Expressão Popular
Lê-se na Constituição Brasileira o termo “dignidade da pessoa
humana” como um dos princípios da República. Ainda que, em boa hora, alçado a
condição de valor que informa qualquer consideração sobre a pessoa humana, nos
incita a pergunta: parodiando Drummond, oremos, em petitórios, em sufrágios às
santas almas, para que tal punhado de palavras bem intencionadas, isto é, a tal
“dignidade da pessoa humana” não seja apenas “um quadro na parede”.
A conhecida violência da cidade de Pernambuco, malgrado as
contradições sociais presentes, pode-se dizer que tem um opositor de respeito
no semblante do guerreiro do Maracatu, no índio caboclinho a guerrear sem
armas, e porque não com armas das flores da imaginação, com o pulso do retumbar
de tambores, com a vida e seus amores.
A expressão popular é um efetivo, é a libertação da aridez
das palavras, da “dignidade da pessoa humana” de teórica e natimorta
vocação. A tal “dignidade da pessoa humana”, com certeza não pode
ser uma concessão dos eruditos, ou de uma tal caridosa constituição. A
“dignidade da pessoa humana” se direito é, o é como patrimônio indelével do
indivíduo. Não há dignidade alguma fora do indivíduo.
A dignidade só alcança expressão no indivíduo. O indivíduo,
ainda que por contingência dramática a sua condição, vide exemplos das muitas
situações de miséria material e moral que deparamos (e muitas das quais
desconhecemos), vê-se no seu semblante de pesar os sintomas que apontam a
patologia social. Lê-se nas entrelinhas da violência das contingências sociais,
a dignidade da pessoa humana.
O louco, diferente do que o nome sugere, não é alguém que cai
na terceira dimensão, mas alguém que experiencia as vicissitudes/contradições
sociais. As patologias (materiais e morais) apontam para as entranhas da
sociedade. A condição de miséria é um sofrer, e daí ser humano sofrer, pois que
o diabo mesmo riria de suas misérias.
Maldizemos os criminosos, auguramos-lhes penas severas, mas
antes bendisséssemos. Explico. A condição efetiva das pessoas, seja qual for, é
bem melhor que qualquer receituário de boa conduta. Que a violência é um mal,
não vou desdizer. Porém, para se debelar o mal, é preciso olhos de realidade. A
cultura de massa é bem eficiente em espalhar preconceitos, tipo, o mais rico, a
mais bonita, o carro do ano como signo de realização, a paranóia do matar para
fazer justiça (vide filmes de perseguição policial). Diga-se, a cultura de
massa é bem eficiente no mister de seduzir/motivar, pois que tem salvo-conduto
para adentrar aos lares na moldura da TV. De ordinário, não convidamos a nossa
casa o desafeto. Tal regra não vale para a cultura de massa. Talvez, de longa
cultura tenhamos nos acostumado a dormir com o inimigo, e até pensar tê-lo na
conta de grande amigo.
Noves-fora a cultura de massa e suas mazelas, nem por isso,
aqueles que a perpetuam devem merecer o anátema. Quanto mais carentes de condições
morais (carinho; lar, escola, lazer, etc) e materiais (teto, alimentação
condigna, etc) mais são vítimas deste deletério processo, tal por exemplo o
menino morador de favela, ceifado para compor a fileira do narcotráfico, dizia,
respondendo à pergunta do jornalista (qual é o seu estilo?): - O meu é Nike.
Falando por sua boca, diríamos que ele é um produto. Isto é, o amesquinhamento
da condição humana. Mas daí a não ser digno há infinita distância, pois sua
condição miserável é um tributo de todos nós. Como disse atrás, somente o diabo
ri de suas misérias. Aliás, nem mesmo o diabo o faria. No máximo, iria ironizar
as misérias alheias, mas no fundo estaria chorando de suas próprias, até que um
belo dia deixa-se para trás o choro e ranger de dentes e afinal largasse sua
carcaça de diabo pra trás, e daí a ser só e simplesmente feliz.
A expressão popular é o único caminho, simplesmente porque
ser gente é o único caminho. A epopéia da nossa humanidade, de viva história,
com todos os seus matizes, dramas, pesares, é o nosso único patrimônio. Pois
que a história não se conta a bem do que seria o ideal, ou a bem das mais
nobres intenções. A história não é dita nos livros. É, sim, dita por
quem tenha boca e vontade de dizer. Todos fazemos história em nossas sinas
diárias, em nossas ditas e desditas. Lembro-me de um filme que muito me tocou,
“Os narradores de Javé”, cujo enredo se refere a um homem que foi incumbido de
relatar a história de um povoado, até se embriagar desta história, pois que,
enquanto nutria a idéia de que tal história muito longe estivesse, e ainda
demandasse muitas laudas de laboriosa escrivinhação, foi sendo, paulatinamente,
tomado por esse história, descobrindo-a viva, muito para além dos olhos da
razão. Descobrindo-a presente no pulsar das pessoas. Trazemos os
nossos parentes de antanho, em nossos dramas do presente. Nascemos num mundo
povoado, e daí a cativar tantos outros do porvir.
