JUROS BANCÁRIOS: ACUMULAÇÃO OU DECRÉSCIMO DE RIQUEZAS?
MARCELO OTHON PEREIRA[1]
Sumário: 1.
Introdução. 2. O lucro como decorrente da produção de riquezas. 3. Os juros
bancários e a geração de riquezas. 4. O postulado da dignidade da pessoa
humana. 5. Os juros bancários no contexto de um Estado Social e Democrático de
Direito. 6. A produção de riquezas perspectivada num Estado Social e
Democrático de Direito: crítica ao enfoque meramente econômico. 7. A doutrina
social de Karl Polanyi. 7.1. A consecução do sistema de mercado graças a
fatores externos. 7.2. O modelo inglês.
7.3. As ordens internas e a ordem internacional. 7.4. O sistema de
mercado e a segregação social. 7.5. O lucro como paradigma do relacionamento social.
8. À guisa de conclusão. 9. Referências bibliográficas.
1.
INTRODUÇÃO.
O sistema
financeiro internacional, a serviço dos grupos empresariais multinacionais,
visa à acumulação do capital e à dominação dos mercados internos através da
imposição de regras conformadoras da economia, o que – a par de operar um
reducionismo indevido na realidade social, uma vez que o tecido social é afeto
a leituras multi-disciplinares, extrapolando o mero recorte econômico – torna
os mercados internos, e, por via de conseqüência, os países "ditos" soberanos,
mormente aqueles "subdesenvolvidos", dependentes do capital.
Tal dependência das
ordens "soberanas" ao capital não é obra do acaso, pois constitui
meio dos grandes grupos econômicos e financeiros de ditar regras, ante a
vulnerabilidade que a situação de dependência cria, e impor sua sanha
acumulatória combinada à manutenção do statu
quo.
Este trabalho propõe-se a debruçar-se sobre o tema
"juros bancários" analisando seu impacto social. Não objetiva o
presente apontar soluções para o equacionamento jurídico e técnico do
instituto.
A abordagem aqui perseguida dá ênfase aos aspectos políticos
da utilização da moeda. Recortes
econômicos só interessam ao presente estudo na medida em que considerados em
função dos seus efeitos sociais.
De antemão, descarta-se a hipótese de encarar a moeda como
valor em si, ou mercadoria, ou, de outra maneira, encará-la como simulacro da
economia, como se tivesse vida própria.
Se a moeda cumpre determinada função, tal deve privilegiar a
demanda social, e daí à análise do papel desempenhado pela moeda. Descarta-se qualquer prurido de traçar
contornos sociais a partir de imposições econômicas.
Não é a sociedade que deve conformar-se ao capital e a
economia, pelo simples motivo de que a demanda real encontra-se na sociedade,
entendida como comunidade de homens. A
demanda encontra-se no homem, por seus motivos, necessidades, condições de
vida, e a disciplina econômica, sob enfoque meramente referente e apriorístico,
de nada serve.
A crítica tem destinatário certo, o sistema de mercado,
preconizado pela doutrina liberal.
Sistema que prega a auto-regulação dos indivíduos entre si, e a não
ingerência do Estado. Que reduz todas as
realidades sociais à variáveis ou engrenagens de movimentação da máquina.
Ao preconizar a sublimação
do valor absoluto em detrimento das
aspirações sociais (realidade viva),
cria o mito de um poder sem feição ou despersonalizado, que a todos
oprime, que desconsidera condições peculiares a cada povo, época e lugar, enfim, um poder cujo objetivo é
alienar.
Alienar para que? Para
a manutenção do status quo: acumulação do capital e escamoteação do natural
volver dialético da sociedade.
2. O LUCRO COMO DECORRENTE DA PRODUÇÃO DE RIQUEZAS.
Entendido o lucro e a economia como manifestações de uma sociedade
organizada não se pode dissociá-los de valores ou, ingenuamente, acreditar que
possuam existência autônoma, ou meramente contingente, independente do
progresso social e da geração de riqueza. Isto é, o lucro deve ser interpretado
conciliando-o ao desenvolvimento econômico e progresso social, sem o que
qualquer conceituação de lucro será equivocada.
O lucro só representa um bem social (e, como tal,
denotador de progresso e riqueza social)
se advier da produção de um bem ou serviço, seja, por exemplo, a simples
circulação de mercadoria ou a industrialização.
A matéria prima aliada ao labor humano produz riqueza tangível, isto é,
passível de ser usufruída pelo homem em bens e serviços.
Em suma, o trabalho gera riqueza. O lucro deve decorrer do trabalho. O lucro que gera um excedente meramente
monetário, não contribui para o progresso social. O acúmulo de capital nas instituições
financeiras em economias recessivas e de paulatino empobrecimento da população
bem revela a orientação lucrativa desvirtuada da demanda social.
Com tal afirmação não se deseja diminuir a importância do
dinheiro como mediador desse processo de geração de riqueza, mesmo porque o
dinheiro é uma criação jurídica, e, portanto, positivada pelos ordenamentos
estatais e pelas convenções internacionais. Antes, procura-se disciplinar o uso
da moeda de conformidade com o bom direito, o direito comprometido com os
princípios democráticos e com a consecução do bem comum.
O dinheiro é bem coletivo na medida em que o crédito diz com
a possibilidade dos cidadãos terem acesso à fruição da riqueza tangível e ao
convívio social.
Sendo o dinheiro um bem social de fomento, sua disciplina
cabe ao Estado, responsável pela inserção do povo na ordem da cidadania.
É inconjecturável o dinheiro como bem exclusivo, pois ainda
que pertencente a determinado indivíduo certa soma pecuniária, o dinheiro não
tem valor em si e sua mera apropriação nada representa, senão como mediador de
bens passíveis de fruição. Exemplo
cabal de que o dinheiro, a par de pertencer a determinada pessoa, presta-se a
fins coletivos é a manipulação da poupança popular pelas instituições
financeiras.
3. OS JUROS BANCÁRIOS E A GERAÇÃO DE RIQUEZAS.
A premissa inicial é que só a produção de riquezas pode gerar
lucro e que o dinheiro deve servir à geração de riqueza. Isto é, o dinheiro que
o banco empresta não possui capacidade de por si gerar lucro, pois mesmo que
produza frutos, consistentes nos juros, tal não significa afirmar que o
dinheiro produziu mais dinheiro, pois o dinheiro nada produz, apenas serve de
mediador ou moeda de troca.
Importa dizer, o dinheiro não gerará lucro ante a
impossibilidade material de produzir
excedente sobre o próprio dinheiro, pois, em princípio, o dinheiro não pode ter
dois valores, mas um apenas, e, ainda assim, valor convencionado, ou valor
social, diga-se, valor estipulado para
atender os fins publicísticos do Estado.
