sábado, 13 de setembro de 2014

Reflexões sobre a corporalidade na Música Modal sob inspiração dos textos de Miguel Wisnick e Mayra Montenegro



Os textos escolhidos pela Cátedra, o Som e o Sentido, de Miguel Wisnick, e a Dissertação de Mestrado da Profª Mayra Montenegro, foram recebidos com muita alegria, uma vez que, além de oportunos à reflexão e discussão sobre o objeto da presente disciplina, vêm de encontro às minhas expectativas pessoais em torno do meu projeto musical e, assim, servindo de importante subsídio à abertura do leque de possibilidades que povoam minhas inquietações e anseios.
            Tratam da música numa dimensão ampla, antropológica e até misteriosa, como soe acontecer com a própria origem do universo, bem como a perquirição sobre o significado de nossas vidas e o sentido das coisas, para os quais não há resposta acabada.
Tal perspectiva da música, inserida na arte numa dimensão que intencionalmente quer extrapolar a perspectiva do produto de consumo, ainda que, confessamente, tenhamos de reconhecer nossos próprios condicionamentos culturais ocidentais, esta dita perspectiva é bastante oportuna à ampliação da consciência, ao resgate da corporalidade imbricada no ritmo, como condição imanente do homem, enfim, considero como um caminho de conexão/amálgama das partes segmentadas pelo destempo de nossa herança cultural – o dualismo corpo-espírito, desserviço do qual somos tributários em nossa trajetória ascética inculcada pelos valores religiosos, que por sua vez beberam na fonte do estoicismo e até perverteram os desígnios de tal corrente filosófica, para os fins propedêuticos religiosos.
Constitui palavra de ordem, resgatar o nobre sentido do fazer musical, de conectar corpo, afeto e espiritualidade, de religar o homem ao cosmos, de fazer-nos inteiros de sentido, ainda que não se pretenda com isso colocar um ponto final em nossas estórias, as quais, permeadas pelo mistério, pelo constante devir, constituem singularidades incólumes a definições prévias. A estória não se conta no dia anterior, mas simplesmente se vive, ainda que com suas aparentes incongruências e sem-sentidos.
Aliás, as incongruências, irracionalidades e sem-sentidos se, num dado momento, nos soam estranhas, pode acontecer de ganhar a luz de nossa razão e afeto noutro momento. Tal condição dialética do ser, de navegar entre o claro e o obscuro, de singrar numa balada de nascer-morrer, construir, desconstruir, vem de encontro às reflexões operadas nos textos sugeridos entre “som e ruído”, música e não-música”. A final o que é o sentido? É matéria que vamos buscar na natureza?, é palpável? e, se palpável, de que consistência é?
Em fim, o sentido é algo a nós imposto por forças externas ou, ao contrário, há uma auto-determinação do ser na construção do sentido ou, ainda, a terceira opção, para a qual o sentido é construído na interação e sensibilização mútua do homem com o meio?
Nesta caminhada de construção do sentido, como muito bem pontuou Miguel Wisnick, a concepção estética do fazer musical sofre alterações, e o que, no passado não se concebia como música, mas como ruído, é aceito e cultuado no presente.
Entendo que esta construção de sentido é uma experiência pessoal. Dom Quixote viu nos Moinhos de Vento inimigos gigantes. Nós leitores da obra literária de Cervantes, vemos em Dom Quixote a figura do anti-herói beirando à loucura, mas é preciso convocar cada qual de nós a tirarmos nossas máscaras, pois cotidianamente somos Dom Quixote, pelo simples motivo que o ser humano é o ser da dramatização, isto é, que capta e percebe o mundo não como um dado objetivo e unívoco para todos, mas como carregado de sentidos e valores e os nossos sonhos nos remetem a seres fantasmagóricos, príncipes, princesas e gigantes, daí nos revelando os nossos íntimos sentimentos, dos quais nossa consciência teima em se distanciar.
A perspectiva idealista do homem importa concluir que a música e o seu sentido é uma construção humana. Ninguém tem autoridade de dizer o que é e o que não é música ou arte, pois a estética é dotada de uma substância eminentemente moral. Uma pessoa apaixonada, por exemplo, pode ouvir no vento a canção de seu amor e o mesmo vento, por sua vez, pode ter para outro conotação diferente. Já, um terceiro pode viver um deleite musical numa atitude meramente cerebral, isto é, sem que nada no mundo externo o incite a tal. A teoria psicológica da Gestalt Terapia de Frederick Perls muito bem observou quanto à capacidade humana de dar sentido e intencionalidade à forma, e que tal intencionalidade varia conforme as experiências e suscetibilidades de cada qual, o que ora se exemplifica pela magistral passagem do filme “O Pequeno Príncipe”, quando ele pede ao aviador para desenhar um carneiro, e o Pequeno Príncipe sai interpretando as várias tentativas do aviador. Cada um de nós é um pintor dos quadros que deparamos na vida, posto que as nossas telas mentais são carregadas de drama e sentido.
