto pronto e acabado, isto é, que se mantém sempre idêntico a si. Tal produto, quanto muito, só pode pretender ocupar o reino da lógica formal, pois que tudo está em movimento e o homem, sendo natureza, transforma a todo momento o meio em que vive. Não há nenhuma perspectiva prática de se efetivar uma prudência baseada em limites naturais, tal como querido por países ditos desenvolvidos, de estabelecer limites para o percentual de desmatamento ou de poluição dos mares e dos rios. Tal limite só seria possível se eliminássemos todos os homens da face da terra e deixássemos a natureza entregue ao puro determinismo, o que significa um disparate/paradoxo (isto é, a torpeza de se eliminar o homem, que em sua humanidade, é sagrado/divino).

Não cabe determinismo na natureza humana porque a natureza humana é animada/viva, é dotada de alma. Se possível uma prudência tal se dá quando querida pelo homem, isto é, sem que se porfie em impor limites ao estigmatizado bárbaro (o dito homem incivilizado), sob a justificativa de conter seus excessos, mas investindo em sua humanidade (qualquer homem, por mais miserável sua condição contingente, é em essência humanidade), em sua dignidade de ele-homem multiplicar o bem através de suas ações. Impor limites ao inculto significa simplesmente reprimi-lo, na ilusão de poder conter suas atitudes, como se estivéssemos lidando com um objeto sujeito às leis do determinismo. Os exemplos do que se afirma são fartos. Basta, por exemplo, lançar os olhos para o terrorismo, a bem de verificar o quanto o mundo dito civilizado tem sido impotente em lidar com tal fenômeno, através dos meios tradicionais de repressão ao crime. Cabe atentar para o fato de não ser nossa pretensão fazer apologia da desgraça, pois que, assim como nos valemos da miséria (moral e material) para ilustrar nosso ponto de vista, igualmente, os signos de paz e realização servem para exemplificar que a natureza humana não é regida por um determinismo prudencial. Por exemplo, uma simples Orquestra de música numa pequena cidade do interior pode implicar numa mudança radical na qualidade de vida dos habitantes, sem que se ateste terem sido a isto obrigados. A música da orquestra vive na humanidade das pessoas. A música ganha sentido na humanidade/afeto, e, como tal, é expressão de dignidade. Da mesma forma, o terrorismo também é expressão de uma humanidade, que por contingências se expressa em violência. Diga-se, não de uma animalidade ou demonização (visão maniqueísta), tal como se tal estado fosse uma natureza corrompida, mas simplesmente de uma humanidade que agoniza em sofrimento.