A abstração do dinheiro ao infinito conduz à negação de
qualquer economia possível. O conceito de economia surge, de um lado, dos
recursos, sempre finitos e limitados, e, de outro, das necessidades, estas sim,
potencialmente infinitas.
Qualquer ordem de divagação que coloque a riqueza como bem
exterior ao homem e, além disso, ilimitado, estará incorrendo em grave equívoco,
a parodiar as parábolas da "Galinha dos Ovos de Ouro" e do "Rei
Midas".
O fim precípuo de economia é possibilitar sistematicamente a
realização social do homem. Nesse
sentido, a riqueza não se coloca como atributo externo ao homem, mas como
valorável só enquanto servir à satisfação humana. É o que nos ensina Leo Huberman, em
"História da Riqueza do Homem", no sentido de que o valor das coisas
não é intrínseco, mas função da necessidade humana[2].
O dinheiro, ainda que por vias transversas (moeda de troca,
pois com a posse do dinheiro nada se adquire, senão a possibilidade de adquirir
outros bens e serviços tangíveis), pertence ao gênero "bem", não
podendo fugir a esta regra, devendo, então, ser limitado.
Não é outra a conclusão a que chega Fábio Nusdeo[3],
advertindo que, a moeda, ao longo da história, sempre foi representada por bens
limitados e identificáveis, tal o sal e o gado, não havendo, pois, a
possibilidade de multiplicação ou progressão da moeda, como se fosse uma
grandeza puramente matemática. Explica,
ainda, que o suprimento ilimitado de moeda leva inevitavelmente ao aviltamento
de seu poder aquisitivo, a conduzir a um evidente paradoxo.
O dinheiro não tem valor em sí, ou valor concreto, senão o do
papel ou metal que lhe dá corpo. Seu valor
é convencionado como mediador da riqueza, mas não pode impor seus desígnios ao
patrimônio social, pois, em assim sendo, subverte-se a ordem natural das
coisas.
Hodiernamente, depara-se com a desvalorização da moeda e com
o fenômeno da inflação; fenômeno esse resultante da relação dinheiro e bens
dentro do binômio oferta/procura.
Considerando tal sistemática, pode-se admitir variação do valor da
moeda, diga-se, a moeda terá sempre o mesmo valor nominal (excluída a hipótese
de mudança do padrão monetário), porém o seu poder de compra variará no tempo
diante de seu maior ou menor poder aquisitivo.
Mas o que se está a tratar aqui é coisa diversa, o que não
significa que não tenha reflexos, quiçá profundos, na inflação. Está-se falando da impossibilidade do
dinheiro gerar mais dinheiro. Por
exemplo, tem-se dez reais, e, por mágica, transformam-se-os em vinte
reais. Contra isso, afirmar-se-á ser
plenamente possível transformar 10 em 20 reais, uma vez que se pode emprestar
10 e se acabar recebendo 20, em face de eventuais juros pelo dinheiro
emprestado. Mesmo nessa hipótese, não
houve transformação de 10 em 20, porque os outros 10 saíram de fonte diversa, a
saber, de quem tomou emprestado. Chega-se à conclusão de que o dinheiro não
pode se transformar num passe de mágica em mais dinheiro, sob pena de gerar
inflação.
Se o dinheiro, de per
si, não pode gerar lucro, como se pode compreender o juro bancário?
Conforme a premissa teórica do presente trabalho, o dinheiro
que o banco empresta não poderá gerar lucro, ainda que se admita um lucro
contábil pelo recebimento dos juros (relação ativo/passivo). A coisa (na hipótese, o dinheiro) só poderá
produzir renda (e não lucro) caso sua utilização resultar geração de riqueza
(fruto do trabalho do mutuário que gere produção de bens e serviços). Do lucro
gerado pela riqueza produzida pelo mutuário determinada parcela será devida a
título de juros pelo mutuante.
É de suma importância para a disciplina social localizar a
geração de riqueza no bojo da sociedade, ainda que o dinheiro possa funcionar
como medida da riqueza. Mas subverter
esta equação, (isto é, o acúmulo de dinheiro como denotador de riqueza, e o
trabalho a serviço do dinheiro) significa alienação e degradação social.
Os juros sempre advirão da riqueza disponível, ainda que o
mutuário deva responder com seu patrimônio (excussão de seus bens) entendido
como riqueza. Todavia, nessa hipótese, o dinheiro (representado no capital
mutuado) ao invés de gerar crescimento econômico terá gerado esfacelamento econômico.
Ainda que se admita que, em determinadas circunstâncias, o
prejuízo arcado pelo mutuário deva-se a sua culpa, por exemplo, por má
administração, é de se considerar que o enriquecimento da instituição
financeira às expensas do empobrecimento alheio deve ser encarado como um mal a
ser evitado. A utilização do crédito
deve ser disciplinada sob a ótica dos
fins estatais, da busca do bem comum, da diminuição dos desníveis sociais.
4. O POSTULADO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
A
dignidade da pessoa humana é um valor caro a qualquer ordenamento jurídico que
aspire a democracia. No ordenamento
jurídico brasileiro é guindada à condição de princípio a nortear toda atuação
estatal, deitando seus efeitos sobre as esferas do direito público e privado.
Para
os fins do presente trabalho, o poder do dinheiro avilta a dignidade
humana, na medida em que utilizado como
fator de dominação. O homem, por seus
representantes à testa do Estado, não pode oprimir o próprio homem, seu
semelhante, mesmo, à guisa de criar padrões ou unidades de referência, que,
supostamente, lhe trarão comodidade e propiciarão o convívio social, como é o
caso do papel-moeda.
O
postulado da dignidade humana singelamente preconiza que toda experiência só é
possível de ser vivida no âmbito humano.
As leis e normas não tem vida própria.
Qualquer idéia de direito ou de Estado deve partir da premissa de que a
ordem está a serviço do homem e não o contrário.
Não
é por acaso que na Constituição brasileira o primado da Soberania pertence ao
povo, e não ao Estado, como poderia supor uma mente desavisada.
..., in verbis,
parágrafo único, do artigo primeiro:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
constituição."
Afirma
Jorge Reis Novais ser possível delimitar um núcleo material mínimo de dignidade
pessoal, indissociavelmente ligado à
autonomia individual e ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade,
que deva constituir uma garantia irredutível num Estado de Direito.[4] A dignidade será preterida quando a pessoa
for degradada ao nível de uma coisa ou objeto do atuar estatal, na medida em
que deixe de ser considerada um fim autônomo
para ser tratada como um instrumento de realização de fins alheios.