O texto de Miguel Wisnick traz à tona a música modal e seu caráter sacrificial. Que dizer da ingênua pretensão do homem do Século XX de pensar o caráter sacrificial da música tribal como arcaísmo, como dogma ultrapassado pela sucessão dos fatos históricos. O homem de antanho sacrificava semelhantes em rituais antropofágicos e os de hoje produzem armas letais tendo como escopo o fim de lucrar, de acumular grana, de obter poder. Não consigo enxergar um fio de racionalidade no volver dos fatos históricos ou, em outras palavras, uma caminhada linear para a evolução ou depuração das misérias.
Penso que não dá para substituir uma cultura por outra, tal como se troca de vestimenta. A cultura de nossos antepassados é um precioso patrimônio e, ao contrário do que se pode querer supor, tal cultura é um legado presente em nosso código genético, em nossos arquétipos sensoriais.
Identifico-me muito com o caráter sacrificial presente na música modal, pois entendo a perspectiva do “rito” como um resgate de valores, em meio ao signo de descrença dos nossos tempos. A era do produto e do consumo atribui poderes míticos à mercadoria e, nesta trama, o ser humano fica muito desvalorizado, pois não é reconhecido em seus atributos próprios. Em nossos tempos, não se cultiva ou não se estimula a expressão do ser, senão quando tal expressão possa resultar em dividendos econômicos para a indústria midiática. Daí, surgem os ídolos criados pelos meios de comunicação e um séquito de milhares de seguidores, cuja expressão está contida no fenômeno de massa, tal como se dá também com as torcidas de times de futebol.
Ao fazer apologia da música ritual modal, enxergo nela um atributo coletivista e solidário, pois a participação no ritual não está condicionada ao mérito próprio, mas ao simples participar de uma comunidade. Também, a música modal é uma via que permite o acesso, pois que o fazer musical não está atrelado ao paradigma do certo/errado, (próprio da cultura da música erudito, onde somente aqueles que dominam a técnica podem participar), pois que o fazer musical modal tem na corporalidade e no ritmo sua centralidade, e o caráter ritual vinculado a um credo umbilicalmente ligado à natureza (panteísmo), permite que o ritual seja desejado e vivido com o corpo e espírito presentes.
A criança iniciada no rito não é iniciada pelo ensino da aparência exterior dos movimentos, ritmos, falas, mas sim através do “desejar junto”, tal como numa relação pai-filho, quando o aprender da palavra “mamãe” vem implicada numa relação afetiva, onde o outro “a mãe” é reconhecido como tal, e daí entendido o significado da palavra.
Como disse atrás, vivemos numa era de grande busca ansiosa por bens que nos preencham e, paradoxalmente, há um vazio valorativo, pois que não sabemos no quê, nem porquê acreditar.
Considero bastante oportuno refletir sobre nossa história e observar o quanto a cultura ocidental massacrou e dizimou as sociedades tribais, e, por outro lado, o quanto tais culturas tribais têm a nos oferecer, dada a experiência da íntima relação com a natureza dos povos tribais e a convivência pacífica. Não, por outro motivo, a cultura africana é rica em ritmos, tanto na complexidade, como na expressão desses ritmos, posto veicularem desígnios os mais diversos, e daí evocando estados de espíritos ao sabor da intencionalidade do que se comunica.
Entendo que a música no meio ritual tribal nunca se confina a um mero produto, pois o ritual é uma totalidade vinculada ao credo, ao perpetuar uma expressão e sentido de vida e, por tal motivo, está fórmula se diferencia daquela ator-expectador da sociedade ocidental, pois no ritual todos são atores que representam o real. Não há lugar para expectadores e ninguém fica privado de participar
Ainda que assumindo que minha fala possa conter uma carga de idealização sobre um “outro romantizado” e “tornado perfeito à medida de meu desejo utópico”, considero que qualquer cultura possui seus códigos morais e tramas e modos de relacionamento peculiares, mas tal não me impede de expressar um sintoma muito bem conhecido deste momento presente, posto que atinente à minha experiência vivida. E tal sintoma, como dito antes, diz com a descrença dos tempos presentes, onde o homem, segregado da natureza, anseia por acreditar em algo que o religue ao telos, anseia em ter direito à participação social pela simples condição humana, isto é, sem necessitar de carta de apresentação.

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