Falar que o folclore é uma manifestação oral, ainda não diz
tudo, pois que a oralidade não é propriamente o veículo. Veículo é a simples
pessoa humana que fala, pessoa, essa, com todos os seus determinantes,
conscientes ou inconscientes. Esta pessoa humana que fala é ciência viva, é
história acontecendo. Alguém que ouviu uma estória contada por seus pais em
tenra infância e a reproduz, não por isso torna a estória menos atraente por
estar a contando em segunda mão. Quem sabe tenham se esquecido no tempo alguns
dados da história original, quem sabe alguns outros dados tenham sido incluídos
de lauta imaginação... O importante é que seus pais estão sendo honrados.
A cultura extrapola os repositórios, os compêndios, pois que
vive no ínterim de nossos mais comezinhos sentimentos. Caso quisermos nos dizer
cultos, mãos a obra e nos apropriemos de nossa cultura. Nos apropriemos de nós
mesmos. Se apropriar não no sentido de fazer de si o mais extenso julgamento,
mas, simplesmente, ser, permitir-se ser.
Se almejássemos uma cultura muito profunda, de tanta
seriedade sucumbiríamos a um tal pesado fardo.
Então, proclamo: comecemos brincando.
Não há
sentido em compreender cultura, se tal não tiver morada em nossa própria
expressão, se não puder ser dramatizada, se não for fruto de nosso querer, de
nosso afeto, pois que contar uma história com um peso de realidade que nos obrigue
a ser um mero observador é o paradoxo de contarmos uma história que a nós não
pertence.
Dizer que
brincadeira não é brincadeira é a mais santa realidade, pois que todo credo
necessita do lúdico, pois que o ser diz de si através de seus dramas.
A arte é
expressão de nossas humanidades, é opção política das mais sensatas, pois que
feliz do povo que se assenhora de suas determinações. A arte significa podermos
gozar de nossa condições, viver a vida e a saúde num patamar qualitativo, que
extrapole a perspectiva funcional de nosso corpo. Quem canta, sorri com o
corpo, ou mesmo que chore, não deixa de ser outra forma de viver o corpo
presente, sair do ostracismo da matéria tendente ao pó.
O ser de
expressão é detentor de direitos simplesmente porque exercita direitos. A
expressão não é propriamente uma garantia, mas a conquista de um patrimônio
efetivo, se, como e quando nos permitamos exprimir.
A “viola
caipira” é uma paixão antiga, instrumento o qual muito me honra tocar. Dissesse
que é um instrumento genuinamente brasileiro poderia parecer coisa de xenófobo.
Prefiro dizer que é brasileiro, pois que a viola acompanha a nossa história, se
encontra no imaginário coletivo, a viola é testemunha ocular dos dramas de
nossas personagens, ou, mais que testemunha ocular, é confidente. - Ô viola que
eu toco no peito, pra amar e querer bem, nem que seja pra guardar os cacos...
Quisesse
desfazer da viola a moda de dizer que pouco se houve na mídia, nem por isso
deixaria de guardar os cacos. O cancioneiro popular não está na mídia. Compor é
ato de criação, compor é expressão do eu. Não é, propriamente, um labor, no
sentido de tarefa imposta. Mas, verdade se diga, em seu resultado a composição
revela muito labor, pois que aurimos de nós mesmo aquele diamante que se
lapidou. Daí para adiante a composição ganha vida própria nos quereres e
sentimentos das pessoas.
A chama do povo é o passarinho beija-flôr, de aparente
ingenuidade, mas quanta sabedoria encerra. Quando vemos no nosso Brasil, os
mestres autodidatas pinicando sua violinha, geralmente, homens do campo, com as
mãos calejadas da lida, logo nos cativa ver e ouvir a natureza falando. Não se
vá enganosamente considerar tal arte como coisa rudimentar, sob os auspícios de
uma estética de perfeição absoluta. O mestre autodidata, sem dúvida, toca sem
os albores de um atleta do instrumento. Mas, in casu, o princípio é
mais valioso que a estampa, pois que o “se exprimir” é um bem muito precioso,
que, infelizmente, nem todos se permitem. Viver a música, ou, melhor, permitir
que a música seja uma expressão de nosso querer, é uma opção política muito
madura. As manifestações folclóricas, o dançar, o se reunir a outros para
compartilhar nossas preferências, o permitir-se ser, são formas de inserção
social das mais salutares, as quais produzem resultados profícuos para a vida
em sociedade.