O
princípio da dignidade da pessoa humana, mais, aponta para a realização
total. A realização total não está afeta
a um rol fechado de direitos. A
dignidade da pessoa humana é um conceito ideal, perseguido na incessante luta
pela justiça através do direito. À
medida em que a sociedade evolui novas necessidades vão surgindo, cabendo ao
direito o equacionamento da realidade tal como se coloca.
Qualquer
tentativa de contingenciamento dos direitos, ainda que sob os auspícios da
maior proteção possível aos indíviduos, estará fadada ao malogro. O direito não é uma via de mão única, mas
acontece ao sabor dos movimentos e tendências sociais.
Insculpir
o conceito legal de dignidade humana é uma tarefa vã, pois a dignidade humana é
conquista de cada indivíduo, aferida em valores de ordem afetiva e
personalíssimos. Cabe, sim, à lei velar
pela tutela da dignidade humana, mas sem nunca alienar o homem do compromisso
para com a sua superação e evolução. O
direito positivado é meio para o progresso humano e social, mas não é fim, pois
o fim é um atributo exclusivamente humano.
A
dignidade da pessoa humana será tanto mais alcançada na medida em que o homem
descubra e invista na sua realização, e como célula de poder, atue na sociedade. A progresso social, mormente no seu aspecto
moral, só pode ser atingido por seres atuantes, conscientes do seu poder. Do contrário, teremos seres passivos, com a
falsa consciência de terem seus direitos garantidos, tal a liberdade, a vida,
porém sem nunca podê-los fruir em essência.
Relembrando
a máxima, "não lhe darei os peixes, mas ensinar-te-ei a pescar". O
Estado Democrático de Direito deve guarnecer o tecido social de
condições para a superação humana, tal os investimentos em educação,
saúde. Cada homem, como célula de poder,
atuará como multiplicador em prol do progresso social. Nesta altura, abandona-se a idéia de Estado
que tudo prevê e provê, exsurgindo as conquistas sociais fruto da interação
contínua do Estado como instituição e dos indivíduos como célula de poder.
5. OS JUROS BANCÁRIOS NO CONTEXTO DE UM ESTADO SOCIAL
E DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
Ultrapassada a crença liberal de alheamento da regulamentação
estatal na economia, e considerando o princípio egoístico do funcionamento dos
mercados, consistente na expectativa dos agentes econômicos em tirar o maior
proveito possível para si, urge disciplinarem-se os juros bancários sob os
auspícios do bem comum.
Se apesar do eventual prejuízo do mutuário o banco continua
com direito ao juro, tal acarretará efeitos deletérios, como a imobilização do patrimônio e o
desmantelamento dos negócios (versus
circulação da riqueza, que deveria orientar a concessão do crédito), devido à
excussão dos bens do devedor.
O Estado, garantidor do curso forçado da moeda e tutelador da
ordem econômica, acabará arcando, além do devedor, com as conseqüências dessa
operação (direito aos juros mesmo havendo prejuízo do mutuário), pois se o juro
recebido pelo banco não tem substrato na geração de riqueza, a mais valia do dinheiro representada no juro deve ser
suportada pelo agente garantidor do poder de compra da moeda, o Estado.
Se o prejuízo gera "lucro" para o banqueiro, isso
implica desvalorização da moeda e conseqüências econômicas funestas para o
Estado. Em assim sendo, o Estado está se desviando de sua função de fomentar o
progresso social e econômico, uma vez que se endivida para garantir o
suposto lucro do banqueiro, atendendo, em tal hipótese, a interesses estranhos
à finalidade pública.
Pode-se, inclusive, argumentar que o mutuário eventualmente
lucrará empregando o dinheiro emprestado em especulação. Porém, tal
circunstância não muda a ordem dos fatores, devendo sempre haver um substrato
econômico para a geração de riqueza, pois, do contrário, a mais valia obtida
pelo especulador implicará oneração do Estado a serviço de interesse alheio ao público, aplicando-se a tal hipótese a mesma
lógica da percepção do juro bancário em detrimento do prejuízo do mutuário.
Além disso, o direito inexorável ao juros (isto é, mesmo no
caso de malogro do mutuário) pode ser entendido como posição de não sujeição da instituição financeira à
livre concorrência e, consequentemente, ao risco, uma vez que o privilégio
em não participar do risco sofrido pelo mutuário, que comumente depende do
retorno econômico do capital investido nos seus negócios para honrar seus
compromissos, faz com que a instituição bancária analise, no tocante à
viabilidade de firmar contrato de mútuo com determinada pessoa física ou
jurídica, apenas o patrimônio que responderá pela dívida, sem atentar,
propriamente, para a perspectiva de êxito do empreendimento ao qual o dinheiro
mutuado se destina.
É uma postura cômoda para a instituição bancária, fingir
cumprir seu papel de fomentadora de geração de riqueza e progresso social,
conquanto possua o controle dos meios econômicos (posição de monopólio), sem se
sujeitar, portanto, ao risco, e sem exercer função alguma de sinalizar o
cliente quanto à perspectiva de viabilidade econômica de seu negócio.
A instituição financeira, tendo como negócio o crédito, não
pode obter privilégio sob o pálio do dinheiro como pilastra do tecido social,
tal como se exercesse uma função pública acima da de todos os agentes sociais.
Ora, a instituição financeira não detém monopólio algum em
lidar com o dinheiro, não é dona do dinheiro. A uma, porque o dinheiro é uma
criação do Estado de Direito e há, portanto, que suportar todas as vicissitudes
que vierem a ser enfrentadas pelo Estado, aí incluindo-se as possíveis crises
econômicas, sociais e políticas, quer sejam elas externas ou internas. A duas,
porque o crédito bancário é viabilizado pela união da poupança do povo, quer
dizer, o banco empresta, em última análise, o dinheiro alheio.
Quem eventualmente pode lucrar é aquele para quem o banco
empresta, que produz riquezas através do trabalho. Com tal afirmação, não se pretende fazer
tábula rasa quanto ao enfrentamento do que seja produzir riqueza, isto é, de
como conceituar "a produção de riqueza", mormente se considerarmos
que o oferecimento de bens e serviços no mercado não significa necessariamente
obtenção de lucro, pois o êxito de tal empreita depende de muitos fatores, como
a administração do negócio, ponto, concorrência... Se determinada empresa, por
exemplo, emprestou dinheiro para produzir biscoitos e obteve prejuízo, assim
mesmo não terá produzido riquezas?
A indagação pode conduzir à interpretação de que a premissa
inicial do presente estudo - só o trabalho gera riqueza e, por conseqüência,
lucro - é inverídica ante a
possibilidade
de que eventual investimento em bens e serviços não obtenha êxito. Porém, a
premissa inicial deve ser interpretada não como se todo trabalho gerasse
inexoravelmente lucro, mas, a contrário senso do dinheiro, que, em hipótese
alguma, terá a aptidão de por si gerar riqueza (isto é, dinheiro não empregado
em trabalho), o trabalho invariavelmente
gera riqueza e eventualmente lucro.
