"Cultura e Credo", por Othon da Viola, inspirado na Inocent´arte
Cultura
sem credo não é cultura. Produzir cultura é desejar um algo que não pode ser
considerado como um fim externo a si. Por isto, a cultura como objeto de estudo
é uma especulação sobre a cultura, o que não se confunde com a cultura
propriamente dita. A cultura tem desígnios e demandas próprias.
O ritual nas sociedades tribais é um
ótimo exemplo de um acontecer que não pode ser destacado do sentido que o grupo
lhe atribui, sob pena de, encarado como especialidade (por ex, o dançar, o
ritmo, a música, considerados como meros produtos), desfigurar-se.
Toda cultura envolve um drama, algo
que se acredita e imagina na ótica lúdica e afetiva do sujeito.
Toda razão que intente colocar
freios a este drama, sob as justificativas supostamente bem intencionadas, está
fadada ao simulacro da ignorância.
Há milhares de anos tribos
antropofágicas sacrificavam homens em meio a suas práticas simbióticas de comunicação
com o sagrado e de ritualização da relação com a natureza pelas boas colheitas.
Dir-se-á tratar-se de uma prática bárbara e irracional. Contemporaneamente,
fabricam-se armas em prol do lucro, do hedonismo econômico, e daí a se indagar
sobre o que há de mais civilizado nisto comparado à mencionada prática ritual
antropofágica. Os de outrora ainda tinham o beneplácito da crença, os de hoje
sabem muito bem (ou deveriam saber) das violentas implicações das armas de fogo
a serviço da acumulação de riquezas. Sem querer colocar um ponto final na
questão, a prática atual me parece mais promíscua, pois que a busca do lucro teima
em se autojustificar, por qualquer meio que seja.
Considerando esta relação entre
credo e cultura, no Brasil, assim como em outros povos, muitas manifestações
culturais se sedimentaram no ambiente da relação com o sagrado; manifestações,
que, embora se denominem folclóricas, não é este o melhor jargão para tais
manifestações. Digo isto, porque folclore, no sentido de alegoria ou fantasia,
é a maior antítese e afronta ao desiderato daqueles que exprimem sua relação
com a cultura através do credo. A “Folia de Reis” ou a “Dança de São Gonçalo”,
por exemplo, são práticas onde a simbolização do poder, a volição, a construção
de sentido, são fundamentais, e funcionam como pedra de toque, de geração em
geração, no perpetuar de tais práticas.
É ingênuo a instituição-religião
considerar que pode por ferros ao imaginário, ou, em outras palavras,
monopolizar a ritualização do acesso ao sagrado, ou, de outro lado, o Estado
Laico, acreditar que a razão dita “universal” (ou que se pretenda a tanto) pode
fazer às vezes da experiência pessoal de cada indivíduo de construir a sua
própria estória.
Recorrentemente,
neste nosso Brasil de muitos horizontes e quereres, a pedagogia se restringe ao
credo religioso, passado pela tradição, ou, mesmo, perpetuado pelo culto formal
dos templos. Se aqueles inseridos formalmente na economia e submetidos a uma
educação escolar possuem necessidade de simbolizar e vivenciar o poder, o mesmo
se dá com este imenso Brasil, cujos habitantes, no mais das vezes, tem na busca
de sustento e relação com o sagrado sua pedagogia.
Por isso, acredito que seja heresia
querer rotular a cultura popular de “folclore” ou “arte ingênua”, pois que efetivamente
a cultura popular revela um segmento social que detém poder, constrói sentido e
faz história.
Vejo
em nossas manifestações populares de acesso ao sagrado muita sabedoria, seja
porque são práticas grupais (acesso democrático) e comunicativas (isto é, nas
quais a relação com o outro, a representação e caráter público são inerentes),
seja porque vivenciam tal relação com o sagrado corporalmente (ao contrário, de
muitas práticas equivocadas, onde o acesso ao sagrado é confinado ao âmbito de
uma relação solitária neuronal – o corpo alienado).
Desde
sempre, acredito que o maior desafio da Instituição-escola seja despir-se de
preconceitos e funcionar em parceria com a comunidade, na busca de construir
caminhos possíveis, claro que também ensinando, mas, sobretudo, aprendendo. Não
é desafio pequeno, pois que os Setores formais, por ex, a Igreja, a
Universidade, o Estado Burocrático, estão acostumados com os respectivos
discursos de poder e costumam se contentar com os louros conferidos por tal status. Resta indagar: o uso do cachimbo
entorta mesmo a boca?...!
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