Poder-se-ia dizer que o “mestre autodidata, seja o puxador de
um “guerreiro”, de um “maracatu” ou um violeiro embolador ou catireiro,
produzem “arte menor”, sem requinte. Quanta ignorância! Há pessoas que passam a
vida estudando, pensando encontrar nos livros um sentido para sua existência,
quando nunca tenham se permitido simplesmente criar, dar de si, embriargar-se
de sua existência, interagir com o outro sem necessitar de carta de
apresentação ou referência. A música, a arte, antes de ser uma técnica, é uma
expressão. Aquele que pensa encontrar na técnica o engenho do acesso à arte, é
vítima da prisão de perfeição e cobrança que se impôs. Oxalá, cada
um de nós nos permita ser agente, se crer vivo e atuante na história, se dar o
direito de expressar seus dramas, seu querer. A expressão popular comunica,
comunica e daí a nos inteirarmos de nossas determinações, e daí a fazermos
opções políticas maduras, em prol da sociedade que acalentamos.
Seria muito
romantizar achar que a expressão artística não carrega em si preconceitos. Por
exemplo, entre os repentistas é muito comum as disputas, cada um tentando
provar que é melhor, tentando desacreditar o outro. A história que
depararmos no cotidiano, no mais das vezes, é a história que transformamos ..em
estória. Contamos.. para os nossos filhos estórias de perseguição pois que
nossas vidas é repleta disto. Concebemos personagens pérfidos e malvados pois
que convivemos muito com este medo do mal. Tais preconceitos veiculados pela
expressão popular não desmerecem a arte, antes a enaltecem, pois que seria de
nossas adversidades caso não pudéssemos dramatizá-las. O psicólogo lúdico, ao
transformar em jogos/brincadeiras os dramas e vicissitudes vividos pela
criança, nada mais faz que se inteirar de sua condição e, ao mesmo tempo, dar a
ensejo a que ele próprio, a criança, elabore seus sentimentos. O
povo que tem expressão conta sua história, seja ela alegre ou triste.
É assim que
a história acontece, isto é, quando a contamos. A contamos, não como um relator
de um caso alheio, mas com nossas próprias ações. Quando estamos de corpo e
alma na história, então podemos nos dizer protagonistas. Nossos sentimentos,
por mais piegas que possam parecer, quando expressados a outrem, permite que o
outro nos capte efetivamente existentes, e daí a humanização das relações, pois
que o espaço solidário o é de comunicação e interação. Quando falo com o meu
querer, tenho o eco do mundo a me responder.
Salve a
expressão popular, a arte, a viola caipira, a rabeca, os instrumentos musicais
de fundo de quintal, o tamborilar nos pratos. Com certeza, não são os melhores
objetos de consumo, antes nos libertam da solitária relação de consumo. Através
da arte nos libertamos do objeto de consumo, pois que nos tornamos nós mesmo
produtores. Ou até damos novo fundamento de validade ao objeto de consumo,
quando transformamos sucata em arte, ou de qualquer outra maneira a tornamos
útil.
Expressar
arte é dar de si mesmo. Expressar arte é cativar outros, expressar arte é dizer
de si mesmo, ou querer ter voz. Expressar arte é adentrar ao universo lúdico,
fugir do duro cimento, fugir da enganosa crença de que a sociedade só nos
aceitará se formos os melhores, os mais bonitos, o protótipo do ser social bem
sucedido
O ser de
expressão o é, tal como é, com todas as suas idiossincrasias. A sociedade
interage na arte. A arte é o palco onde os diferentes convivem, e o palco do
processar da diversidade, isto é, sem anular os opostos, ao mesmo tempo que dá
ensejo à dignificação das pessoas, pelo inteirar-se de suas
condições/vicissitudes. O âmbito da arte é um âmbito de aceitação.
Se queres
porfiar pelo sagrado, não vá pela razão, mas pela arte, que tem pés de andar. O
ideal da arte é ser tudo em expressão, sem, contudo, se deixar aprisionar pelo
julgamento do que se está sendo. Cantar uma cantiga de ninar para a vida
adoçar, tal a macela, a flor do campo, o vento que acaricia. Fazer a revolução
pacífica, o extremo infinito do passivo, pois que amor tem coragem de devolver
ao tapa a flor, de transportar violências para o escaninho da vergonha e daí
nascer menino.
Othon da Viola.