Como enfatizado nas considerações iniciais, não se quer aqui
vislumbrar qual a sociedade perfeita, onde todos os seus segmentos convivam em
harmonia, e não haja exclusão, mas deixar extreme de dúvidas que somente o
trabalho gera riquezas, e a consideração de lucro de per si de nada adianta à
causa do progresso. Apenas identificando
a riqueza com o patrimônio social já se está dando um passo importante. Desatrelando-a de sua pura conformação à
moeda. Valorando o trabalho por sua
naturais implicações sociais, as quais
cabe ao Estado tutelar.
Mesmo na hipótese de eventual prejuízo em determinado
empreendimento em bens e serviços, terá havido geração de riqueza, ao menos no
sentido concreto do acréscimo do produto ou serviço no mercado, a despeito de
sua valoração econômica.
Tal foi a hipótese ocorrida quando da quebra da bolsa de Nova
Iorque, em 1929, com a conseqüente queda do preço do café ocasionando a queima
da safra. Independentemente da valoração econômica do produto (o preço do
café), analisando apenas sob a ótica
material, houve, num primeiro momento, produção de riqueza (produção e colheita
do café) e, num segundo momento, destruição de riqueza (queima da safra).
6. A PRODUÇÃO DE RIQUEZAS PERSPECTIVADA NUM ESTADO
SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO: CRÍTICA AO ENFOQUE MERAMENTE ECONÔMICO.
No enfrentamento da questão sobre o que seja produzir
riquezas é de criticar-se seu enfoque meramente econômico, pois a compulsão de
tudo valorar, reflete um dos sintomas criados pela sociedade moderna, como se
tudo tivesse um preço, a revelar a necessidade do homem moderno de coisificar as relações e fatos com que
se depara, o que pode ser entendido como patologia social.
Fábio Nusdeo traz à baila a noção de "remunerações não
pecuniárias". Segundo o autor, os bens possuem valor personalíssimo, isto
é, o valor pecuniário não interessa, mas sim o que agrada e permite desfrutar
uma maior satisfação pessoal implicando melhor qualidade de vida[5].
Tal noção afeta os conceitos de progresso e desenvolvimento
econômico, que não podem ser encarados apenas sob o aspecto monetário. O desenvolvimento econômico não pode ser
aferido apenas pelo aumento do produto interno bruto - PIB, deve levar em conta
outros fatores, por exemplo, realidade carcerária, segurança, preservação do
meio ambiente, investimento em cultura, etc.
Querer reduzir tudo a objeto é atribuir à economia um fim em
si mesma e acima do homem. A
coisificação presta-se também a chancelar a propriedade e o consumo, porém os
fatos, sejam eles naturais (por exemplo, a qualidade do ar) ou sociais (por
exemplo, a violência urbana), não podem ser preteridos.
A natureza, o mar, as florestas, por exemplo, malgrado as
convenções sociais instituindo a propriedade privada, não estão sujeitos a uma
valoração apriorística. A uma, porque a natureza tem suas próprias leis. A
duas, porque a atribuição de valor depende da aferição da utilidade social;
utilidade essa mutável segundo o grau de progresso alcançado pelas
civilizações, inclusive no que tange ao avanço das instituições democráticas,
especialmente no amadurecimento da consciência pela preservação do patrimônio
natural como bem comum de todos os povos.
Para se ter idéia da complexidade da resposta à pergunta
quanto ao que seja riqueza, pense-se, por exemplo, num paciente, que
considerado um peso para a sociedade, em face do seu estado de alienação, vem a
curar-se através de tratamento psicológico: o trabalho do psicólogo não poderá
ser considerado como produção de riqueza se o dito paciente, mesmo curado, não
chegar a participar da cadeia produtiva...? E, imaginando-se a hipótese oposta,
se esse paciente continuar em estado de alienação será bem possível que
movimente mais a economia comparativamente ao que movimentaria se estivesse
curado... (gastos com remédios, internação, médico, ...).
Um
simples serviço de esclarecimento ou projeto de educação para o cidadão não
poderá ser considerado como riqueza? A toda evidência, resta responder que sim.
Os serviços, desde que úteis à sociedade, podem ser considerados como riqueza,
independente do seu maior ou menor grau de concretude e de aferição
econômica.
Volva-se
a um filme cinematográfico: possui componentes materiais (custo, aparato
tecnológico, contratação de atores, película, divulgação...) e espirituais
(sentimentos que o filme evoca, mensagem por ele passada, beleza estética,
comunicação da realidade de outros povos, valores perpetuados...), gera
riquezas. Ninguém em sã consciência
admite pagar um ingresso de cinema apenas pelo seu custo de produção, mas, ao
contrário, paga pelo produto acabado, que possui, para cada qual, um valor
particularizado, isto é, paga-se por um filme que se quer assistir.
O maior grau de abstração do mercado, mormente nos tempos
modernos, nos quais a cada dia vão surgindo novas conveniências, necessidades e
perspectivas de realização do homem,
surgindo, em conseqüência, produtos e serviços diferenciados, relega ao homem
sua própria responsabilidade pelo tecido social.
A maior entropia social diante da complexidade da sociedade
moderna não constitui motivo para concluir-se que a economia não tenha
parâmetros ou que o lucro não tenha um substrato.
A disciplina, por sua vez, deve servir para o atingimento das
finalidades humanas, e não o
contrário, "o homem a serviço da disciplina". Se a sociedade investe em lazer e na
felicidade dos seus cidadãos, tal deve ser considerado como riqueza, ao invés
de regras de condutas, impostas à guisa de expressarem a verdade, tal o império
do capital, a ditar como deva o homem se conformar à moeda e às normas
financeiras (hermetizar os fatos sociais em expressões monetárias), subvertendo
por completo aquela que deveria ser a função do papel moeda, de fomentar a superação do homem rumo à concretização
dos valores de cidadania e dignidade.
Tal desiderato, de índole sectária, aparta os meios de
produção do legado espiritual do homem; antes, submete os meios de produção ao
vaticínio do artifício de aparente razão; razão essa, comprometida com fins
escusos, atrelados à acumulação do capital e à dominação dos mercados mediante
regras financeiras que, a par da lógica matemático-financeira que lhes é
peculiar, tal sofisma que a razão aprisiona, submete o homem, o trabalho e a
riqueza às regras financeiras, convencionadas internacionalmente e impostas às
economias nacionais, diga-se, aos povos ditos soberanos, como forma de
dominação sub-reptícia dos grupos internacionais e efetivo controle da economia
e da riqueza pelo capital.
Por aí se vê que o progresso
econômico não pode ser medido apenas quantitativamente. Se tal fosse verdade, o
lucro dos banqueiros seria inexoravelmente sinal de desenvolvimento econômico.
Todavia (e nesse particular o Brasil é exemplo paradigmático
...) o que se observa, paralelamente ao constante enriquecimento das
instituições financeiras, é o, também crescente, aumento da concentração de
renda e dos índices de miserabilidade.
Habitam no Brasil milhões de crianças e adultos subnutridos,
o que se espelha na frágil compleição física dos brasileiros, registrando-se o
índice de 5,6% de crianças nanicas na faixa etária de zero a cinco anos,
percentagem superior ao dobro do índice padrão da Organização Mundial de Saúde,
taxa que no Nordeste chega à assustadora margem de 20% das crianças.[6]
A organização da produção impede o acesso da maioria do povo
brasileiro aos recursos naturais aqui existentes, razão por que detemos uma
alarmante taxa de concentração de renda: os 10% mais ricos da população detêm
mais de 45,7% do total de rendimentos do trabalho.
Ante o triste espetáculo da miséria, facilmente perceptível
em qualquer grande cidade brasileira, a realidade da negação do direito à
satisfação da fome dispensa estatística.
Destaca-se no Brasil uma profunda concentração fundiária,
quando se observa que as dezoito maiores propriedades rurais sozinhas detêm
dezoito milhões de hectares, território equivalente ao ocupado por três países:
Portugal, Suíça e Holanda.
Esta situação impele milhões de lavradores do campo para as
cidades, na ilusão da sobrevivência, o que provoca a inchação dos centros
urbanos, onde, também, não obtêm a satisfação desse direito fundamental de
habitação.
As
habitações precárias, onde famílias inteiras vivem num único cômodo, estão
construídas em locais inseguros, sem água encanada, sem ligação a redes de
esgotos e de tratamento de lixo.
Dados
do IBGE revelam que, em 1999, as moradias não atendidas pela rede geral de
abastecimento de água alçavam a marca de 20,4% e as que não dispunham de
esgotamento sanitário adequado (instalação sanitária ligada à rede de esgoto ou
a fossa) somavam 35,4 % do total das habitações.
Essas
são as submoradias de milhões de brasileiros, que ainda estão em melhores
condições que a grande massa dos habitantes das ruas.
No
país dos meninos e meninas de rua, a desproteção da infância é tão eloqüente que todos os escritos a respeito
tornam-se supérfluos. Segundo os
dados do IBGE, obtidos na PNAD de 1999, 5,5% das crianças entre 10 e 14 anos
são absolutamente analfabetas, taxa que chega a 12,7% no Nordeste. Em relação à escolaridade, constatou-se que
2,4 milhões de crianças, entre 7 e 14 anos, não freqüentavam a escola,
certamente porque necessitavam contribuir para a renda familiar, visto ter-se
observado que 2,5 milhões de crianças entre 10 a 14 anos são exploradas com
trabalho infantil.
Este
país, em que a educação não possui prioridades nas leis orçamentárias,
igualmente despreza a qualidade das informações que vincula. Os meios massivos
de informação são controlados por uns poucos e poderosos empresários privados,
que pouco ou nada informam do real e decidem o que vão divulgar, procedendo a
uma verdadeira construção da realidade.
Em
relação à expectativa de vida, a média não passa de 67 anos de idade, dez anos
a menos que nos países centrais. E aqueles de nós que conseguem chegar à
velhice, chegam desprotegidos.
A
subnutrição, a ausência de saneamento básico, a higiene precária nas
submoradias e nas ruas que se fazem de lar, são responsáveis pelos altos
índices de mortalidade infantil e pelas doenças da miséria, como a hanseníase,
a malária, a esquistossomose, a doença de chagas, a dengue, que, no Brasil,
seguem rumo oposto ao percorrido
por outros países: as doenças infecciosas
lá erradicadas, aqui continuam presentes e matando.
Até
mesmo os problemas mais simples, como o controle de doenças preveníveis com
vacinas, no Brasil, não são resolvidos. E isto ocorre não por falta de vacinas,
mas por distorções que permitem o apodrecimento de remédios por falta de
utilização.
Mesmo o trabalho
espoliante, por todos conhecido, que se desenvolve num país em que pouco
importa seu elemento humano, é negado a parcelas cada vez maiores da população
brasileira, como resultado de uma política econômica recessiva, geradora de
demissões.
Os
poucos que se encontram trabalhando recebem um salário aviltante, que só com
muito esforço abstrativo poderia atender ao que lhe atribui a Constituição
Federal.
Dados
do IBGE informam que 82% dos assalariados brasileiros não recebem mais de cinco
salários, efetivamente, mínimos e registra a alarmante taxa de 9,6% de
desempregados.
Percebe-se, pois, que as normas
que regulam o crédito, tal como se concebem usualmente, desvinculadas da noção
"direitos humanos fundados na satisfação das necessidades reais dos homens", são
perfeitamente compatíveis com a manutenção das estruturas de poder
contribuindo, qual um círculo vicioso, para a conservação das desigualdades
sociais.
Não
bastasse a inviabilidade dos juros bancários gerarem riquezas, uma vez que o
dinheiro não produz excedente sobre o próprio dinheiro, o grave quadro social
brasileiro reclama a centralização da atenção do Estado, quando da elaboração e
aplicação das normas referentes ao crédito, bem como quando da adoção das
políticas públicas, em prol da pessoa humana.
Qualquer economia possível deve
derivar do saudável exercício das potencialidades
humanas. Uma economia que transforme regras financeiras em dogmas, a
sujeitar o homem ao seu império, relega ao homem a posição de mero objeto e não
de sujeito portador de necessidades reais para a satisfação da quais está
jungido o Estado enquanto ente político.
Para
atingir-se a dimensão da dignidade humana constitucionalmente positivada urge
que o Estado ponha freios à coisificação que se tem impingido ao homem no
tocante às políticas creditórias.
7. A DOUTRINA SOCIAL DE KARL POLANYI
Karl
Polanyi, em sua brilhante obra "A Grande Transformação - As origens de
nossa época", tece longa crítica ao sistema de mercado. O grande mérito que se lhe atribui é
contestar a doutrina liberal e o mercado auto-regulável, não pela suas
engrenagens (monopólio dos meios de produção, dominação do trabalho pelo capital,
...), mas pelo rastro de alienação social que deixou ao tentar reduzir o
fenômeno social ao fenômeno meramente econômico.
7.1. A consecução do sistema de mercado graças a
fatores externos.
Os
apologistas do modelo liberal preconizaram o sistema de mercado funcionando à
margem do Estado, isto é, sem a sua interferência. Porém, o Estado absenteísta,
como orquestrado, foi um Estado a serviço do sistema de mercado, e que,
portanto, nada tinha de neutro ou imparcial.
Fazendo
uma retrospectiva da evolução do sistema de mercado, constatamos ter sido
possível por obra de condições externas muito bem definidas, muito diversas da
feição que se tentou impingir à tal modelo econômico, de auto-regulação.
Ora o sistema de mercado foi
implementado, tal como num jogo de xadrez, tentando minar o opositor. Este opositor era o regime de privilégios
da nobreza e subsistência da plebe, que, impedia a formação do mercado.
A
destruição do inimigo: sistema de privilégios da nobreza (terra extra commercium[7])
e subsistência da plebe, foi uma atuação política, pois utilizou-se da máquina
estatal para atingir tal desiderato.
Como
se vê, o sistema de mercado não nasceu espontaneamente, mas mediante atos e
fatos concretos que possibilitaram seu advento.
Dizer
"auto-regulável", significa uma retro alimentação, ou uma espécie de
autonomia. Ora, o sistema de mercado,
para se erigir como tal, necessitou de condições externas, tal a formação de
mercado de trabalho e de mercado consumidor, e comercialidade da terra, condições
tais que precisaram de ser criadas.
Se
os defensores do sistema de mercado acreditaram numa ordem puramente econômica,
ou um padrão de conduta objetiva para a sociedade, lograram-se no nascedouro,
pois a instauração do novo regime requereu motivações e atos políticos, que
nada tinham de imparcial ou puramente econômicos.
Os
protagonistas do mercado auto-regulável criticavam o intervencionismo ou
paternalismo estatal, impingindo-lhe a pecha de político, porém, como
demonstrado acima, o sistema de mercado necessitou desse mesmo paternalismo para
se erigir.
Neste
sentido, as oportunas palavras de Karl Polanyi[8]:
"Ora, numa sociedade agrícola tais condições não
surgiram naturalmente - elas teriam que ser criadas. O fato de terem sido
criadas gradualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreendente das
mudanças envolvidas. A transformação implica uma mudança na motivação da ação
por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a
motivação da subsistência. Todas as transações se transformam em transações
monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de
intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas devem
derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de
renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. É isto o
que significa o simples termo "sistema de mercado" pelo qual
designamos o padrão institucional descrito."
7.2. O
modelo inglês.
O
estudo de Karl Polanyi refere-se à criação do sistema de mercado na Inglaterra,
que, diferentemente da França, deu-se de forma menos violenta. Tomar a história inglesa como paradigma para
a análise do liberalismo e do mercado auto-regulável foi uma escolha acertada,
por vários motivos. Por ter sido a
Inglaterra berço da civilização industrial; porque a Inglaterra ocupava posição
de destaque no mercantilismo; e devido a que a mudança do feudalismo para o
liberalismo deu-se de forma gradual, inclusive com hábil mediação
governamental, mediante leis protetivas, para atenuar os impactos da mudança.
Ora,
devido à posição internacional ocupada pela Inglaterra, atestada no grande acúmulo de ouro resultante
das práticas mercantis, e devido à pujança industrial, seria de se esperar o
êxito de sua economia no cenário mundial.
Porém, a crise do sistema liberal não poupou a Inglaterra, não só por
ter sofrido as conseqüências das duas grandes guerras que assolaram a Europa,
mas porque a crença em um sistema de mercado deixou a mercê do acaso o cenário
internacional, interferindo na economias internas.
7.3. As
ordens internas e a ordem internacional.
Nas
ordens internas, podemos afirmar que
ao se tentar reduzir a sociedade ao sistema de mercado, e colocar o Estado a
serviço de tais aspirações econômicas, a realidade social com suas múltiplas
aspirações e segmentos sofreu um processo de achatamento. As aspirações e conflitos sociais foram
relegados ao limbo, através da crença utópica nas propriedades auto-curativas
do mercado[9]. Mesmo os doutrinadores liberais que se
debruçaram sobre os conflitos de classes e agentes sociais no seio do sistema
de mercado, entenderam erroneamente em considera-los como conflitos de natureza
econômica[10].
Oportunas
as palavras de Karl Polanyi[11]:
"Embora a sociedade humana seja naturalmente condicionada por fatores econômicos,
as motivações dos indivíduos humanos só excepcionalmente são determinadas pelas
necessidades do desejo-satisfação material. O fato de a sociedade do século XIX
ser organizada a partir do pressuposto de que tal motivação poderia tornar-se
universal foi uma peculiaridade da época."
Karl
Polany[12]
traz à baila doutrinadores clássicos para os quais o homem tem uma propensão
natural à troca, e, portanto, à motivação puramente econômica. O ilustre autor refuta tais teorias,
trazendo relato de sociedades tribais, e enumerando motivações não econômicas
dos comportamentos sociais, a exemplo das doações de víveres baseada na ética
da reciprocidade. "o que se dá hoje é recompensado pelo que se toma amanhã[13]"
Ainda
Karl Polanyi[14]
citando a despreocupação com a subsistência como fator indispensável à
qualidade de vida saudável: "É justamente a ausência da ameaça de inanição
individual que torna a sociedade primitiva, num certo sentido, mais humana que
a economia de mercado e, ao mesmo tempo, menos econômica".
Na
ordem internacional, depara-se com
sistemas de equilíbrio de poder[15]
(por exemplo, acordo entre nações mercantis envolvendo colônias). Observa-se
que o sistema de equilíbrio de poder é precário, uma vez não dizer respeito à
busca da paz e da harmonização das relações internacionais, em atenção ao
interesse comum na dignidade dos povos e no meio ambiente sadio. Infelizmente, os sistemas de equilíbrio de
poder são paliativos, e via de regra, motivados por interesses escusos, dos
quais cumpre ressaltar o interesse dos agentes financeiros internacionais[16]
nos relacionamentos pacíficos como meio de garantir o crédito no comércio
exterior e o cumprimento dos contratos envolvendo dinheiro. Isso quando os
agentes econômicos não navegam em maré contrária, como soe acontecer com os
negócios de material bélico.
Antes
era a guerra e a conquista por novos territórios, em seguida, o sistema de
privilégios do clero e nobreza, depois, o advento do mercantilismo, o
padrão-ouro[17],
o imperialismo, hodiernamente, o sistema financeiro internacional e a
dependência das ordens internas ao crédito.
7.4. O
sistema de mercado e a segregação social.
Karl
Polanyi, em sua obra, não procurou delinear qual o tipo ideal de sociedade[18]. Apenas demonstrou que nos últimos séculos a
civilização tentou obstinadamente aplicar a "lei do menor esforço" às
relações humanas, ou, dizendo de outra maneira, tentou-se engendrar um sistema
que teria vida própria.
Tal
sistema que aspirava a perfeição simbólica, através do simulacro econômico,
isto é o monopólio do valor, oprimiu o homem.
Qualquer sistema de convivência que se coloque acima do homem é forma de
alienação das legítimas aspirações humanas.
Em
meio à obstinação em dar vida ao sistema de mercado, a sociedade ficou à
margem.
A
doutrina liberal fez da sociedade, que por natureza é dinâmica e viva, um
fetiche. A fetichização da sociedade
consistiu em reduzir todas realidades à mercadorias[19]. O trabalho, a terra, e o dinheiro foram
reduzidos à mercadorias, e como tais possuindo seu respectivos preços,
respectivamente, salários, aluguel e juros, e a transformação de tais preços em
renda devendo derivar necessariamente de uma venda no mercado.
Assevera
Karl Polany[20]:
"Esta suposta mercadoria, "a força de trabalho", não pode ser
impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não-utilizada, sem afetar
também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria
peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia
também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do
"homem" ligado a essa etiqueta."
O
mesmo acontece com a terra. O meio
ambiente é caro não apenas às motivações econômicas, mas a toda sorte de
motivações sociais[21]. Reduzir a terra à mercadoria significa
segregar o homem da natureza[22].
O
dinheiro transformado em mercadoria não traz conseqüências menos funestas,
comparado ao trabalho e à terra. Pelo
simples fato que o preço de tal mercadoria está sujeita a flutuações,
flutuações essas ocorridas por motivos vários, ao sabor da crença cega na
autonomia dos negócios. Ora, a flutuação
do poder de compra da moeda pode levar ao enriquecimento de alguns em
detrimento de muitos, ao endividamento do estado. O mito da moeda-mercadoria cria um estado de
incerteza consubstanciado no antagonismo de interesses em jogo. A moeda cumpre determinada função nos
ordenamentos internos, que não encontra correspondência na ordem
internacional. Se os governos estão
preocupados com uma moeda forte, o sistema financeiro internacional, por sua
vez, concentra seus esforços na exacerbação do lucro.
Conforme
Karl Polanyi[23]:
"Tal esquema de destruição foi ainda mais eficiente com a aplicação do
princípio da liberdade de contrato. Na prática, isso significava que as
organizações não-contratuais de parentesco, vizinhança, profissão e credo
teriam que ser liquidadas, pois elas exigiam a alienação do indivíduo e
restringiam, portanto, sua liberdade."
É
esta a singela conclusão de Karl Polanyi.
Nos últimos séculos não se investiu no homem e em suas
instituições. As aspirações humanas
foram negligenciadas. Foram
interpretadas como tentativas de subversão da ordem, quando, na verdade, eram
legítimos valores humanos.
Insista-se, Karl Polanyi não
preconiza a sociedade ideal. Afirma que
a história trouxe a tona os descaminhos, e adverte que os caminhos se constróem
através de dedicação . A evolução das
instituições humanas requer investimento, tal uma planta que precisa ser
regada.
Karl
Polanyi argumenta que com o advento do modelo representativo, através do direito
de voto, os agentes sociais passaram a levar suas reivindicações para o seio do
Estado. Porém o Estado não estava
preparado para o exercício do embate democrático de forças antagonistas, pois,
à maturação do modelo liberal e do sistema de mercado, acompanhou-se o Estado
absenteísta, atrofiado e protraído na falta do exercício de seus misteres
políticos.
Quando
a discussão da problemática social alcançou o Estado, através do direito de
voto e representação, tal ocorreu de forma traumática, por representar um
antagonismo profundo com o sistema de mercado vigente.
O
resultado disso foi a retomada do domínio da máquina estatal, para o exercício
do poder configurado nos sistemas totalitários (facismo, nazismo). Ante a impotência na solução de conflitos e
falta de preparo para o dialogo institucional, utilizou-se a força, culminando
na centralização do poder.
7.5. O
lucro como paradigma do relacionamento social.
Pergunta-se,
se o objetivo da economia liberal é o lucro ou acumulação de capital, a que
serve a criação do sobrevalor? Apenas
para legitimar as diferenças de posses, justificando a riqueza e a pobreza?
Conforme
preleciona Karl Polanyi[24]:
"... o lucro. O sistema de mercado
auto-regulável derivou unicamente desse princípio. O mecanismo posto em movimento com a
motivação do lucro foi comparável, em eficiência, apenas à mais violenta
irrupção de fervor religioso na história.
No prazo de uma geração, toda humanidade estava sujeita à sua influência
integral."
O
lucro como valor a perseguir tem como substrato remoto o renascimento
(valorização do homem) e, mais hodiernamente, o iluminismo (idade da
razão). O ideal de lucro confunde-se
com o hedonismo, isto é, o prazer ou exacerbação dos sentidos humanos, a alimentação
de seu narcisismo.
Estranhamente,
o ideal de lucro reverteu contra as instituições humanas. A sistema do lucro submeteu o homem aos seus
desígnios. A aparente comodidade de
disciplinar as relações sociais por um paradigma invariável (o lucro), na
verdade é uma forma de alienação dos compromissos do homem com o seu destino.
As
motivações humanas não se confundem com a abstração do lucro, que se coloca
como dado externo ao homem.
Se
formos procurar uma origem psicológica para o ideal do lucro, associaríamos com
o desejo de obter vantagem. Obter
vantagem, conquanto seja um conceito relativo, é baseado na diferença, e como
tal nunca pode ser objeto de unidade ou consenso, pois supõe perdedores e
vencedores.
Em
toda competição, há ganhadores e perdedores.
A competição, em si, não é problemática.
O problema é a competição como meio de vida.
A
previsão dos apologistas do sistema de mercado de que o desenvolvimento das
instituições econômicas resultaria em vantagem para todos não pode ser provada
teoricamente. Do ponto de vista prático,
a história não deixa margem à dúvidas quanto ao malogro do sistema de mercado
auto-regulável.
8. À GUISA DE CONCLUSÃO.
A acumulação de renda dos Bancos não tem revertido em
progresso social e desenvolvimento das instituições democráticas. Constata-se que
a utilização do capital desvirtua-se, não raro, do interesse público.
A concentração de renda pelas instituições financeiras,
considerando o grave quadro social brasileiro, há, pois, de ser entendida como
locupletamento. Primeiramente, porque não é ético que o prejuízo ou
empobrecimento alheio gere direito ao juro bancário. Em segundo lugar, porque o
lucro das institutições financeiras, somado à paulatina perda do valor
aquisitivo da moeda, gera o endividamento do Estado, arcando o ente político,
em última conseqüência, com o ônus desse processo pernicioso.
Com tal constatação, não se pretende aqui tomar postura
radical, a ponto de se opor a toda e qualquer mais valia e filiar-se por
completo à socialização dos meios de produção. O juro bancário deve ser
entendido como renda desde que o dinheiro tenha sido bem empregado e, nesse
sentido, é justo que o mutuante colha frutos proporcionais à riqueza gerada
pelo mutuário.
É importante frisar que o juro bancário não constitui em si a
geração de riqueza. O dinheiro, apenas,
serve como catalisador do processo. O trabalho é o que gera riqueza através da
produção de bens e serviços. O lucro, advindo da geração de riquezas,
remunerará o capital da instituição financeira.
A riqueza há de ser encarada no seu múltiplo enfoque
econômico, filosófico e jurídico, como convém à ciência contemporânea, de
vocação multidisciplinar, de modo a traçar um divisor de águas, entre a riqueza
que traz dividendos sociais e àquela que se presta a fins escusos.
Na forma das considerações tecidas na brilhante obra de Karl
Polanyi, citada à exaustão, a riqueza não pode ter motivação meramente
econômica. Reduzir a riqueza ao aspecto
econômico é alienar o homem de suas próprias demandas e motivos.
O homem é o microcosmos social, capaz de sentir, de ter
desejos, de inferir sobre a natureza das coisas, dotado de auto-estima, alegria
de viver. Se, ao gosto do iluminismo,
projetamos uma razão acima e externamente ao homem, tal a bitola das realidades
sociais em mercadorias, tal o lucro como paradigma, alienamos o homem de seu
bem mais precioso. Todo sistema que
tenha a vocação de funcionar ad eternun,
e reduzir o homem a mera variável, a par da sedução operada por sua lógica
interna, estará prestando um desserviço.
As instituições criadas pelo homem devem estar ao seu
serviço, e a razão é um atributo exclusivamente humano, e, em hipótese alguma
pode ganhar vida própria, e ares de generalidade, reduzindo o homem a mera
variável.
Por aí, percebe-se o engodo de reduzir o homem à força de
trabalho, e mercadoria. Os
doutrinadores liberais pinçaram uma álea humana, no caso, a força de trabalho,
e a valoraram economicamente (preço, renda), alienando todas as demais
vicissitudes humanas (por exemplo, auto estima, moralidade, bem estar) do
atributo econômico.
Embora o ente econômico hodiernamente signifique a
representação monetária da riqueza, é curial que a riqueza per si não pode ser
confundida com a sua graduação. A
graduação monetária é apenas um critério de aferição da riqueza. Podemos aferir a riqueza de vários modos, e
não apenas em sua grandeza monetária.
Por exemplo, se analisamos o patrimônio mundial quanto ao respeito à
preservação do meio ambiente, seremos mais ou menos ricos na medida em preservemos
ou não a natureza.
À guisa de conclusão, o ente econômico não possui natureza
meramente quantitativa ou linear, e não pode ser totalmente abstraído do homem,
como se vida própria tivesse. O caráter
econômico deve ser buscado, sim, na proporção direta das realidades que atendam
os fins humanos, e sociais, encarnados na idéia de progresso. Bens ligados à satisfação, e a qualidade de
vida, por exemplo, o meio ambiente sadio, a preocupação com a lazer, pesquisa,
saúde mental, ...
A apreensão do instituto "juros bancários" deve ser
realizada sob a ótica do conceito lato de economia, congênere ao conceito de
progresso social, ou patrimônio humano.
A moeda não pode monopolizar a valor.
A moeda deve servir os fins do Estado, e não o contrário. A instituição bancária não se coloca em posição
de supremacia, ou credora da sociedade, mas a serviço da sociedade. Encarado o crédito como fomento, a função do
dinheiro de catalizar o processo de riqueza é essencial à sobrevivência do
Estado. Sua disciplina é de direito
público e deve atender aos reclamos do bem comum. Não pode ficar a mercê de interesses
privatísticos, atinentes à sanha acumulatória ou lucro.
Na atual conjuntura, de notável avanço técnico e científico,
e, no entanto, grandes contradições sociais e povos marginalizados, urge reverter
este quadro, demovendo-se todos os esforços na busca de uma sociedade mais
justa e adequada ao perfil traçado por um Estado Social e Democrático de
Direito.
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
9.1. BARATTA, Alessandro. Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal.
Fascículos de Ciências Penais, v. 6, n. 2: 44-61, abr./jun. 1993.
9.2. CANOTILHO, José Joaquim Gomes e MOREIRA, Vital.
Fundamentos da Constituição, Coimbra:
Coimbra Editora, 1991.
9.3. GALTUNG. Johan. Direitos
humanos: uma nova perspectiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
9.4.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do
homem. 16ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
9.5. KARAM,
Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias,
2ª ed., Niterói: LUAM, 1993.
9.6. NOVAES, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: Perspectivas constitucionais. Coimbra, 1996, v. 1. p. 264-335.
9.7.
NUSDEO, Fábio. Curso de economia -
introdução ao direito econômico. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001.
9.8.
POLANYI, Karl. A grande transformação - as
origens da nossa época. tradução de Fanny Wrobel. 2 ed. Rio de Janeiro:
Campus, 2000
[1] Mestre em Direito Econômico e
Financeiro pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Procurador da Fazenda Nacional e Professor do
Curso livre de Viola Sertaneja do IFRN-Cidade Alta, Natal/RN.
[2] p. 71.
[3] Curso de economia, p. 50.
[4] Renúncia a direitos fundamentais, p. 329-330.
[5] Op. cit., p. 115.
[6] Os dados estatísticos ora e a
seguir mencionados foram extraídos das últimas pesquisas estatísticas do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a saber, PNAD realizada em
1999. As informações foram extraídas na data de 15/06/2002 do site do IBGE: www.ibge.gov.br/estatística/população/trabalhorendimento/pnad99/coment99.shtm.
[7]
Karl Polanyi. A grande transformação - as
origens da nossa época. tradução de Fanny Wrobel. 2 ed. Rio de Janeiro:
Campus, 2000, p. 91.
[8]
Op. Cit., p. 60.
[9] Op. Cit., p. 51.
[10] Op. Cit., p. 186.
[11] Op. Cit., p. 186-187.
[12] Op. Cit., p. 79.
[13] Op. Cit., p. 70.
[14] Op. Cit., p. 199.
[15] Op. Cit., p. 17.
[16] Op. Cit., p. 25.
[17] Op. Cit., pp. 41, 42, 46.
[18] Op. Cit., p. 291.
[19] Op. Cit., p. 90.
[20] Op. Cit., p. 94-95.
[21] Op. Cit., p. 214.
[22] Op. Cit., p. 162.
[23] Op. Cit., p. 198.
[24] Op. Cit., p. 47.
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